terça-feira, 18 de abril de 2017

Diferenciando cérebro de mente

No dia 30 de Maio de 2013, o site The Atlantic publicou um ótimo texto, denominado Distinguishing Brain From Mind, escrito pela psiquiatra Sally Satel, co-autora do magnífico livro Brainwashed: The Seductive Appeal of Mindless Neuroscience [Lavagem cerebral: o apelo sedutor da neurociência insensata]. Segue a tradução que fiz deste interessante artigo. 

Passando pelo recente anúncio da Iniciativa BRAIN pelo Presidente Obama até as imagens coloridas do cérebro expostas nas capas de revistas, a neurociência capturou a imaginação pública como nunca antes. 

Compreender o cérebro é, certamente, essencial para o desenvolvimento de tratamentos para doenças devastadoras como esquizofrenia e Parkinson. De forma mais abstrata, mas não menos fascinante, o funcionamento do cérebro está intimamente ligado ao nosso sentido de si, à nossa identidade, às nossas memórias e aspirações. Mas a excitação em investigar o cérebro gerou uma nova fixação que meu colega Scott Lilienfeld e eu chamamos de neurocentrismo - a visão de que o comportamento humano pode ser melhor explicado olhando somente ou principalmente para o cérebro.

Algumas vezes, o nível de explicação neural é apropriado. Quando os cientistas desenvolvem testes diagnósticos ou medicamentos para, digamos, a doença de Alzheimer, eles investigam as marcas desta condição: as placas amilóides que interrompem a comunicação entre os neurônios e os emaranhados neurofibrilares que os degradam.

Outras vezes, porém, uma explicação neural pode nos desnortear. No meu próprio campo da psiquiatria do dependência química, o neurocentrismo é ascendente - e não para melhor. Graças à forte promoção do Instituto Nacional de Abuso de Drogas [no original: National Institute on Drug Abuse], que faz parte dos Institutos Nacionais de Saúde, a dependência química foi rotulada como uma "doença cerebral".

A lógica para esta designação, como explicado pelo ex-diretor Alan I. Leshner, é que "a dependência química está relacionada a mudanças na estrutura e na função do cérebro". De fato, é verdade que o uso contínuo de drogas como a heroína, a cocaína e o álcool alteram os circuitos neurais que medeiam a experiência do prazer, assim como a motivação, a memória, a inibição e o planejamento - modificações que muitas vezes podemos ver nos exames cerebrais.

A questão crítica, porém, é saber se essa alteração neural prova que o comportamento do dependente é involuntário e que ele é incapaz de se auto-controlar - o que não ocorre.

Veja, por exemplo, o caso do ator Robert Downey, Jr., cujo nome já foi sinônimo "celebridade viciada". Ele disse: "É como se eu tivesse uma arma carregada em minha boca e meu dedo no gatilho, e eu gosto do sabor de metal". Downey passou por vários episódios de reabilitação e de recaída, mas finalmente decidiu, enquanto agonizava com sua "doença cerebral", mudar o rumo de sua vida.

O modelo neurocêntrico deixa a pessoa dependente (Downey, neste caso) nas sombras. No entanto, para tratar os dependentes e orientar as políticas, é importante entender como os dependentes pensam. É a mente dos dependentes que contêm as histórias de como a dependência acontece, porque eles continuam a usar a droga, e, se eles decidem parar, como eles se controlam. Tais respostas não podem ser obtidas a partir de um exame de seus cérebros, não importa quão sofisticada seja a investigação.

É natural que os avanços no conhecimento sobre o cérebro nos façam pensar de forma mais mecanicista sobre nós mesmos. Mas em um local, em particular - o tribunal - este viés pode ser uma receita de confusão. A defesa baseada no cérebro [no original: brain-based defense] ("Olhe para este escaneamento, Meritíssimo. O cérebro do meu cliente fez com que ele fizesse isso") tem sido uma estratégia comum usada pelas defensorias. O problema com tais afirmações é que, com raras exceções, os neurocientistas ainda não conseguem traduzir funções cerebrais anômalas para os requisitos legais de responsabilidade criminal - intenção, capacidade racional e autocontrole.

O que sabemos sobre muitos criminosos é que eles não se controlam. Isso é muito diferente de serem incapazes de se controlar. Até hoje, a ciência do cérebro não nos permite distinguir entre essas alternativas. Além do mais, mesmo cérebros de aparência anormal possuem donos que não são lá muito normais.

Olhando para o futuro, alguns neurocientistas preveem uma dramática transformação no direito penal. David Eagleman da Iniciativa de Neurociência e Direito da Faculdade de Medicina de Baylor, espera que "possamos descobrir um dia que muitos tipos de mau comportamento têm uma explicação biológica básica [e] eventualmente pensar sobre a má tomada de decisões da mesma maneira que pensamos sobre a diabetes ou doença pulmonar ". Mas essa é a conclusão correta a tirar da neurociência? Se todos os comportamentos problemáticos estão eventualmente ligados a correlatos da atividade cerebral, que podemos detectar e visualizar, será que podemos desculpá-los em função da teoria do não-me-culpe-culpe-meu-cérebro? Ninguém jamais será julgado responsável?

O modo de pensar de Eagleman é representativo daquilo que o professor de direito Stephen Morse chama de "erro psico-legal", nossa poderosa tentação de equiparar causa e desculpa. Morse observa que a lei desculpa o comportamento criminoso somente quando um fator causal produz um prejuízo tão severo que priva o réu de sua racionalidade. Os maus genes, os maus pais, ou mesmo as más estrelas não são uma desculpa.

Finalmente, quais são as implicações da ciência do cérebro para a moralidade? Embora geralmente pensemos em nós mesmos como agentes livres que fazem escolhas, vários estudiosos proeminentes afirmam que estamos equivocados. "Nosso crescente conhecimento sobre o cérebro faz com que as noções de volição, culpabilidade e, em última instância, a própria premissa do sistema de justiça criminal, sejam profundamente suspeitas", afirma o biólogo Robert Sapolsky.

Com certeza, todos concordam que as pessoas só podem ser responsabilizadas se tiverem liberdade de escolha. Mas, há um longo debate sobre o tipo de liberdade que é necessário. Alguns afirmam que podemos ser responsabilizados desde que possamos nos envolver em deliberação consciente, seguir regras e, em geral, nos controlar.

Outros, como Sapolsky, discordam, insistindo que nossas deliberações e decisões não nos tornam livres porque são ditados por circunstâncias neuronais. Dizem que quando chegarmos a entender o funcionamento mecânico dos nossos cérebros, seremos obrigados a adotar um modelo de justiça estritamente utilitarista, no qual os criminosos são "punidos" apenas como uma maneira de mudar seu comportamento, não porque eles realmente possuem culpa.

Embora esteja coberta de trajes neurocientíficos, essa questão de livre-arbítrio continua sendo um dos grandes impasses conceituais de todos os tempos, e está muito além da capacidade da ciência do cérebro de resolver. A não ser que os investigadores possam mostrar algo realmente espetacular: que as pessoas não são seres conscientes cujas ações fluem de suas razões e que respondem à razão. É verdade que não exercemos tanto controle consciente sobre nossas ações como pensamos que fazemos. Todo estudioso da mente, começando mais notavelmente com William James e Sigmund Freud, sabe disso. Mas isso não significa que somos impotentes.

Tem sido dito que o estudo do cérebro é a fronteira científica final. Será que vamos perder a mente de vista justo na era da neurociência? Enquanto os scans são deslumbrantes e a tecnologia uma maravilha sem precedentes, podemos sempre manter nossos rumos, lembrando que o cérebro e a mente são duas estruturas diferentes.

O domínio neurobiológico é o dos cérebros e das causas físicas, os mecanismos por trás de nossos pensamentos e emoções. O domínio psicológico, o domínio da mente, é o das pessoas - seus desejos, intenções, ideais e ansiedades. Ambos são essenciais para uma compreensão completa de por que agimos como agimos.
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