Quando li este texto da minha amiga Cláudia Ciribelli Rodrigues Silva imediatamente pensei: "tenho que publicá-lo", especialmente por vivermos um momento em que políticas de drogas retrógradas ameaçam tornar-se realidade - isto para não falar das que já se tornaram. Só para situar o leitor: Cláudia é graduada em Psicologia e mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - onde eu também faço meu mestrado. Sob orientação do consagrado psicanalista Joel Birman, ela defendeu, no início deste mês, sua dissertação: "Velhos métodos para novos exóticos: Justiça e Psiquiatria no controle do uso de droga". Neste Guest post, Cláudia faz uma reflexão - e mesmo um desabafo - sobre o sombrio caminho que as políticas sobre drogas tem tomado no Brasil.
No final do ano de 2010, quando decidi levar minha angústia (e também minha causa) para a academia e aprofundar o estudo sobre a política criminal e de saúde sobre droga, não sabia o que me aguardava. Naquele momento, meu questionamento girava em torno da sobreposição tratamento-punição que percebia na abordagem do usuário de droga, que se colocava na interseção desses dois campos discursivos: o discurso jurídico e o discurso médico. O que me intrigava era perceber como, mesmo após a insistência em afirmar o uso de droga como questão de saúde pública e não mais “caso de polícia”, na prática, era difícil perceber uma ruptura a partir dessa distinção, já que o viés repressivo era facilmente perceptível nas abordagens do campo da saúde, mascaradas pelo rótulo de tratamento e, portanto, bem mais sofisticadas e sutis. Certamente, tudo isso só se tornou questão para mim por meu envolvimento e aposta nos princípios da Reforma Psiquiátrica, lentes que me levam a enxergar a evolução e persistência do discurso manicomial na sociedade. E me parecia que os usuários de droga estavam se consolidando como a “bola da vez”. Eu mal sabia o que estava por vir...
De lá pra cá, a coisa piorou, e muito. Lá se foi o otimismo dos primeiros anos do século XXI. Após a aprovação da lei que reorganiza a assistência em saúde mental no Brasil (10.216/2001) e a III Conferência Nacional de Saúde Mental, as esferas da saúde – especialmente da saúde mental – se comprometeram com a assistência ao uso de álcool e outras drogas, na tentativa de recuperar os prejuízos causados por décadas de omissão do campo da saúde nessa área. Omissão esta que permitiu, inclusive, a proliferação das comunidades terapêuticas nas últimas décadas do século XX. Produziu-se, assim (finalmente), a “Política do Ministério da Saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas”, convergente com a política de saúde mental geral, a qual, por sua vez, já havia integrado as propostas reformistas. Prezava-se por investimento em estratégias de redução de danos, considerava-se a voluntariedade do tratamento, priorizava-se a abordagem territorial em detrimento das formas segregativas de tratamento, criticava-se o proibicionismo, vendo-o como uma barreira ao acesso ao cuidado. Estes são alguns dos muitos pontos importantes levantados por esta política que, infelizmente, parece ter sido esquecida antes mesmo que pudesse ser efetivamente implantada...
A chamada “nova lei de tóxicos” de 2006 extinguiu a pena privativa de liberdade para usuários de droga. Ainda que não se tratasse da completa descriminalização e que os critérios de diferenciação usuário/traficante fosse pouco claro – levando ao maior encarceramento dos usuários de classes populares – era um passo (pequeno, é verdade) no sentido de um tratamento menos repressivo do consumo de substância.
De lá pra cá, a coisa piorou, e muito. Lá se foi o otimismo dos primeiros anos do século XXI. Após a aprovação da lei que reorganiza a assistência em saúde mental no Brasil (10.216/2001) e a III Conferência Nacional de Saúde Mental, as esferas da saúde – especialmente da saúde mental – se comprometeram com a assistência ao uso de álcool e outras drogas, na tentativa de recuperar os prejuízos causados por décadas de omissão do campo da saúde nessa área. Omissão esta que permitiu, inclusive, a proliferação das comunidades terapêuticas nas últimas décadas do século XX. Produziu-se, assim (finalmente), a “Política do Ministério da Saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas”, convergente com a política de saúde mental geral, a qual, por sua vez, já havia integrado as propostas reformistas. Prezava-se por investimento em estratégias de redução de danos, considerava-se a voluntariedade do tratamento, priorizava-se a abordagem territorial em detrimento das formas segregativas de tratamento, criticava-se o proibicionismo, vendo-o como uma barreira ao acesso ao cuidado. Estes são alguns dos muitos pontos importantes levantados por esta política que, infelizmente, parece ter sido esquecida antes mesmo que pudesse ser efetivamente implantada...
A chamada “nova lei de tóxicos” de 2006 extinguiu a pena privativa de liberdade para usuários de droga. Ainda que não se tratasse da completa descriminalização e que os critérios de diferenciação usuário/traficante fosse pouco claro – levando ao maior encarceramento dos usuários de classes populares – era um passo (pequeno, é verdade) no sentido de um tratamento menos repressivo do consumo de substância.
Porém, o que vivenciamos nos últimos anos é o rompimento radical com essa tendência, principalmente com a construção do discurso da “epidemia do crack”. O viés repressivo e punitivo retorna com toda força, tanto pelo apelo à manutenção e endurecimento da criminalização como pelo alto investimento em práticas segregativas e involuntárias/compulsórias de tratamento. Vamos na contramão da tendência internacional que, após os efeitos desastrosos do modelo de “guerra às drogas” exportado pelo governo norte-americano, vem levando cada vez mais países a procurarem outros modelos de abordagem. O usuário de droga é visto como aquele que trás o mal, o perigo, o risco. Dessa forma, em uma sociedade cuja relação com o risco é bastante perturbada, pode-se e deve-se fazer qualquer coisa para que ele não perturbe a ordem pública. Pouco importa se é constitucional, legal, moral, ético, ou mesmo eficiente – já que as estatísticas sobre a eficácia da internação são pouco animadoras e, mesmo assim, não a abandonam. Afinal, eficiente para que? Eficiente para quem?
Faz-se um grande esforço para dissociar o uso de droga do contexto social e cultural no qual se produz. Não seria a sociedade atual generalizadamente entorpecida? O consumo astronômico de psicofármacos não seria o outro lado da mesma moeda?
Essas são somente algumas das muitas questões que podem ser levantadas (para não me estender além da conta), demonstrando a complexidade do problema. E, nesse momento, acima de tudo, é isso que precisamos buscar: que esta seja tratada como uma questão complexa. Sem soluções simplistas, reducionistas e covardes. É fato que ainda não se sabe bem o que fazer para enfrentar o problema, mas isso não nos autoriza a fazer qualquer coisa. Seja no campo acadêmico, médico, assistencial, militante, jurídico, etc. Se começarmos por reconhecer a complexidade da questão, certamente, seremos capazes de construir alternativas mais interessantes.
Bem, a essa altura, pode ser que alguém vire para mim e diga: “cresça e apareça, menina. Quem é você? Eu tenho 30 anos de experiência nisso”. Eu sou Claudia, e eu luto para que daqui 30 anos eu possa ver uma política de drogas muito melhor que essa no meu país.
Que tal voltarmos à luta por uma sociedade sem manicômios?
Que tal voltarmos à luta por uma sociedade sem manicômios?