quarta-feira, 3 de setembro de 2014

O materialismo das neurociências contemporâneas: nova roupagem para velhas esperanças

Reproduzo abaixo alguns trechos do magnífico artigo "O eterno retorno do materialismo: padrões recorrentes de explicações materialistas dos fenômenos mentais", escrito pelo professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (e meu grande mentor intelectual) Saulo de Freitas Araújo. Para quem se interessa pelo campo da filosofia da mente ou quer adentrar um pouco mais nas discussões sobre a relação mente-cérebro recomendo imensamente a leitura de seu livro "Psicologia e Neurociências: uma avaliação da perspectiva materialista no estudo dos fenômenos mentais", editado pela editora da UFJF. Foi esse livro, junto com as maravilhosas aulas do professor Saulo, que me despertaram, já na época da graduação, para o tema das Neurociências - que estudei mais aprofundadamente no mestrado. O texto é um pouco grande para os padrões de um blog mas certamente recompensará quem o ler com uma reflexão absolutamente necessária para todos os profissionais e estudantes do campo psi. Apesar de ser um artigo publicado em uma revista científica, Saulo escreve de uma forma muito clara e até mesmo divertida em alguns momentos. Portanto, espero que vocês se deleitem com esse artigo como eu próprio me deleitei. 



Para uma parte significativa de nossa sociedade moderna, o materialismo parece ser o resultado natural e inevitável do avanço das investigações científicas. De fato, essa imagem normalmente propagada e aparentemente irretocável de uma identidade entre ciência e cosmovisão materialista não deixa de ter certa legitimidade, na medida em que um número significativo de cientistas faz questão de afirmar sua adesão ao materialismo, além de dedicar parte de seu tempo à popularização dessa ideia. Entretanto, essa imagem não corresponde exatamente à realidade. Quando analisada mais de perto, ela se revela bastante limitada, além de problemática, na medida em que há também muitos cientistas que se posicionam claramente contra a visão de mundo materialista, demonstrando, assim, a independência entre ciência e materialismo. O objetivo do presente trabalho é desmascarar essa falsa identidade e mostrar como ela tem gerado visões míticas sobre a natureza humana, tomando como exemplo as tentativas mais radicais na neurociência contemporânea de eliminar a autonomia da experiência subjetiva humana. Isso geralmente acontece em três estágios: inicialmente, algumas capacidades, previamente atribuídas aos seres humanos, são agora atribuídas ao cérebro ou a uma parte dele; em seguida, proclama-se uma completa fisicalização da natureza humana em geral, que é assim reduzida a um mero produto da atividade cerebral; finalmente, essa visão materialista é propagada como o resultado inevitável da ciência contemporânea. (...)


Em primeiro lugar, é preciso esclarecer por que o materialismo não é uma materialismo não é uma teoria propriamente científica. Embora esteja hoje intimamente associado à imagem contemporânea de ciência, ele é, em seu sentido mais geral, uma tese metafísica acerca da natureza última da realidade, que unifica todo o campo da experiência humana, reduzindo-o, em última instância, a algum princípio explicativo derivado (válida ou invalidamente) do conceito de matéria, fornecendo ao final uma visão de mundo. Em outras palavras, o que identifica todo e qualquer defensor do materialismo é sua adesão à tese de que tudo o que existe no mundo é material. No entanto, uma afirmação desse tipo é tão geral e abrangente que jamais pode ser submetida a qualquer teste empírico particular, ultrapassando, portanto, a esfera do conhecimento científico possível. Ora, pelo menos desde a Crítica da Razão Pura, não é mais possível ignorar que a totalidade do mundo é apenas uma ideia racional, mas não um objeto que possa ser dado na experiência. Da mesma forma que a matéria, pensada como condição última da experiência, também não pode ser confundida com nenhum fenômeno empírico particular, pois, nesse caso, ela teria que ser explicada por outra coisa diferente dela. Ou seja, se a matéria é pensada como o fundamento absoluto de toda experiência humana, ela mesma nunca pode aparecer como objeto de nossa experiência, permanecendo, pois, além do alcance do nosso conhecimento científico.


Assim, uma vez que a ciência deve sempre estar solidamente amparada em evidências empíricas, nenhuma teoria científica, por mais bem estabelecida que esteja, pode implicar o materialismo. E é exatamente por isso que não podemos confundi-lo com uma teoria científica nem tratá-lo como se fosse uma. Logo, a expressão 'materialismo científico' pode servir no máximo para designar a posição ideológica ou o status profissional de seus adeptos (cientistas), mas de forma alguma ela significa que o que eles estão propondo seja uma teoria científica. Desfeita essa confusão, deve ficar claro que a legitimidade da ciência não depende da adesão do cientista à visão de mundo materialista, mas somente de seu compromisso com a lógica e a metodologia científica. Assim, tudo o que a ciência pode fazer é descobrir a existência de fenômenos e de suas relações, mas jamais a essência e a natureza última da realidade, já que estas últimas não podem ser dadas no nível empírico, requerendo, portanto, um conhecimento de outro tipo. Além disso, embora a prática científica possa estar atrelada a uma visão de mundo – como demonstram os estudos de Flecke Kuhn, a ciência é uma atividade epistêmica em constante desenvolvimento, de forma que sua cristalização em uma visão de mundo seria contrária à sua própria natureza. Em suma, ciência e materialismo são coisas distintas, que só por um deslize conceitual podem ser tratadas como idênticas. (...)



Nas últimas décadas, temos presenciado um renovado interesse pelo materialismo. Um bom indicador disso é o número crescente de publicações acadêmicas recentes sobre o tema, que têm procurado mostrar tanto suas origens quanto sua atualidade. Além disso, no próprio campo da filosofia da mente – disciplina que lida mais especificamente com o problema mente-cérebro – há várias tentativas recentes de explicar a mente humana em termos materialistas. Isso para não falar nos recentes "manifestos" em defesa do materialismo, que cumprem um papel cultural mais amplo, ao apelarem para a completa conversão do leitor ao ateísmo. Isso torna, a meu ver, extremamente problemática a tese de um enfraquecimento do materialismo. Mais especificamente, o que temos assistido é uma verdadeira onda de entusiasmo epistêmico motivado pelo contínuo e notável avanço das neurociências, em particular das novas tecnologias de neuroimagem. Por toda a parte, dentro e fora das universidades, surgem novos núcleos de estudo e/ou pesquisa dos processos cerebrais. A essa aposta na investigação do cérebro subjaz um otimismo explícito, que vê em um futuro não muito distante a solução de vários problemas concernentes à natureza humana. Basta aqui relembrarmos o entusiasmo com que foram anunciados e celebrados nos Estados Unidos, com recepção favorável em grande parte da comunidade científica internacional, o início da chamada "década do cérebro" (1990-1999) e suas promessas para as áreas da filosofia, da psicologia e da psiquiatria (...).



Ao investigarmos, contudo, o fundamento de todo esse otimismo, constatamos que ele se baseia primeiramente em uma insatisfação generalizada com toda forma de linguagem psicológica tradicional (mente, crença, vontade, intenção etc.), que esses autores atribuem à ingenuidade da nossa tradição dualista e religiosa ocidental. Eles argumentam que o senso comum já criou ilusões que foram posteriormente corrigidas pelo progresso científico (por exemplo, o caso das bruxas), e que isso vai igualmente acontecer em relação ao conhecimento da natureza humana com o avanço da neurociência, que se mostrará uma teoria superior (...).

A falta de uma fundamentação sólida para a proposta materialista se torna mais evidente quando passamos a analisar sua relação com o avanço das investigações empíricas. De fato, passadas algumas décadas desde o início desse entusiasmo geral, podemos perguntar então se já temos pelo menos um esboço do que seria essa nova teoria neurocientífica da natureza humana. Apenas a título de ilustração, em uma recente coletânea de entrevistas com alguns dos mais destacados nomes nesta área – incluindo os principais expoentes do materialismo contemporâneo (por exemplo, Crick, Dennett e os Churchlands) –, descobrimos que, depois de 40 anos de pesquisas neurofisiológicas, não temos sequer um vislumbre de como resolver os problemas mais básicos acerca da consciência humana. No entanto, não faltam apostas e opiniões gerais muito vagas, na maior parte das vezes incompatíveis entre si. E quando eles são questionados se ainda vai demorar muito para que a promessa se realize, a resposta mais precisa que recebemos vem da própria Patricia Churchland: "Nós realmente não sabemos quanto tempo teremos que esperar".

Gostaria de explorar esse ponto mais a fundo. Enquanto o futuro sonhado de uma superteoria não chega, o que os materialistas têm a nos oferecer é uma linguagem metafórica, quase ficcional, mediante a qual atribuem ao cérebro ou a partes dele uma série de capacidades e realizações que antes eram atributos da pessoa humana como um todo. Surge, assim, a "surpreendente hipótese" (the astonishing hypothesis) de que somos apenas um pacote de neurônios ou o somatório do comportamento de neurônios e suas moléculas. Surgem, também, ideias como "o cérebro emocional", "o cérebro volitivo", "o cérebro executivo", "o cérebro crente", "o cérebro que modifica a si mesmo", etc. (...) Descobrimos então, não sem um certo espanto, que o auge do nosso progresso científico consiste na substituição da noção de sujeito pela de hemisfério ou área cerebral. Quem agora "conhece", "faz avaliações", "interpreta", "cria", "procura explicações" etc. não é mais uma pessoa, mas sim um pedaço de matéria (parte do cérebro). Acontece que a utilização dessas metáforas encantadas, tomadas como explicações reais dos fenômenos, produz o resultado oposto do que era prometido, a saber, uma explicação científica. Afinal, não devemos esquecer que analogias e metáforas só são válidas quando, ao lado das semelhanças detectadas, também as diferenças são ressaltadas. Caso essas últimas desapareçam, então a relação passa a ser de identidade e não mais de analogia. Como procurei argumentar anteriormente, a atribuição real de propriedades e capacidades psicológicas a objetos físicos é característica de um estágio bem primitivo da inteligência humana, a saber, o animismo, que todo materialista diz querer combater. E o que é pior, isso representa um retorno a uma metafísica muito menos crítica e ainda mais ingênua do que a que eles pretendem superar. Trata-se aqui, portanto, de pseudoexplicações, que de modo algum respondem às questões fundamentais, e cuja função é, mais uma vez, meramente retórica. (...)

Os materialistas contemporâneos, ao anunciarem suas ideias como uma grande novidade, repetem estratégias discursivas e formas de raciocínio muito semelhantes às de seus correligionários do passado, sem que tenham consciência disso. E mesmo que não haja uniformidade ou consenso entre eles sobre o que seja precisamente o cérebro, como nos mostra a historiografia recente da neurociência, é essa atitude geral em relação a ele – assim como a fragilidade dos argumentos e a falta de dados empíricos para apoiá-la – que tem sido repetida, e que eu quero aqui enfatizar. É como se todo o período de nossa história intelectual que vai da segunda metade do século XVIII até o fim do século XIX fosse colocado entre parêntesis, para que essa nova aurora materialista possa soar como algo realmente novo. Na verdade, porém, trata-se apenas de uma nova roupagem para velhas esperanças, que acabaram se convertendo em um artigo de fé. É este fenômeno cíclico, que aparece em nossa cultura nos últimos 300 anos, que estou chamando de "o eterno retorno do materialismo". 

Cabe, contudo, perguntar: haveria um sentido nesse eterno retorno? Num primeiro momento, podemos entendê-lo apenas como uma ingenuidade teórico-conceitual, oriunda do desprezo ou desconhecimento em relação à própria história da ciência e da filosofia. Mas nossa tese é a de que ele revela uma significação mais profunda, que diz respeito a uma falta de atenção para os limites epistêmicos do ser humano. Ou seja, o que todos os materialistas estão tentando, pelo menos desde o século XVIII, é eliminar a autonomia da dimensão subjetiva da experiência humana, reduzindo-a ou reformulando-a em termos da dimensão objetiva das ciências naturais. Na linguagem da filosofia da mente contemporânea, trata-se de explicar a experiência de 1ª pessoa através do relato de 3ª pessoa, fato este que tem se revelado sistematicamente fracassado. Ora, a abstração do sujeito nas ciências naturais é apenas um recurso metodológico, útil para a elaboração de teorias físicas precisas, mas de forma alguma uma prova de sua não existência ou de sua irrelevância para a compreensão da natureza humana. É como se dois zoólogos, nadando em um lago infestado de crocodilos famintos, acreditassem que ao parar de falar de crocodilos estariam eliminando o perigo iminente de serem devorados por estes. E é exatamente essa tentativa dos materialistas de eliminar a autonomia da esfera subjetiva que tem se mostrado fracassada ao longo do tempo. Nesse sentido, o eterno retorno do materialismo representa um eterno esquecimento, por parte de cientistas e filósofos, dos limites do conhecimento humano, não exatamente de seu conteúdo empírico, mas sim de suas condições universais. Ora, a perspectiva do sujeito da experiência parece não poder ser eliminada ou traduzida em uma linguagem puramente objetiva, embora possa ser correlacionada a esta última. Nesse caso, de nada adiantaria o acúmulo de novos dados empíricos para resolver os impasses e os paradoxos do materialismo contemporâneo. Isso nos permite suspeitar que a nova visão da natureza humana que os materialistas querem alcançar talvez seja utópica e ilusória, já que os limites das condições de nosso conhecimento científico permanecem inalterados.

Para finalizar minha reflexão, gostaria de explorar a relação entre ciência contemporânea e a criação de ideologias. Em primeiro lugar, é importante reafirmar que o materialismo não é uma consequência lógica e inevitável das pesquisas científicas. Se assim fosse, não poderia haver cientistas antimaterialistas. De fato, porém, muitos cientistas, desde o século XIX, vêm apontando os impasses da perspectiva materialista e sua impossibilidade de solução. Além disso, muitos neurocientistas contemporâneos de grande prestígio são antimaterialistas. Em segundo lugar, a exaltação e/ou reprodução ingênua e irrefletida de um falso ideal de ciência acaba levando à criação de mitos, que obstruem a compreensão do que seja realmente a atividade científica e de como ela se desenvolveu historicamente. E é nesse contexto de uma assimilação acrítica da ciência contemporânea que corremos o risco de aceitar uma ideologia (cientificismo, materialismo científico) como se fosse um produto científico genuíno, e de participar de uma cruzada ideológica sem saber que se trata de uma. Ora, se a ciência tem uma função primordial, ela consiste na promoção do exame crítico da realidade, mas não na criação de histórias fantásticas e mitos alienantes. E se não podemos encontrar respostas definitivas para certas perguntas que temos levantado sistematicamente ao longo dos tempos, isso talvez aponte para certos limites de nosso conhecimento, o que nos obriga a recordar permanentemente os obstáculos que persistem, para não corrermos o risco de cair em novas formas de dogmatismo. Sendo assim, se a metafísica dualista é um resquício de nossa ingenuidade teórica e de nossa ignorância epistêmica, por que deveríamos considerar menos ingênua uma corrente de pensamento que atribui propriedades mágicas ao cérebro, transformando-o assim em um novo fetiche? No discurso neurocientífico contemporâneo, parece realmente haver menos ciência do que normalmente se imagina.

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