terça-feira, 1 de agosto de 2017

3 best-sellers para exercitar a empatia


Preâmbulo - Eric Arthur Blair queria se tornar escritor, mas não sabia bem por onde começar. Nascido na Índia em 1903,  Eric se mudou para uma pequena cidade na Inglaterra quanto tinha pouco mais de um ano. Sua família era, segundo sua própria descrição, de "classe média-alta inferior". Quando tinha cerca de 20 e poucos anos, após uma temporada em Burma (atual Myanmar), onde trabalhou em um posto na Polícia Imperial Indiana, decidiu retornar à Inglaterra e colocar em prática o seu desejo de escrever. Mas sobre o que escrever? Inspirado em Jack London, um autor que gostava muito, e também em certas ideias socialistas que lhe instigavam, Eric resolveu explorar a periferia de Londres. Mas ele não queria simplesmente observar, mas efetivamente se colocar no lugar de alguém que não possuia quaisquer bens materiais. Eric queria sentir na pele como era ser pobre em Londres na década de 1920. E para tanto viveu, por algum tempo, como um mendigo, perambulando pelas ruas miseráveis da cidade. O relato deste período se transformou em seu primeiro ensaio, intitulado "The strike". Em seguida, Eric se mudou para Paris, onde se hospedou em um alojamento vagabundo e chegou a trabalhar, por um tempo, como lavador de pratos em um hotel. Neste período, em que chegou a passar fome em diversas ocasiões, pôde vivenciar e efetivamente sentir como é ser pobre. Eric escreveu, então, um relato pormenorizado destas duas experiências, que resultaram na obra Na pior em Paris e Londres - seu primeiro livro, publicado em 1933. E foi para a publicação desta obra que decidiu adotar o pseudônimo que o tornaria célebre: George Orwell. Posteriormente à publicação desta obra, Blair lançou muitas outras, dentre as quais duas que lhe conduziram ao panteão dos grandes escritores: 1984 e Revolução dos bichos. Mas não seria equivocado dizer que a "imersão empática" empreendida pelo jovem Eric na vida dos pobres cimentou a visão social crítica que o maduro Orwell consagraria em sua obra vindoura. 

Posteriormente, outros escritores recorreram a esta estratégia de "imersão" para tentar compreender como se sentem e vivem determinados indivíduos e grupos sociais. Quase setenta anos após a experiência de Orwell, a jornalista Barbara Ehrenreich (que já apresentei em outro post) decidiu sentir na pele como é ser pobre nos Estados Unidos. Para tanto, trabalhou por um longo período em uma série de subempregos (como garçonete, faxineira e atendente em um asilo) e tentou se "virar nos 30" com os baixíssimos salários. O resultado é o maravilhoso livro Miséria à americana, lançado em 2001 e já publicado no Brasil Outro exemplo interessante de jornalismo de imersão é o livro Cabeça de Turco, escrito pelo jornalista alemão Günter Wallraff. Nesta obra, o autor relata a dolorosa experiência de viver e trabalhar por dois anos em empregos precários como se fosse um imigrante turco na Alemanha. O livro, lançado em 1985, foi um escândalo na época por escancarar o preconceito e a marginalização a que estavam sujeitos os imigrantes no país. Muitos outros exemplos poderiam ser citados de experiências de imersão, no entanto gostaria de trazer uma reflexão sobre esta maneira de se "exercitar" a empatia. Ainda que se constitua como uma forma profunda de "sentir na pele", trata-se de um método extremamente complicado de se colocar em prática - tanto por exigir um grande investimento pessoal de tempo e energia quanto por demandar grande coragem. No entanto, existem outras formas mais simples de se exercitar a empatia: ler livros, ver filmes, viajar, conversar, etc. E é tendo isto em vista que gostaria de indicar 3 livros, dentre os mais vendidos atualmente no Brasil, que podem contribuir para uma ampliação da capacidade de empatia de seus leitores. Certamente, como já disse anteriormente, não é possível se colocar de fato na pele e na perpectiva de outra pessoa, mas é possível imaginar como ela se sente. E este processo de imaginação pode ser decisivo para a construção de uma compreensão profunda a respeito de como vivem e quais dificuldades enfrentam determinadas pessoas e grupos diferentes de nós. Os três livros indicados e brevemente analisados abaixo podem contribuir fortemente para isso. #ficaadica

1- Na minha pele - Editora Objetiva, 2017.

Neste livro de ensaios autobiográfico, o ator, diretor e produtor Lázaro Ramos reflete sobre os inúmeros desafios de ser negro - e de ser um ator negro - no Brasil. Sua história começa na pequena Ilha do Paty, na Bahia, onde Lázaro nasceu e viveu até a adolescência e segue até o presente. Neste percurso, o ator consagrado e agora escritor iniciante, faz um esforço narrativo - extremamente bem-sucedido, na minha visão - para que nos coloquemos momentaneamente "em sua pele". A ideia é que possamos compreender, especialmente aqueles que não são negros, o persistente, inegável e lastimável racismo existente no Brasil. Para tanto, Lázaro nos conta inúmeras histórias de sua própria vida e também da vida de companheiros e companheiras de luta que expõem a ilusão do mito da democracia racial no país - ainda defendido por algumas pessoas. Mas para além de histórias, Lázaro traz uma série de importantes reflexões sobre a contrução da identidade e da militância negra, sobre a inserção dos negros no mercado de trabalho (e também na publicidade, nas novelas e filmes), sobre os desafios da ascensão social e da criação de filhos negros, dentre muitas outras questões. Mas não se engane pensando que se trata de um livro voltado somente para pessoas negras. De forma alguma, afinal, a luta contra o racismo e a favor do respeito e da inclusão é (ou deveria ser) uma luta de todos. Como bem afirma o rapper Emicida, em uma frase escolhida por Lázaro como epígrafe de seu livro, "todos nós somos educados de uma maneira muito torta acerca do outro. O que a gente pode fazer é admitir que estamos em obras e ir corrigindo isso".

Trecho do livro: "Existe todo um discurso de que não há racismo no Brasil. Afinal, nós fazemos parte de um povo pra lá de miscigenado. Mas quem é negro como eu sabe que a cor é motivo de discriminação diária, sim. Um bom exemplo é a blitz de ônibus. Em determinada época, elas eram bastante frequentes em Salvador. O curioso é que só descia negão do ônibus. O cara branco era chamado de cidadão e eu virava menininho, garoto, moleque. Ou vocês nunca repararam na cor da pele de quem é 'menor' e de quem é 'criança' nos textos da imprensa, no vocabulário popular ou mesmo em pronunciamentos de autoridades?"

2 - Outras formas de usar a boca - Editora Planeta, 2017. 

Neste interessante livro de poesias, que atualmente é a obra de "ficção" mais vendida no Brasil (embora não seja propriamente ficção), a poetiza, escritora  e ilustradora indiana radicada no Canadá Rupi Kaur traz uma série de pequenas poesias que retratam situações vivenciadas cotidianamente por mulheres de todo o mundo - o sucesso estonteante do livro, talvez o maior sucesso da poesia nesta década, certamente se deveu à grande idenficação que ele gerou em mulheres dos mais diversos países. Originalmente denominado Milk and honey (Leite e mel), Outras formas de usar a boca é, como está dito na contracapa, "um livro de poemas sobre a sobrevivência, sobre o amor, o sexo, o abuso, a perda, o trauma, a cura e a feminilidade". Ao longo de suas 200 páginas, Kaur, que também é responsável por todas as ilustrações do livro, fala sobre as dificuldades vivenciadas pelo fato de ser mulher, sobre a complexa relação com a família, sobre as dores e delícias das relações amorosas, sobre términos e recomeços. Dividido em quatro partes (a dor, o amor, a ruptura e a cura), Outras formas traz à tona, especialmente na primeira parte, muitos dos abusos, violências e opressões que as mulheres sofrem todos os dias em praticamente todos os lugares. E com isto a autora permite não só a identificação das mulheres com as situações e pensamentos retratados, mas também a possibilidade de que os homens pensem, repensem e desconstruam o próprio machismo.

Trecho do livro: 

"Sexo exige o consentimento dos dois
se uma pessoa está ali deitada sem fazer nada
porque não está pronta
ou não está no clima
ou simplesmente não quer
e mesmo assim a outra está fazendo sexo
com seu corpo isso não é amor
isso é estupro"

3- Prisioneiras - Companhia das Letras, 2017

Escrito pelo famoso médico Dráuzio Varella, este é o último volume de uma fantástica trilogia literária sobre o sistema carcerário brasileiro, que teve início com os livros Estação Carandiru (1999) e Carcereiros (2012) - ambos foram adaptados para a televisão e o primeiro também para o cinema. Nesta nova empreitada, Dráuzio traz uma série de histórias e reflexões sobre o período de mais de uma década em que trabalhou como médico voluntário na Penitenciária Feminina da Capital, em São Paulo, onde vivem (ou sobrevivem) mais de duas mil mulheres. A ideia do autor, neste e nos livros anteriores da trilogia, é dar voz àqueles e àquelas a quem lhes é negada a voz. No caso de Prisioneiras, Dráuzio traz à tona, com sua sensibilidade habitual, as dolorosas histórias de vida das mulheres invisíveis que vivem na penitenciária. São mulheres em geral pobres e negras, muitas vezes vítimas de violência doméstica e abusos de todo tipo e que, após serem presas, majoritariamente por tráfico de drogas, são abandonadas e esquecidas por todos - o que não acontece com os homens, prova mais do que concreta de que o machismo está de fato presente em todos os lugares. Entregues à própria sorte, acabam por buscar algum conforto e alicerce nas relações com as outras prisioneiras. Assim como a maravilhosa série Orange is the new black (que embora se passe em um outro contexto apresenta muitos pontos em comum com a realidade brasileira), Prisioneiras cumpre plenamente a missão de humanizar essas tão desumanizadas mulheres, nos permitindo adentrar em suas perspectivas e, com isso compreender que suas vidas não se resumem a um artigo do Código Penal. Se a maioria das pessoas conseguisse sentir empatia por estas mulheres, ao invés de simplesmente taxá-las de bandidas e ignorá-las, o mundo seria um lugar muito melhor para se viver.

Trecho do livro: "De todos os tormentos do cárcere, o abandono é o que mais aflige as detentas. Cumprem suas penas esquecidas pelos familiares, amigos, maridos, namorados e até pelos filhos. A sociedade é capaz de encarar com alguma complacência a prisão de um parente homem, mas a da mulher envergonha a família inteira. Enquanto estiver preso, o homem contará com a visita de uma mulher, seja a mãe, esposa, namorada, prima ou a vizinha, esteja ele num presídio de São Paulo ou a centenas de quilômetros. A mulher é esquecida".
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