Esta semana finalizei a leitura do recém-lançado livro "A mulher trê mula: uma história dos meus nervos" (Companhia das Letras, 2011, 204 pgs), da escritora Siri Hustvedt. Sensacional! Este ensaio autobiográfico começa com o relato de uma terrível tremedeira que a autora teve ao proferir um discurso em homenagem ao seu pai, falecido dois anos antes. Segundo ela, seus braços e mãos se movimentavam convulsivamente, ao mesmo tempo que, curiosamente, sua voz continuava sendo emitida com clareza e segurança.
Este episódio - a que se seguiriam outros - desencadeia em Siri a necessidade de entender o que se passou. Segundo ela, "a curiosidade intelectual sobre uma doença que estamos enfrentando nasce sem dúvida de um desejo de domínio. Se eu não podia me curar, talvez conseguisse pelo menos começar a me entender melhor". Siri empreende, então, uma busca por explicações para sua condição. Demonstrando enorme erudição, a autora passeia pelas teorias psicanalíticas com a mesma desenvoltura que pelas explicações neurocientíficas, psiquiátricas e sociológicas, transitando da literatura para a ciência com uma habilidade invejável. Indo mais fundo, discorre até mesmo sobre o problema mente/cérebro, fazendo críticas pertinentes à neurociência e à psiquiatria moderna, que pretendem reduzir tudo ao cérebro. Afirma Siri: "Como ocorre com frequência, as pessoas preferem respostas fáceis. No ambiente cultural de hoje, uma doença cerebral orgânica soa reconfortante. Meu filho não é louco: o cérebro dele apresenta problemas".
Mas Siri não se furta de criticar também a psicanálise. Para ela, "o fato de Freud estar certo no tocante a alguns aspectos da mente não impede que ele se equivoque em relação a outros. E haveria alguma razão para insistir em adotar ou rejeitar uma teoria como um todo?" Penso exatamente como ela. Não acredito que nenhuma teoria sozinha seja capaz de dar conta da complexidade humana e é por esse motivo que não me filiei a nenhuma abordagem psicológica até hoje. Não que eu seja a-teórico, mas tento ser crítico e receptivo a todas as teorias. Como li certa vez, não me lembro bem aonde, atuar dogmaticamente é agir como o alfaiate que costura roupas somente de um tamanho e espera que todos caibam nelas. Acredito que uma postura anti-dogmática como a apresentada por Siri faria muito bem à alguns psicólogos. Neste mesmo sentido, ela afirma: "Jamais fui capaz de aceitar que qualquer sistema, por mais sedutor que pareça, possa abranger as ambiguidades inerentes a ser uma pessoa no mundo"
Um ponto importante de sua narrativa refere-se à questão de referir-se à sua "doença" na primeira ou na terceira pessoa. É comum, em meus atendimentos, escutar pacientes dizendo frases do tipo "eu não fui trabalhar por causa da depressão" ou "a bulimia me fez vomitar" ou "comprei demais por causa do transtorno bipolar". Os rótulos psiquiátricos são tratados quase como entidades que os invadem e os obrigam a fazer determinadas coisas. O indivíduo parece ter pouca responsabilidade sobre seus atos, como se dissessem "não fui eu, foi a Depressão" ou "não fui eu, foi meu Cérebro" (da mesma forma que algumas pessoas de certas religiões afirmam "não fui eu, foi o demônio"). Outras pessoas, na contramão, afirmam SER depressivas, SER ansiosas, SER bipolares. Não é algo que elas têm, mas algo que elas são. O "transtorno" não vem de fora, mas surge de dentro. Enfim, a pessoa É o transtorno. Sobre esta questão Siri afirma:
"Toda doença possui uma característica alienante, um sentimento de invasão e perda de controle evidente na linguagem que utilizamos para falar dela. Ninguém diz 'sou um câncer' ou mesmo 'sou canceroso', apesar de não haver de fato invasão de vírus ou bactéria; o que muda é o comportamento das células do corpo. A pessoa têm um câncer. No entanto, doenças neurológicas e psiquiátricas, são diferentes, pois com frequência atacam a fonte do que o indivíduo imagina ser sua personalidade. 'Ele é epilético' não soa estranho para nós. Numa clínica psiquiátrica os pacientes costumam dizer 'sou bipolar' ou 'sou esquizofrênico'. A doença e a personalidade se identificam inteiramente nessas sentenças".
Quase no final do livro, analisando a enxaqueca que sofre desde a infância, afirma: "A dor de cabeça sou eu, e compreender isso tem sido minha salvação. Talvez o truque agora seja integrar a mulher trêmula, reconhecer que ela faz parte de mim". Em seu tortuoso processo de conhecimento de si e do mundo, Siri nos presenteia com importantes reflexões sobre a memória e o esquecimento, sobre a saúde e a doença, sobre a mente e o cérebro, sobre a vida e a morte e finaliza o livro dizendo: "Em maio de 2006 eu comecei a falar sobre o meu pai. Assim que abri a boca, uma tremedeira violenta tomou conta de mim. Tremi naquele dia, tremi de novo em outros momentos. Eu sou a mulher trêmula".