Uma teoria controversa no meio científico, porém amplamente disseminada nos livros de auto-ajuda e também no meio educacional é a Teoria do Cérebro Duplo, também chamada de Teoria dos dois cérebros ou Teoria do Cérebro Dividido. Esta teoria aponta para uma especialização ou lateralização das funções cerebrais entre os dois hemisférios, considerados entidades autônomas. Você já deve ter lido em algum lugar: o lado direito do cérebro seria mais emocional, criativo e visual, enquanto que o esquerdo mais racional, lógico e verbal. Pois bem, esta teoria tem longa tradição não somente no meio educacional, como também no neurocientífico.
Segundo o filósofo Francisco Ortega (neste texto), a história do cérebro duplo pode ser divida em dois momentos, sendo o ponto de corte a descoberta realizada por Paul Broca na década de 1860 de que a faculdade da linguagem estaria localizada no hemisfério esquerdo do cérebro - o que, segundo o autor deu inicio a formulações sobre a assimetria cerebral e sobre a dicotomia entre os hemisférios. Anteriormente, aponta, acreditava-se não haver qualquer diferença funcional entre os dois hemisférios. Os frenologistas, por exemplo, concebiam que cada hemisfério funcionava como um cérebro completo, sendo a loucura entendida como uma “ação independente e incongruente dos hemisférios”. Na mesma direção, Arthur Wigan (1785-1847), autor do livro The duality of the mind, publicado em 1844 (pré-Broca, portanto) concebia os hemisférios cerebrais como cérebros autônomos, completos e distintos, por vezes opostos, que, na saúde governariam um ao outro enquanto que na doença seguiriam caminhos distintos, agindo de forma autônoma. Seu entendimento culmina na proposta de uma “pedagogia cerebral” voltada para o exercício e cultivo do cérebro – e, especificamente, para o desenvolvimento do controle de um hemisfério sobre o outro. Wigan defendia que tal programa de aperfeiçoamento cerebral devia ser absorvido pelos sistemas educativo, penal e de saúde mental de seu tempo.
Segundo o filósofo Francisco Ortega (neste texto), a história do cérebro duplo pode ser divida em dois momentos, sendo o ponto de corte a descoberta realizada por Paul Broca na década de 1860 de que a faculdade da linguagem estaria localizada no hemisfério esquerdo do cérebro - o que, segundo o autor deu inicio a formulações sobre a assimetria cerebral e sobre a dicotomia entre os hemisférios. Anteriormente, aponta, acreditava-se não haver qualquer diferença funcional entre os dois hemisférios. Os frenologistas, por exemplo, concebiam que cada hemisfério funcionava como um cérebro completo, sendo a loucura entendida como uma “ação independente e incongruente dos hemisférios”. Na mesma direção, Arthur Wigan (1785-1847), autor do livro The duality of the mind, publicado em 1844 (pré-Broca, portanto) concebia os hemisférios cerebrais como cérebros autônomos, completos e distintos, por vezes opostos, que, na saúde governariam um ao outro enquanto que na doença seguiriam caminhos distintos, agindo de forma autônoma. Seu entendimento culmina na proposta de uma “pedagogia cerebral” voltada para o exercício e cultivo do cérebro – e, especificamente, para o desenvolvimento do controle de um hemisfério sobre o outro. Wigan defendia que tal programa de aperfeiçoamento cerebral devia ser absorvido pelos sistemas educativo, penal e de saúde mental de seu tempo.
Charles-Édouard Brown-Séquard |
Tal proposta encontra ressonância até hoje em programas do tipo Brain Gym como aquele criado na década de 1980 por Paul Denisson e Gail Denisson, e que consiste de uma série de 26 movimentos “simples e agradáveis” voltados ao aprimoramento do aprendizado, utilizando os dois lados do cérebro. A lógica por trás de ambas propostas é que o hemisfério direito é ativado e fortalecido quando o lado esquerdo do corpo é exercitado, e vice-versa. Como apontam estes autores, os movimentos cruzados, base de sua Educação Cinética, “ajudam a praticar o uso simultâneo dos dois hemisférios, fazendo o X (a interligação) funcionar cada vez melhor!” [Em seu livro Ciência Picareta, o médico Ben Godacre (2013) dedica um capítulo inteiro ao Brain Gym. Segundo ele, “existe um vasto império de pseudociência sendo comercializado por altas cifras nas escolas públicas de todo o Reino Unido, chamado ginástica cerebral . Onipresente em todo o sistema público de educação britânico, foi completamente engolido pelos professores, é apresentado diretamente às crianças e está repleto de bobagens óbvias, constrangedoras e embaraçosas". Para o autor, tais propostas se constituem como uma “privatização espúria do bom senso”, na medida em que, retirado todo o jargão pretensamente científico, o que sobra é a recomendação de pausas regulares entre as aulas, de exercícios físicos intermitentes e de beber muita água. Segundo ele, isto é sensato. O que lhe preocupa, no entanto, é que “este processo de profissionalizar o óbvio alimenta um senso de mistério ao redor da ciência e dos conselhos de saúde, que é desnecessário e destrutivo”]
A proposta neuroeducativa de Brown-Séquard, de certa forma, antecipou, como aponta Ortega, o movimento de ambidestrismo, iniciado no início do século XX. James Liberty Tadd (1854-1917), por exemplo, propôs em seu livro New methods in education, publicado em 1900, um programa neuroascético baseado no ensino ambidestro, voltado para o aperfeiçoamento dos hemisférios cerebrais. De toda forma, a ideia do cérebro duplo foi utilizada e atualizada por neurocientistas, educadores e outros por todo o século XX. Ortega chama atenção para a importância do “movimento” Self-Help (Auto-ajuda), iniciado no século XIX e que teve no século XX seu apogeu. Baseado nas noções de responsabilidade, aperfeiçoamento e autocontrole – não por acaso, considerados ideais pela frenologia – a auto-ajuda rapidamente incorporou a noção de cérebro duplo associada à perspectiva neuroascética de que o cérebro (e cada hemisfério, especialmente o direito) deveria ser treinado e exercitado, como se fosse um músculo. Ortega aponta que um importante tópico na autoajuda tradicional “é a ideia da mente dividida e em luta – sendo uma parte dela insubmissa, devendo ser controlada ou subutilizada”, noção que possui forte proximidade com a tradição do cérebro duplo iniciada por Wigan. O autor aponta também que na época pós-Broca o hemisfério esquerdo passou a ser considerado superior ao direito por estar relacionado a funções “intelectuais e civilizadas”, comumente associadas ao homem branco e europeu; por outro lado, o hemisfério direito, caracterizado como mais emotivo e irracional, foi associado às mulheres, aos negros, aos criminosos, aos loucos, etc, ou seja, a todos aqueles considerados inferiores.
Esta perspectiva que divide o cérebro em dois cérebros autônomos, sendo cada um portador de características específicas, foi incorporada pelo “movimento” da autoajuda, gerando, especialmente a partir da década de 1960, uma amplo mercado de livros e oficinas dedicado ao desenvolvimento ou reabilitação do lado direito do cérebro. Especialmente na pedagogia, Ortega aponta para o surgimento de uma “moda neuroeducativa” que defendia o treinamento escolar do hemisfério direito como contraposição à educação tradicional, que seria baseada no hemisfério esquerdo, de forma a gerar um “equilíbrio hemisférico no currículo”. Tal entendimento encontra até hoje ressonância no campo educacional brasileiro, como sinaliza a publicação do livro O lado direito do cérebro e sua exploração em sala de aula, pelo conhecido educador Celso Antunes. Neste livro, o autor apresenta uma série de jogos e dinâmicas a serem utilizados pelo professor com seus alunos de forma a exercitar e fortalecer o hemisfério direito, considerado mais criativo e intuitivo e, por isso chamado de hemisfério cerebral essencial. Neste sentido, Antunes aponta que “não é, absolutamente, fácil exercitar o hemisfério direito do cérebro face à nossa enraizada prática de quase sempre utilizar-se mais do hemisfério esquerdo”. Temos de um lado, portanto, a educação tradicional, entendida como centrada no hemisfério esquerdo – ou seja, na racionalidade, na lógica, na linguagem verbal – e de outro, propostas que defendem o fortalecimento do lado direito – ou seja, da criatividade, da intuição, da emoção.
Atualmente a teoria do cérebro duplo é rejeitada, sendo considerada neuromito, pelo establishment neurocientífico. Segundo o professor John Geake (nesse artigo), uma característica fundamental do funcionamento cerebral é sua interconectividade, ou seja, o fato de que todas as suas partes interagem de forma ativa umas com as outras. Os neuromitos, por sua vez, tipicamente ignoram tal característica, apontando para uma visão compartimentada/ modularizada do cérebro - caso da teoria do Cérebro duplo. Apesar disso, tal teoria continua sendo amplamente utilizada por autores de livros de autoajuda e também na literatura educacional. Importante ressaltar que tal divergência não se encontra na divisão entre hemisfério esquerdo e direito. Tanto neurocientistas quanto educadores e autores de livros de auto-ajuda concordam que o cérebro possui dois hemisférios conectados por um feixe de filamentos nervosos denominado corpo caloso – e mesmo que cada hemisfério possui funções específicas (o esquerdo, por exemplo, estaria envolvido, em grande parte das pessoas, com os movimentos do lado direito do corpo assim como com o controle da fala, ao passo que o direito com os movimentos do lado esquerdo e com a identificação de categorias gerais). A ideia de lateralização é aceita, em geral, por todos. As divergências se encontram especialmente na ideia, defendida por alguns autores, de que cada hemisfério se constitui enquanto uma entidade autônoma, havendo, portanto, dois cérebros diferentes com funções exclusivas - sendo o esquerdo racional e lógico e o direito emocional, intuitivo e criativo -, assim como no entendimento de que haveria uma variação entre os indivíduos com relação dominância de um hemisfério sobre o outro – sendo o hemisfério esquerdo majoritariamente dominante nos homens e o hemisfério direito nas mulheres. Outra ideia controversa, decorrente desta é de que, sendo constitutivamente diferentes, meninos e meninas deveriam ser educados de maneira diferenciada, mas isto é assunto para um outro post.
Trecho extraído e adaptado da minha dissertação, intitulada "O cérebro vai à escola": um estudo sobre a aproximação entre Neurociências e Educação no Brasil (leia na íntegra aqui).