terça-feira, 28 de junho de 2016

Treinamento cerebral e efeito placebo

"Melhore o desempenho de sua mente", promete a versão brasileira da plataforma de treinamentos cerebrais Lumosity. Já a Supera, maior rede de "academias cerebrais" do país afirma que a participação em seus cursos presenciais e virtuais possibilitará a "conquista [de] uma mente saudável, com mais concentração, raciocínio, memória, criatividade e autoestima". A Neuroforma, por sua vez, afirma ser uma "plataforma on-line de exercícios cientificamente projetados para estimular as principais funções cerebrais e aumentar o desempenho cognitivo". Finalmente, a BrainRx afirma ser "especializada em tornar crianças e adultos mais inteligentes". Enfim, todas estas empresas - e muitas outras - prometem melhorar a concentração, a memória e a inteligência de seus usuários e até mesmo prevenir eventuais declínios cognitivos através do engajamento em uma série de jogos e exercícios "cerebrais". Mas será que isto realmente ocorre? Se nos guiarmos exclusivamente por fatores econômicos seremos levados a acreditar que sim, afinal uma indústria tão poderosa como a do brain fitness, que movimenta, segundo revista Forbes, bilhões de dólares por ano, não poderia estar erguida em cima de areia movediça. Ou poderia? Será que realmente tais produtos e serviços possuem fundamentação científica para prometer o que prometem? E será eles que cumprem tais promessas? A questão é controversa. Se por um lado, uma importante meta-análise publicada em 2014 por pesquisadores da Universidade da Califórnia, concluiu que o treinamento cognitivo de curta duração "pode resultar em efeitos benéficos em importantes funções cognitivas", por outro lado, também em 2014 - como já apontei em outro post - dezenas de cientistas de todo o mundo assinaram um comunicado afirmando não haver nenhuma evidência científica sólida de apoio às promessas das empresas de ginástica cerebral.

Para além desta controvérsia sobre a eficácia ou não dos jogos e exercícios cerebrais, um estudo recém-publicado no último dia 20 de Junho no periódico Proceedings of the National Academy of Sciences sugere uma explicação alternativa para a suposta eficácia de tais treinamentos, evidenciada em alguns estudos. Segundo os pesquisadores da Universidade George Mason, os "efeitos benéficos" seriam consequência não de uma eficácia intrínseca mas do efeito placebo gerado pela expectativa de eficácia. Mas como os pesquisadores chegaram a esta conclusão? Eles elaboraram um experimento simples, porém engenhoso. Para recrutar participantes para o estudo eles distribuiram dois cartazes (veja abaixo). No primeiro deles, à esquerda, eles escreveram: "Treinamento cerebral e aprimoramento cognitivo - Numerosos estudos tem mostrado que treinamentos de memória de trabalho podem aumentar a inteligência fluida. Participe de um estudo hoje. Email para mais informações: GMUBrainTraining@gmail.com" [um detalhe importante é que abaixo abaixo da frase em verde eles colocaram três referências bibliográficas que comprovariam a veracidade da afirmação]. Cabe apontar que a grande maioria dos estudos sobre eficácia de treinamentos cognitivos recrutou as pessoas de maneira similar. Já no segundo cartaz, à direita, eles escreveram: "Mande um email hoje e participe de um estudo - Precisa de créditos estudantis? Inscreva-se em um estudo hoje e ganhe 5 créditos. Participe de um estudo hoje. Email para maiores informações: cforough@masonlive.gmu.edu". Como já deve estar claro, neste segundo cartaz os pesquisadores não fizeram qualquer menção ao fato da pesquisa estar relacionada à temática do "treinamento cerebral", enquanto que no primeiro deram bastante destaque a esta informação.

BrainTrainIntext

Cinquenta participantes foram recrutados e divididos em dois grupos - em um deles (grupo placebo) estavam as pessoas que foram atraídas à pesquisa pelo primeiro cartaz, enquanto que no outro (grupo controle) aquelas que foram atraídas pelo segundo cartaz. Todos os participantes inicialmente responderam a uma teste voltado para a avaliação da inteligência fluida e em seguida se envolveram, por uma hora, em jogos de treinamento cognitivo. Finalmente, no dia seguinte, refizeram o teste de inteligência para que os pesquisadores pudessem averiguar se alguma mudança seria detectada. E o que eles encontraram? Que os participantes do grupo placebo se saíram melhor neste segundo teste do que no primeiro, marcando de 5 a 10 pontos a mais. Já o grupo controle não teve qualquer aumento, permanecendo no mesmo nível de antes. Tendo em vista que é extrememente improvável que um treinamento tão curto traga um efeito significativo e permanente na inteligência e que a única diferença entre os dois grupos estava na forma como foram recrutados, este resultado aponta, assim, que teriam sido as expectativas geradas pelos cartazes as responsáveis pelo "aumento no QI" dos participantes e não o treinamento cognitivo. Os pesquisadores não entendem ainda como o efeito placebo poderia melhorar a pontuação de QI de uma pessoa, ainda que momentaneamente, mas suspeitam que isto poderia estar relacionado a um aumento na motivação e na confiança dos participantes. 

Importante salientar que este novo estudo não sugere que o treinamento cognitivo/cerebral seja ineficaz, mas que sua eficácia se deveria mais às expectativas de eficácia, ou seja, ao efeito placebo, do que à uma eficácia intrínseca. Em suma, o que os pesquisadores indicam é que o marketing de empresas de treinamento cerebral é mais do que um chamariz, é a principal razão de sua "eficácia". E isto significa também que a publicidade de tais empresas é essencialmente mentirosa, pois dissemina a ideia de que são os jogos e treinamentos cognitivos em si que geram certos "efeitos benéficos". Aliás, a empresa Lumos Labs, que é responsável pelo popular aplicativo de treinamento cerebral  Lumosity,  recentemente foi condenada pela Comissão Federal do Comércio dos Estados Unidos (FTC, na sigla em inglês) a uma multa milionária - e ainda foi obrigada a notificar seus assinantes sobre este processo e permitir que eles cancelassem imediatamente a assinatura. Segundo a FTC, a companhia dissemina uma propaganda enganosa ao garantir que praticar 10 a 15 minutos algumas vezes na semana de seus jogos ajudaria seus usuários a melhorar o desempenho na escola e no trabalho e até mesmo a prevenir o declínio cognitivo. De acordo com a porta-voz da FTC Michelle Rusk“a Lumosity se apega aos medos que seus consumidores têm sobre o declínio de capacidades relacionado a idade, sugerindo que seus games podem ajudar a evitar a perda de memória, demência e até mesmo a Doença de Alzheimer. Mas a Lumosity simplesmente não tem a ciência para suportar seu anúncio”. Na mesma direção, um dos pesquisadores responsáveis pela pesquisa descrita acima, Cyrus Foroughi, afirmou para a revista Cosmos que a descoberta de uma maneira de aumentar rápida e permanentemente a inteligência seria algo fantástico, mas ponderou: "eu só acho que a ciência ainda não chegou lá". Será que um dia chegará?

PS: Não consegui ter acesso ao artigo "Placebo effects in cognitive training" na íntegra, apenas a seu resumo e a informações disponíveis na imprensa. Infelizmente o artigo completo está disponível apenas para entidades conveniadas ao site ou mediante pagamento. Isto significa que eu posso ter cometido algum(ns) erro(s) na descrição e intepretação do experimento.

PS2: inteligência fluida (Gf) se refere, segundo este artigo, "à capacidade de raciocinar e de resolver novos problemas, independentemente do conhecimento previamente adquirido". O artigo diz ainda que a inteligência fluida é "fundamental para uma ampla variedade de tarefas cognitivas, e é considerada um dos fatores mais importantes na aprendizagem. Além disso, a Gf está intimamente relacionada com o sucesso profissional e educacional, especialmente em ambientes complexos e exigentes". Esta forma de inteligência se contrapõe à chamada inteligência cristalizada (Gc), que, segundo este outro artigo, é a inteligência envolvida "na solução da maioria dos complexos problemas cotidianos, sendo conhecida como 'inteligência social' ou 'senso comum'. Esta inteligência seria desenvolvida a partir de experiências culturais e educacionais, estando presente na maioria das atividades escolares".

Sugestões de leitura:

Artigos que demontram a eficácia de treinamentos "cerebrais":
Artigos que questionam a eficácia de treinamentos "cerebrais":
 
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