terça-feira, 16 de julho de 2024

"No coração do suicídio há sempre um mistério": uma resenha do livro "O que não tem nome"

"Qual o tamanho da dor de quem se despede de si mesmo?". Pois esta é uma das muitas perguntas feitas pela escritora colombiana Piedad Bonnett no livro "O que não tem nome", recém-lançado pela Editora DBA. Neste livro autobiográfico brilhante e aterrador, lançado originalmente em 2013, a escritora relata e reflete sobre uma das situações mais trágicas que uma pessoa pode vivenciar: a morte de um filho. Mas no caso de Piedad a situação foi ainda mais dramática. Seu filho Daniel não morreu por acidente ou de causas naturais. Ele se suicidou - e não de qualquer maneira: ele se jogou do sexto andar do prédio em que morava em Nova York. E ele fez isso aos 28 anos de idade enquanto fazia um mestrado na Universidade de Columbia. E logo após cremarem o corpo do filho, Piedad afirma ter sido tomada por um "impulso investigativo" cuja motivação era compreender quem, afinal de contas, era Daniel e porque ele agiu como agiu. Como ela afirma em certo momento, de forma poética "no coração do suicídio, mesmo nos casos em que se deixa uma carta esclarecedora, há sempre um mistério, um buraco negro de incerteza em torno do qual perguntas se esvoaçam, feito borboletas enlouquecidas". De alguma forma, Piedad sabe que por mais que investigue jamais conseguirá juntar todas as peças do quebra-cabeça - como bem afirmou Javier Marias, citado por ela, "a verdade é sempre um emaranhado" - mas, ainda assim, ela se permite investigar. E para tanto conversa com médicos, amigos e namoradas de Daniel, além, é claro, de tentar reconstituir suas próprias memórias. E sua investigação a leva de volta às primeiras crises psicóticas vivenciadas pelo filho, que o levaram a receber o diagnóstico de Transtorno Esquizoafetivo, a ser internado e a passar por inúmeros tratamentos. Mas para além disso, ele lutava todo o tempo contra seu rigor e autocobrança excessivos, que o levaram a abandonar o sonho de ser artista. Nenhum desses fatores, contudo - juntos ou separadamente - parecem dar conta de explicar o terrível desfecho da vida de Daniel. E muito menos de responder à indagação feita por sua mãe: "como alguém que estava tão vivo poderia morrer?". Nenhuma resposta parece ser suficiente...

Trecho do livro: "Qual o tamanho da dor de quem se despede de si mesmo? Daniel amava seu corpo, cuidava dele, mimava-o, vestia-o com esmero. Será que sentiu dor ao saber que estava abandonando, que estava se abandonando para sempre? Mas Daniel também devia odiar aquele corpo que o traía, que o agredia, que o expunha ao medo, à confusão, ao delírio, e que de forma sorrateira o tornou diferente dos outros, diante de quem ele se viu obrigado a representar serenidade e lucidez. E muitas vezes deve ter odiado a vida, aquela que tanto amava, por ter escolhido justamente ele para sacrificar. Não teria mais que enfrentar responsabilidades extenuantes. Não teria mais que guardar um segredo, nem sorrir por obrigação, nem ter sucesso, apesar de se sentir distante ou com medo de tudo, cansado, confuso, abatido por saber que estava condenado para sempre. Não teria mais... Compreender a magnitude da liberdade que teria, talvez tenha lhe dado a paz momentânea e a força para se abandonar e abandonar o mundo. Dizem, assim como a dor física extrema pode nos fazer perder a consciência do espírito, a dor espiritual pode fazer com que esqueçamos o sofrimento do corpo. Quero pensar, como o médico, que Daniel não lutou conscientemente essas batalhas; quero pensar que Daniel não se jogou, mas voou em busca de sua única liberdade possível".

Cinquenta tons de apatia: uma resenha do filme "Aquela sensação que o tempo de fazer algo passou"

Ann é uma mulher novaiorquina de trinta e poucos anos, que exerce um trabalho entendiante e que tem frequentes encontros de submissão voluntária com alguns homens, que ela chama de "mestres" - ela é, em suma, masoquista e adepta da prática BDSM. Pois esta é a sinopse do interessante e estranho filme "Aquela sensação que o tempo de fazer algo passou", escrito, dirigido, editado e protagonizado pela Joanna Arnow - e que acabou de estrear em alguns cinemas. O filme é composto por uma sucessão de de cenas curtas de Ann sozinha em casa ou então com seus pais, com seus (poucos) amigos, com seus colegas de trabalho e, especialmente, com seus "mestres" - e as melhores e mais engraçadas cenas do filme, sem dúvida, são estas (não é sem sentido, portanto, que ele venha sendo definido como uma "comédia BDSM"). Algo que me chamou muita atenção na narrativa é o enorme tédio/apatia que a Ann manifesta quase todo o tempo com relação à quase tudo - o que me remeteu à brutal indiferença do protagonista do livro "O estrangeiro", do Albert Camus.  "Aquela sensação", enfim, é uma obra muito peculiar sobre uma millenial tentando encontrar o seu lugar em um mundo que Bauman definiria como líquido. Esse filme, aliás, é - todo ele - muito baumaniano! Se tiver a possibilidade - e a mente aberta a experiências cinematográficas diferentes - não deixe de assistir a esse filme, que o jornal New York Times caracterizou de forma irônica e precisa como "cinquenta tons de apatia".

E agora uma pequena crônica sobre a sessão de cinema: Logo antes do filme "Aquela sensação" começar, foi exibido o trailer do documentário "Orlando: minha biografia política", dirigido pelo Paul Preciado - que eu estou louco para assistir, já que considero Preciado um dos grandes pensadores dos nossos tempos. Mas o ponto é que após o trailer de Orlando ser exibido, uma senhora que estava sozinha em uma poltrona logo atrás de mim comentou em voz alta - ela não chegou propriamente a gritar, mas falou alto o suficiente para que os outros dois espectadores que estavam na sala pudessem ouvir, eu incluído: "Que porcaria!". O que a incomodou provavelmente foi a profusão de pessoas trans e não-binárias que aparecem no trailer de Orlando. Mas daí o filme que viemos assistir começou e eu não consegui deixar de pensar o que ela estaria achando de um filme que inclui algumas dezenas de cenas da protagonista completamente nua se submetendo a um "mestre" - em uma das cenas, por exemplo, ela coloca um biquíni e um nariz de porco e se masturba seguindo as ordem de um homem. A senhora permaneceu todo o tempo em silêncio, mas assim que o filme terminou ela não se conteve e gritou "Que porcaria! Que filme nojento!". Me veio a vontade, na hora, de gritar pra ela "Vai assistir Brasil Paralelo, p@rra!" mas eu lembrei que jamais agiria dessa maneira e me contive. E ela continuou manifestando sua indignação descendo as escadas do cinema: "Que porcaria! Que porcaria!" Eu imagino que ela não estava se referindo à cena da fantasia de porco...