A mais recente batalha da "psicóloga cristã" M. L., sobre quem escrevi em post recente, contra o Conselho Federal de Psicologia (CFP), se deve à posição contrária deste com relação à destinação de recursos federais para a manutenção das comunidades terapêuticas no tratamento de dependentes químicos. No manifesto "Por uma política de álcool e outras drogas não segregativa e pública" (ler aqui), o CFP afirma o seguinte:
"Preocupa-nos, de modo particular, a defesa da internação compulsória e das comunidades terapêuticas, dois modos de resolver a questão recorrendo à exclusão e a segregação. Tais soluções opõem-se, radicalmente, aos princípios que sustentam o compromisso desse governo de trabalhar pela ampliação da cidadania e inclusão de todos. Portanto, não tem como dar certo!"
Em outro documento, é ainda mais claro:
"Comunidades terapêuticas não são dispositivos de saúde pública. São a versão moderna dos antigos manicômios, seja pela função social a elas endereçada, quanto pelas condições de uma suposta assistência ofertada. Elas reintroduzem o isolamento das instituições totais, propondo a internação e permanência involuntárias, centram suas ações na temática religiosa, frequentemente desrespeitando tanto a liberdade de crença quanto o direito de ir e vir dos cidadãos. Portanto, rompem com a estrutura de rede que vem sendo construída pelo SUS, não havendo qualquer justificativa técnica para seu financiamento público".
No último dia 28 de Novembro, o CFP lançou o Relatório da 4ª Inspeção Nacional de Direitos Humanos: locais de internação para usuários de drogas. Segundo o site do Conselho, este relatório traz o resultado de vistorias em 68 instituições de internação para usuários de drogas, em 24 estados brasileiros e no Distrito Federal. O documento aponta para várias formas de violação dos direitos humanos em todos os locais visitados, dentre elas, interceptação e violação de correspondências, violência física, castigos, torturas, exposição a situações de humilhação, imposição de credo, intimidações, desrespeito à orientação sexual, revista vexatória de familiares, violação de privacidade, dentre outras. Na conclusão, o relatório aponta para a inexistência de cuidado e de promoção de saúde nestes lugares.
A questão central para o CFP, no meu entendimento, não é se as comunidades terapêuticas devam existir ou não, mas se o governo deve ou não destinar recursos públicos para sua manutenção. Na referida carta para a Presidente Dilma, o CFP afirma que "as comunidades terapêuticas não cabem no SUS". Para a entidade, o tratamentos dos usuários de álcool e drogas "deve seguir os princípios do SUS e da Reforma Psiquiátrica, sendo também este o caminho a ser trilhado pelo financiamento: a ampliação da rede substitutiva". Neste sentido, apresenta algumas propostas concretas:
"O Brasil precisa de mais CAPS-ad, necessita que os mesmos tenham condições que os permitam funcionar vinte e quatro horas, carece de leitos em hospital geral, de casas de acolhimento transitório, consultórios de rua, equipes de saúde mental na atenção básica, de estratégias de redução de danos e de políticas públicas intersetoriais. Este deve ser o endereço dos recursos públicos!"
Na contramão das posições do CFP, está M.. Segundo texto disponibilizado em seu blog M. afirma que "pesquisas comprovam que o índice de recuperação em clínicas ou em Centros de Atendimento Psicanalíticos (CAPs), não passam de 2 a 6 % no máximo enquanto que em comunidades terapêuticas (religiosas) esse índice sobe para 32 a 42%". Primeira coisa: será que ela não está se referindo aos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)? Sinceramente, nunca ouvi falar em Centros de Atendimentos Psicanalíticos. Pesquisei no Google e não encontrei nada. Devo estar mal informado. Segunda coisa: de onde ela tirou estes números? Como assim "pesquisas indicam"? Quais pesquisas? Ela não cita a fonte, nem explica o que entende por "recuperação". O que é uma pessoa recuperada? Uma pessoa que parou de beber ou de usar drogas completamente? Quanto tempo de abstinência é necessário para dizer que esta pessoa foi recuperada? Além disso, uma pessoa que diminuiu o uso não estará recuperada, de certa forma? São muitas perguntas sem respostas. Segue M.:
"O que me assusta, é um Conselho de Psicologia com total desconhecimento de tratamento e prevenção às drogas. São profissionais que não devem ter tido nenhuma experiência concreta e real com tratamento, além de teorias falíveis, que podem com a morosidade de seu tratamento levar o individuo a morte, pois em se tratando de crack, oxi, cristal a morte está muito próxima, e talvez somente o tratamento em consultório de psicologia, sem um internamento compulsório, pode não ajudar".
Inicialmente, M. desqualifica o CFP por seu distanciamento da realidade e por suas "teorias falíveis". Mas terá ela uma teoria infalível? A seguir utiliza a retórica do medo. Fala em Crack, em Oxi, em morte, como se quem fosse contra as comunidades terapêuticas fosse a favor da morte dos usuários. Concordo que, às vezes, uma internação temporária é necessária, tanto para uma desintoxicação inicial quanto diante da possibilidade da pessoa se ferir ou ferir outras pessoas. Mas este tipo de internação pode, muito bem, ser breve e ambulatorial, o que difere imensamente das internações típicas das comunidades terapêuticas que costumam ser longas; às vezes, muito longas. No mesmo parágrafo, M. defende ainda a polêmica internação compulsória e se equivoca tremendamente ao afirmar que "somente o tratamento em consultório de psicologia pode não ajudar". Não é isso que o CFP defende! Não sei daonde que ela tirou isso... criticar a posição do CFP om argumentos com esse, demonstra sua enorme ignorância (ou será má-fé? Ou haverão intere$$es por trás?) sobre o assunto. Continua M.:
"É lamentável, que um conselho de psicologia mais uma vez, com uma minoria de psicólogos, estejam empurrando goela abaixo de uma população e de profissionais, tais decisões que não expressam, de forma alguma, a opinião de centenas de profissionais que trabalham e voluntariam na área e em comunidades terapêuticas. Como psicóloga atuante dentro de comunidades terapêuticas e como coordenadora de curso que ensina programas terapêuticos, sei que temos abusos em situações isoladas, mas estas são a minoria. Não podemos generalizar, a maioria dos internos são acolhidos de forma humanizada ao contrário do que diz o CFP. O que talvez incomode este cidadão [o presidente do CFP, Humberto Verona] seja o fato de que estes usuários tem a oportunidade de entender que não estão só, que há um poder superior capaz de devolver a sanidade e isso tem feito a diferença na recuperação".
Na minha humilde opinião, o grande problema das comunidades terapêuticas é a lógica da exclusão/ segregação, o pensamento de que a única solução possível consiste no afastamento do usuário de sua comunidade. A reforma psiquiátrica nos ensinou que existem formas alternativas, mais inclusivas, de se lidar com certas questões. Concordo com o CFP neste ponto. No entanto, o fato de existirem graves problemas de direitos humanos nas comunidades terapêuticas não significa que todas elas devam ser interditadas ou que todos os tratamentos de cunho religiosos devam ser ignorados. Seria como proibir o funcionamentos dos hospitais porque em alguns pessoas morrem por infecção hospitalar. O que deve ser combatido é a infecção hospitalar, não o hospital. Da mesma forma, o que acho que deva ser combatido são as violações dos direitos humanos, não as comunidades terapêuticas em si. Como dizem, não se deve jogar fora a criança com a água da bacia. Acredito, mesmo sendo ateu, que tratamentos de cunho religioso podem ser úteis para algumas pessoas - mas não para todos, com absoluta certeza.
Agora, uma coisa é a pessoa ou a família escolher a internação em uma comunidade terapêutica. Outra, muito diferente, é o governo contribuir financeiramente, com dinheiro público, para a manutenção destas instituições. E outra coisa, mais absurda ainda, é o governo financiar estas instituições sem estabelecer regras mínimas e sem realizar fiscalizações sistemáticas - o que equivale a entregar um cheque em branco. E parece que é exatamente isto que os donos de algumas comunidades terapêuticas pleiteiam. Concordo plenamente com a seguinte afirmação contida em uma carta aberta destinada à Pres. Dilma: "Que a escolha por uma comunidade terapêutica e pela supressão dos direitos de cidadania seja a opção de alguns é algo que só pode ser respeitada no plano da decisão individual, mas jamais como oferta da política pública e resposta do Estado à sociedade". Assim como o CFP, não concordo com a destinação de verbas públicas para entidades privadas, da mesma forma que, ideologicamente, não defendo programas como o ProUni, embora aceite que ele contribui, a curto prazo, para a ampliação do acesso ao ensino superior. Como afirma o CFP na referida carta:
"Submeter a saúde a interesses privados, à lógica de mercado, é fazê-la retroceder ao ponto que inaugurou o SUS como direito; é impor a saúde à dimensão de objeto mercantil, gerador de lucro para alguns e dor para muitos. Submeter o Estado e as políticas públicas a crenças e confissões, fere um princípio constitucional e a dimensão laica do mesmo".