“São os ociosos que transformam o mundo, porque os outros não têm tempo algum”
Albert Camus
“A preguiça é o melhor dos sete pecados,
pois ela te impede de cometer os outros seis"
Autor anônimo
Tenho que confessar: sou um preguiçoso. Tenho preguiça de acordar cedo, de fazer exercícios e até mesmo de comer laranja porque preciso descascá-la. Também tenho preguiça de escrever. E, por causa desta preguiça, fui adiando a escrita desse texto até o último momento, quando já não tinha mais como fugir. Ou seja, além de preguiçoso sou um procrastinador – e você já se deu conta de que a procrastinação é uma espécie de prima-irmã da preguiça? Apesar disso, não me considero uma pessoa improdutiva. Tento me inspirar nos princípios da chamada “procrastinação positiva”. Sim, isso existe! Como aponta o filósofo John Perry, autor do livro "A arte da procrastinação", em um artigo do jornal New York Times, "procrastinadores raramente fazem absolutamente nada". Só não fazem o que deveriam estar fazendo. Portanto, para ser um ‘procrastinador produtivo’ deve-se seguir o princípio de que "qualquer um pode fazer qualquer quantidade de trabalho, desde que não seja o trabalho que pretensamente se deveria estar fazendo naquele momento". Não é um bom princípio este? Às vezes consigo segui-lo, às vezes não. Neste caso, adiei porque escrever sobre preguiça dá muito trabalho. Aliás, escrever dá muito trabalho. E tudo que dá trabalho, que exige esforço, gera preguiça.
Aliás, preguiça e trabalho quase sempre andaram de mãos dadas. Quem não trabalha ou não quer trabalhar é entendido, até hoje, como vagabundo, preguiçoso, indolente. “Vai trabalhar vagabundo”, diz aquela música do Chico Buarque. O dicionário Aurélio define preguiça, antes de tudo, como “aversão ao trabalho”, mas também como “morosidade, negligência, moleza, indolência”. A própria noção de preguiça como um pecado capital tem relação com este entendimento. Num mundo dominado pela ideologia cristã, uma forma astuta de fazer as pessoas trabalharem – e mais: desejarem trabalhar - foi disseminar as ideias de que a preguiça é algo condenável e de que “o trabalho enobrece o homem”. E isto foi tão difundido no mundo ocidental, especialmente após a Reforma Protestante no século XVI, que se tornou uma espécie de verdade inquestionável. O trabalho nos define de tal maneira na atualidade, que ficar desempregado é como perder uma parte importante de si mesmo. Como diz aquela música do Legião Urbana, “Sem trabalho eu não sou nada/ Não tenho dignidade/ Não sinto o meu valor/ Não tenho identidade”. Isto é tão forte em nossa sociedade que logo que somos apresentados a uma pessoa, a primeira coisa que normalmente fazemos é perguntar “O que você faz?”. E a partir de sua resposta (“Sou psicólogo”, “Sou cozinheiro”, “Sou gari” – e perceba como vinculamos o que fazemos com o que somos) elaboramos uma série de julgamentos que influenciarão de forma significativa a maneira de nos relacionarmos com tal pessoa.
No entanto, anteriormente à ascensão do capitalismo como sistema econômico e social hegemônico, o trabalho foi visto, muitas vezes, de uma forma negativa. A própria Igreja Católica considerou, por um bom tempo, o trabalho como algo que afastava os homens das orações e, logo, de Deus. A preguiça era entendida não como preguiça de trabalhar, mas como preguiça de orar e se dedicar a Deus. Santo Agostinho chamava de “ócio santo” justamente o tempo necessário para se dedicar à contemplação e à oração. Antes disso, os gregos, especialmente os atenienses, valorizavam o ócio muito mais do que o trabalho. Interessante constatar que a palavra escola deriva do grego skole, que significa ócio. Ou seja, as escolas para os gregos eram considerados locais de ócio – de um ócio criativo, como diria muito tempo depois o sociólogo Domenico De Masi. Para os atenienses, os homens sábios deveriam se dedicar às ideias e ao espírito. Desta forma, estar ocioso não significava estar fazendo nada (aliás, o que é estar fazendo nada?), mas sim, "dedicar-se operações de natureza intelectual e espiritual que se traduziam no exercício da contemplação da verdade, do bem e da beleza, de forma não utilitária" . Segundo Paul Lafargue, autor do livro-manifesto “Direito à preguiça”, publicado em 1880, ”os filósofos da antiguidade ensinavam o desprezo pelo trabalho, essa degradação do homem livre; os poetas cantavam a preguiça, esse presente dos Deuses”. Importante se atentar que para realizar os trabalhos manuais existiam os escravos. O ócio e a atividade intelectual eram privilégio dos homens livres.
Esta visão negativa do trabalho está presente na própria origem da palavra trabalho, do latim tripalium, que designa um instrumento de tortura. Da mesma forma, labor, denota sofrimento, dor, fadiga. Tal visão do trabalho enquanto algo sofrido ou penoso aparece até mesmo no Velho testamento, quando Adão e Eva são expulsos do paraíso e condenados ao trabalho árduo como forma de expiar o pecado cometido. "Com o suor do teu rosto comerás teu pão", teria dito Deus a Adão. Já Eva Deus teria condenado às dores de parto. E não por acaso, todo este doloroso processo é chamado de “trabalho de parto”. Por sua vez, o ócio aparece na Bíblia majoritariamente de uma forma positiva. Por exemplo, após criar o céu, a terra e tudo o mais, Deus teria se permitido, no sétimo dia, um momento de descanso para contemplar sua obra. A recomendação de não se trabalhar aos sábados vem daí. Posteriormente, o filósofo Sêneca apontava para uma divisão entre o otium (ócio) e o negotium (negócio, negação do ócio), na qual o primeiro era associado à contemplação, ao estudo, ao autoconhecimento e à serenidade enquanto o segundo ao trabalho repetitivo e estressante – tal como o trabalho a que Sísifo foi condenado, e que virou sinônimo de uma atividade laboral esgotante e inútil. Até hoje tal conotação se faz presente em expressões como “escrever dá trabalho” ou “tal tarefa é trabalhosa”. Com tudo isso quero apontar que o ócio (e o trabalho) nem sempre tiveram o sentido que possuem hoje. E, da mesma forma, nem sempre o ócio e a preguiça foram vistos como coisas negativas e o trabalho como algo indispensável para o bem-viver.
Já a noção de preguiça enquanto um pecado capital é quase tão antiga quanto o próprio cristianismo. Diz-se que no final do século VI o papa Gregório Magno, tomando como referência as cartas do apóstolo São Paulo, determinou os pecados capitais (capital vem do latim caput, cabeça, chefe, líder), ou seja, os pecados mais graves – opostos, de certa forma, aos chamados pecados veniais, mais leves e perdoáveis. Sete pecados foram definidos como capitais: a Soberba, a Avareza, a Gula, a Luxúria, a Inveja, a Ira e a Preguiça. Mas tal lista só teria sido oficializada na Igreja Católica no século XIII, a partir da Suma Teológica, escrita por São Tomás de Aquino. Posteriormente a Igreja definiu as sete virtudes fundamentais, que deveriam servir como uma espécie de antídoto aos pecados capitais. São elas: a Humildade (oposta à soberba), a Generosidade (oposta à avareza), a Temperança (oposta à Gula), a Castidade (oposta à Luxúria), a Caridade (oposta à inveja), a Paciência (oposta à ira) e, finalmente, a Diligência – entendida como a presteza ou prontidão para a ação, e, portanto, como “remédio” para a preguiça.
É possível interpretar a criação e disseminação da noção de pecados capitais (e mesmo de virtudes fundamentais) como uma tentativa de controle de certas questões humanas, demasiada humanas, como diria Nietzsche. Em um debate realizado no Brasil, o escritor português e eminente crítico das religiões, José Saramago, disse o seguinte: “Quando a Igreja inventou o pecado, inventou um instrumento de controle. Um instrumento de controle dos corpos. Porque aquilo que perturba a igreja católica é o corpo: o corpo com sua liberdade, o corpo com seus apetites, o corpo com suas ansiedades” (e, poderíamos acrescentar, o corpo com suas preguiças). Concordo com ele. Os pecados são uma tentativa – um tanto quanto infrutífera – de controlar o que há de mais humano em nós mesmos. Afinal quem nunca sentiu inveja e desejou ter a grama tão verde como a do vizinho? Quem nunca foi tomado pela gula quando se sentiu ansioso ou triste? Quem nunca foi avarento, pão duro ou apegado às próprias coisas ou ao dinheiro? Quem nunca foi tomado por uma paixão e desejou uma pessoa de forma luxuriosa? Quem nunca ficou irado quando contrariado ou quando se deparou com uma injustiça? Quem nunca foi tomado pela soberba quando atingiu algum objetivo de vida? E finalmente, quem nunca sentiu vontade de não fazer nada de produtivo, de simplesmente vagabundear? Que jogue a primeira pedra quem nunca fez (ou desejou fazer) como na música Lazy Song, do Bruno Mars: “Hoje eu não estou com vontade de fazer nada/ Só quero ficar deitado na cama/ Não quero atender o telefone/ Então deixe o recado na secretária eletrônica/ Pois juro que hoje eu não quero fazer nada/ Vou ficar com os pés pro alto olhando para o ventilador/ Vou ligar a TV, ficar com as mãos no bolso/ Ninguém vai me dizer que não posso fazer isso/ Porque no meu castelo quem manda sou eu”. Pela lógica da Igreja (e mesmo do mundo do trabalho), o preguiçoso deve se sentir culpado e mesmo ser punido pelo que deixou de fazer.
Esta visão crítica dos pecados como instrumentos de controle se evidencia também no fato de que, por exemplo, a alcunha de “preguiçoso” foi e ainda é utilizada basicamente para se referir aqueles que estão na base da pirâmide social ou a grupos socialmente marginalizados. Durante o período colonial, os índios e os escravos eram considerados “naturalmente” preguiçosos e indolentes. Outro exemplo são os baianos, que até hoje são alvo de piadas por supostamente serem preguiçosos. Para a antropóloga Elisete Zanlorenzi, autora da tese “O mito da preguiça baiana”, tal visão é completamente falsa. Segundo ela, o entendimento do baiano como culturalmente preguiçoso teve início com o intenso movimento migratório de nordestinos - genericamente chamados de “baianos” - para o sul do país, especialmente São Paulo, a partir da década de 40. Predominantemente negros e pobres, se instalaram em precários cortiços e favelas e tiveram grande dificuldade em conseguir emprego. Segundo Elizete, "estas condições contribuíram para que o termo baiano fosse associado a outros como sujo, desorganizado, não produtivo e, finalmente, preguiçoso" (fonte). Além disso, a pesquisadora aponta para a contribuição da indústria do turismo e da imprensa na disseminação da imagem do baiano como preguiçoso. Finalmente, Elizete afirma que os próprios artistas baianos, como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Dorival Caymmi, têm sua parcela de responsabilidade na popularização desta imagem. "Eles chegavam no eixo Rio-São Paulo afirmando serem preguiçosos. Era como dizer: eu não sou daqui", aponta a pesquisadora.
Relacionado a esta visão, li certa vez que o compositor baiano Dorival Caymmi, passava várias horas do dia olhando para o mar, contemplando sua beleza. Independente disto ser verdade ou mentira – e sem desejar reforçar o mito da preguiça baiana - gostaria de trazer a discussão para o presente e propor o seguinte questionamento: você consegue imaginar tal comportamento no mundo atual? Num mundo hiperconectado e hiperativo como o nosso, a contemplação (e a preguiça) tem cada vez menos espaço. Cada vez menos olhamos para o mar ou para o céu ou ainda para as pessoas. Tenho observado nas ruas, que o comportamento padrão de muitas pessoas quando estão sentadas esperando o ônibus ou dentro do metrô é ficarem mexendo ininterruptamente no celular ou no tablet. Parecem imersas naquele mundo virtual, como que ignorando o mundo real à sua volta. Cada vez mais olhamos menos para o mundo e para as outras pessoas. Ao mesmo tempo, nunca interagimos tanto, nunca estivemos tão interligados, nunca tivemos tão próximos de pessoas distantes fisicamente de nós. Se perdemos por um lado, ganhamos por outro, obviamente. Mas, de fato, temos perdido, cada vez mais, a capacidade de contemplar o mundo. E isso tem consequências.
Como aponta o jornalista Carl Honoré, autor do livro “Devagar”, atualmente cultuamos o “evangelho do sempre-mais-depressa”. E de acordo com este evangelho, devemos prezar sempre pela velocidade e pela quantidade, em detrimento da calma e da qualidade. Devemos ocupar nosso dia (e das nossas crianças) com o máximo de atividade que pudermos. Devemos manter nossa mente sempre ocupada, afinal, “cabeça vazia é oficina do diabo”. Devemos trabalhar o máximo e dormir o mínimo. Não podemos nos esquecer que “Tempo é dinheiro”. Devemos andar depressa, comer depressa, transar depressa, amar depressa. A vida é curta, não há tempo a perder. Devemos viver o máximo, aproveitar o máximo, gozar o máximo. O ócio e a preguiça devem ser evitados a todo custo. O problema é que, como aponta Honoré, “certas coisas não podem nem devem ser apressadas. Elas levam tempo, precisam de lentidão. Quando aceleramos coisas que não devem ser aceleradas, quando esquecemos como é possível moderar o ritmo, sempre pagamos um preço”. E este preço tem sido cada vez mais alto. Estamos cada vez mais ansiosos, mais deprimidos, mais doentes do corpo e da alma. E toda esta velocidade certamente contribui para este mal-estar contemporâneo.
Mas felizmente, como reação a esta brutal apropriação do tempo pelo capitalismo contemporâneo, um contingente cada vez maior de pessoas tem aderido à filosofia Slow e tentado ir mais devagar. Como aponta Honoré, “enquanto o resto do mundo vai em frente vociferando, uma minoria considerável e cada vez maior opta por não fazer tudo com o pé no acelerador. Em todas as esferas de ação humana que você possa imaginar, de sexo, trabalho e exercícios a alimentos, medicina e urbanismo, estes rebeldes vem fazendo o impensável – estão abrindo espaço para a lentidão”. Num mundo que anda com tanta pressa, nada mais revolucionário do que ir devagar. Nada mais rebelde do que ser um pouco preguiçoso. Está lá na Bíblia: “Todo aquele que vive habitualmente no pecado também vive na rebeldia, pois o pecado é rebeldia” (João 3:4). Então, que sejamos rebeldes. Viva o ócio! Viva a vagareza! Viva a preguiça!
Texto originalmente publicado aqui.