sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Calligaris versus Justino


Reproduzo abaixo um texto brilhante do psicanalista Contardo Calligaris, publicado ontem (dia 20 de Agosto) no jornal Folha de São Paulo, sobre o "Caso Rozângela Justino".

Discordar do nosso próprio desejo 

Em 31 de julho, o Conselho Federal de Psicologia repreendeu a psicóloga Rozângela Alves Justino por ela oferecer uma terapia para mudar a orientação sexual de pacientes homossexuais. Não quero discutir a "possibilidade" desse tipo de "cura" (afinal, reprimir o desejo dos outros e o nosso próprio é uma atividade humana tradicional), mas me interessa dizer por que concordo com a decisão do Conselho.

A revista "Veja" de 12 de agosto publicou uma entrevista com Alves Justino, na qual ela explica sua posição. No fim, a psicóloga manifesta seu temor do complô de um "poder nazista de controle mundial", que estaria querendo "criar uma nova raça e eliminar pessoas", graças a políticas abortistas, propagação de doenças sexualmente transmissíveis etc.
 
Para ser psicoterapeuta, não é obrigatório (talvez nem seja aconselhável) gozar de perfeita sanidade mental. É possível, por exemplo, que um esquizofrênico, mesmo muito dissociado, seja um excelente psicoterapeuta (há casos ilustres). Mas uma coisa é certa: para ser terapeuta, ser inspirado por um conjunto organizado de ideias persecutórias é uma franca contraindicação.
 
Na verdade, pouco importa que as ideias em questão sejam ou não persecutórias e delirantes: de um terapeuta, espera-se que ele deixe suas opiniões e crenças (morais, religiosas, políticas) no vestiário de seu consultório, a cada manhã. Quando, por qualquer razão, isso resultar difícil ao terapeuta, e ele sentir a vontade irresistível de converter o paciente a suas ideias, o terapeuta deve desistir e encaminhar o caso para um colega. Por quê?
 
Alves Justino, com sua aversão por homossexualidade, sadomasoquismo e outras fantasias sexuais, ilustra a regra que acabo de expor. Explico.
 
A psicóloga defende sua prática afirmando que a psiquiatria e a psicologia admitem a existência de uma patologia, dita "homossexualidade ego-distônica", que significa o seguinte: o paciente não concorda com sua própria homossexualidade, e essa discordância é, para ele, uma fonte de sofrimento que poderíamos aliviar - por exemplo, conclui Alves Justino, reprimindo a homossexualidade.
 
De fato, atualmente, psiquiatria e psicologia reconhecem a existência, como patologia, da "orientação sexual ego-distônica"; nesse quadro, alguém sofre por discordar de sua orientação sexual no sentido mais amplo: fantasias, escolha do sexo do parceiro, hábitos masturbatórios etc. Existe, em suma, um sofrimento que consiste em discordar das formas de nosso próprio desejo sexual, seja ele qual for (alguém pode sofrer até por discordar de sua "normalidade"). Pois bem, nesses casos, o que é esperado de um terapeuta?

Imaginemos um nutricionista que receba uma paciente que se queixa de seu excesso de peso, enquanto ela apresenta uma magreza inquietante: ela tem asco da forma de seu próprio corpo, que ela percebe como enorme e que ela não aceita como seu. O nutricionista não tentará nem emagrecer nem engordar sua paciente, pois o problema dela não é o peso corporal, mas o fato de que ela discorda de si mesma a ponto de não conseguir enxergar seu corpo como ele é.

No caso da orientação sexual ego-distônica, vale o mesmo princípio: o problema do paciente não é seu desejo sexual específico, mas o fato de que ele não consegue concordar com seu próprio desejo, seja ele qual for. As razões possíveis dessa discordância são múltiplas. Por exemplo, posso discordar de meu desejo sexual porque ele torna minha vida impossível numa sociedade que o reprime (moral ou judicialmente) e cujas regras interiorizei. Ou posso discordar de meu desejo porque ele não corresponde a expectativas de meus pais que se tornaram minhas próprias. E por aí vai.

Nesses casos, o terapeuta que tentar resolver o problema confiando em sua visão do mundo e propondo-se "endireitar" o desejo de quem o consulta, de fato, só agudizará o conflito (consciente ou inconsciente) do qual o paciente sofre. Ora, é esse conflito que o terapeuta deve entender e, se não resolver, amenizar, ou seja, negociar em novos termos, menos custosos para o paciente. Em outras palavras, diante da ego-distonia, o terapeuta não pode tomar partido nem pelo desejo sexual do paciente, nem pelas instâncias que discordam dele.

Ou melhor, ele pode, sim, só que, se agir assim, ele deixa de ser terapeuta e vira militante, padre ou pastor.
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Um comentário:

MS Pesquisa e Consultoria disse...

SENTENÇA HISTÓRICA NO TRF5 EM RECIFE - PE.

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA CONDENADO DANOS MORAIS NO TRF5 . ACÓRDÃO RELATOR DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ MARIA LUCENA .PROC. ORIGINÁRIO Nº: 200581000061341 - Justiça Federal – CE. ADMINISTRATIVO. AFIRMAÇÃO INVERÍDICA DIVULGADA POR PREPOSTO DO CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA EM REVISTA DE CIRCULAÇÃO NACIONAL. DANOS MORAIS. NEXO DE CAUSALIDADE. DEVER DE INDENIZAR.

TRECHOS DO ACÓRDÃO:

1.Trata-se de apelação cível interposta pelo Conselho Federal de Psicologia contra a sentença que julgou parcialmente procedente os pedidos formulados e condenou a referida autarquia a pagar ao autor, a título de indenização por dano moral, a importância de R$ 23.250,00 (vinte e três mil, duzentos e cinquenta reais), equivalente, em dezembro de 2009, a cinquenta (50) salários-mínimos, acrescido de correção monetária e juros legais, a contar da citação.(...) Entretanto, no contexto apresentado, há um ato imputável ao Conselho Federal de Psicologia que tem repercussão no campo da responsabilidade civil, portanto, adequado a ensejar a pretendida indenização por danos morais. O mencionado ato consistiu na entrevista do então vice-presidente do CFP, Sr. Marcus Vinicius Oliveira, em revista de circulação nacional (INTERNET.BR, ano 4, nº 51), declarou: Ele já teve um processo com a Polícia Federal por cobrar consultas, referindo-se ao autor.

6.Considerando que o autor comprovou que nunca foi alvo de inquérito policial junto ao DPF, consoante o documento acostado, a conduta do preposto do CFP deve ser enquadrada como ilícita e ofensiva à honra do demandante, sendo devida à reparação civil através da indenização a título de danos morais pleiteada.