quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

O livro definitivo sobre a ansiedade

Acabei de ler o livro Meus tempos de ansiedade: medo, esperança, terror e a busca da paz de espírito, escrito pelo jornalista Scott Stossel e recém-lançado no Brasil pela Companhia das Letras. Que livro fantástico! Não gosto muito da ideia de "filme definitivo" ou "livro definitivo" porque nada nesse mundo é definitivo e também porque nenhum livro ou filme jamais poderia dar conta, totalmente, de determinado tema, mas não poderia pensar em algo melhor para dizer sobre essa obra magnífica. Concordo, nesse sentido, com Andrew Solomon, que afirmou: "Scott Stossel escreveu o relato definitivo sobre a ansiedade, unindo ciência, história e autobiografia" (Solomon, por sua vez, escreveu o "livro definitivo" sobre a depressão, o belo, erudito e já clássico Demônio do meio-dia). Realmente: o livro de Stossel condensa de forma soberba, em um calhamaço de mais de 500 páginas, um relato pessoal extremamente - e às vezes constrangedoramente - sincero (terminamos o livro nos sentindo amigos íntimos de Scott), uma investigação cuidadosa e crítica do estado da arte da "ciência da ansiedade" (Stossel, no entanto, não cai na tentação de achar que a ciência sozinha daria conta de explicar esta questão) e ainda uma narrativa histórica bastante ampla e embasada sobre o tema (só de bibliografia o livro tem quase 30 páginas!). E tudo isso sem cair em nenhuma forma de reducionismo, seja biológico, psicológico ou sociológico. Para o autor nenhum olhar isoladamente é capaz de dar conta sozinho deste complexo fenômeno. Pelo contrário, todos os olhares podem contribuir para o entendimento (e mesmo para o "enfrentamento") da ansiedade, que é compreendida por Stossel como reflexo ao mesmo tempo de uma biologia, herdada de nossos ancestrais e entranhada em nosso sistema nervoso, de uma psicologia, construida em nossa relação com os outros e com nós mesmos e de uma cultura, na qual estamos impreterivelmente imersos.

O livro tem início com o relato de um terrível ataque de ansiedade/ pânico que Stossel teve durante seu casamento e daí em diante o autor tenta entender tanto a própria ansiedade quanto o "fenômeno" da ansiedade de uma forma geral. Na primeira parte do livro, denominada "O enigma da ansiedade", Stossel tenta responder a pergunta "do que falamos quando falamos de ansiedade?". Para tanto, o autor busca e apresenta diversas definições feitas no decorrer da história, entremeando-as com relatos de suas próprias experiências de ansiedade. E haja ansiedade! Eu atendo cotidianamente muitas pessoas ansiosas - não seria equivocado dizer que trata-se da principal queixa que chega em meu consultório - mas poucas vezes, talvez nunca, atendi casos tão graves como o de Stossel. O jornalista é um sujeito sem dúvida alguma, patologicamente ansioso e em vários aspectos. Tem uma fobia de viajar de avião extremamente elevada e persistente (as descrições do pânico que ele experiencia quando voa são angustiantes), fica extremamente nervoso em exposições públicas ou em quaisquer situações em que ele seja o centro das atenções, tem ataques de pânico frequentes e incapacitantes e ainda possui uma fobia que eu nunca tinha ouvido falar, a "emetofobia", que é o o medo excessivo ou irracional de vomitar. Esta fobia, de certa forma, moldou a vida de Scott e se relaciona com grande parte de suas demais ansiedades - por exemplo, ele tem medo de se apresentar em público especialmente porque tem medo de vomitar diante das pessoas (embora tenha vomitado, efetivamente, pouquissimas vezes). Em suma, Stossel tem total "autoridade" para falar sobre ansiedade, haja vista sua longa e dolorosa vivência. Mas não se trata simplesmente, volto a repetir, de um relato de um sujeito ansioso, mas de uma profunda análise do que é a ansiedade.

E é neste sentido que, ainda na primeira parte do livro, Stossel tenta definir este fenômeno, recorrendo para isso a textos de filósofos, psicólogos, psiquiatras e neurocientistas. Obviamente, como em qualquer outro tema, não há consenso. Exatamente por isso o autor se propõe a apresentar e debater diversas controvérsias relacionadas ao tema da ansiedade. Eis algumas delas: seria a ansiedade algo "natural", que acompanha o ser humano desde sempre, ou algo "produzido" pela civilização moderna? Neste sentido, poderíamos dizer que a ansiedade é tipicamente humana ou também os animais podem ser ansiosos? Outra controvérsia bastante debatida pela autor, é se a ansiedade é (ou em que medida é) algo patológico. Com relação à esta questão o autor traça um percurso de como a ansiedade (ou o seu "excesso") passou, a partir de determinado momento, a ser considerada uma patologia. Segundo Stossel, a partir do DSM-III, publicado em 1980, surge a categoria diagnóstica "transtorno de ansiedade", que não constava nas edições anteriores da "Bíblia da psiquiatria". Anteriormente, o que hoje chamamos de ansiedade ou de transtorno de ansiedade foi chamado por muitos outros nomes. Na verdade isto é de certa forma equivocado de afirmar, pois não dá para dizer que o que no final do século XIX os médicos chamavam de "neurastenia" é o mesmo que o que hoje chamamos de "transtorno de ansiedade". Muito embora alguns dos sintomas descritos sejam comuns, trata-se de categorias diagnósticas muito distintas (e é exatamente por esse motivo que sempre acho equivocado diagnosticar pessoas do passado com categorias do presente, como por exemplo, ao afirmarmos que Platão ou Darwin eram bipolares).

Outra controvérsia debatida por Stossel - que muito me interessa - diz respeito à afirmação de alguns neurocientistas de que as modernas tecnologias de neuroimagem, como a ressonância magnética e a tomografia magnética, poderiam ajudar na diferenciação entre ansiedade normal e ansiedade patológica (da mesma forma que uma radiografia ajuda na distinção entre uma fratura de tornozelo e uma torção). Segundo o autor, tal afirmação não se sustenta. E o motivo é relativamente simples. Como aponta Stossel, algumas pessoas, diante de estímulos indutores de estresse, exibem sinais fisiológicos indicadores de ansiedade (por exemplo, as amigdalas ficam mais ativadas) mas afirmam que não estão se sentindo ansiosas. E é neste sentido que o autor afirma: "Quando uma radiografia mostra um fêmur fraturado e o paciente não relata dor, o diagnóstico médico ainda é de fratura de fêmur. Quando uma tomografia mostra intensa atividade nas amigdalas e nos gânglios basais, mas o paciente não relata ansiedade, o diagnóstico é... nenhum". Isto só confirma o que eu já disse em outro momento: que a Psiquiatria (e, evidentemente, a Psicologia) nunca poderá prescindir ou abrir mão da subjetividade. Posso estar enganado, mas acredito que nenhum exame objetivo (seja de cérebro ou de sangue) jamais substituirá uma avaliação clínica bem feita. Isto significa também que a ansiedade (ou a tristeza ou a raiva) não é simplesmente um "problema" cerebral, mas algo que afeta e é afetado pela pessoa como um todo em sua relação com o mundo.

Já na terceira parte, que considero a mais interessante, Stossel analisa a relação entre medicações e ansiedade. Embora ele próprio tenha tomado e ainda tome uma grande quantidade de remédios psiquiátricos na tentativa de controlar sua ansiedade, Stossel critica a visão de que a ansiedade é um "problema" neurológico que deve ser tratado exclusivamente com medicações. Como questiona em determinado momento, 

"Por acaso minha ansiedade pode mesmo resumir-se à eficácia com que meus canais de íons cloretos funcionam ou à velocidade dos disparos neuronais em minha amigdala? Bem, sim, num certo nível, pode. Os índices de disparo na amigdala correlacionam-se de forma bastante direta com a sensação de ansiedade. Entretando, dizer que minha ansiedade seja redutível aos íons em minha amigdala é tão limitador quanto dizer que minha personalidade ou minha alma é redutível às moléculas que constituem meu cérebro ou aos genes que levaram a elas".

Da mesma forma, o autor tece fortes e contundentes críticas à atuação da indústria farmacêutica na construção da teoria do desequilibrio quimico, que apregoa que os transtornos mentais seriam causados por um "desequilibrio quimico" no cérebro das pessoas - especialmente no nível de seus neurotransmissores. Nesse sentido, Stossel analisa em detalhes a construção do diagnóstico de Transtorno do Pânico, que, segundo o autor, "foi a primeira doença psiquiátrica cuja criação teve como fator determinante a reação a um fármaco: a imipramina cura o pânico; por conseguinte o transtorno do pânico tem que existir". Outros transtornos psiquiátricos, como o Transtorno de Ansiedade Social e o ainda controverso Transtorno de Ansiedade generalizada, teriam sido criados da mesma forma. 

Ao mesmo tempo, Stossel não condena ou descarta totalmente o uso de medicações. Sua posição, nesta e em outras polêmicas, é bastante moderada e conciliadora. Como aponta em determinado momento,

"Os medicamentos, como muitos estudos indicam, podem funcionar - em parte do tempo, com algumas pessoas, às vezes com horríveis efeitos colaterais, sintomas de abstinência terríveis e problemas de dependência. E na verdade não sabemos que danos a longo prazo estão causando em nosso cérebro. E, de fato, as empresas farmacêuticas e as seguradoras ampliaram ou distorceram de maneira artificial as categorias de diagnóstico. Mas posso garantir, com minha autoridade pessoal, conquistada a duras penas, que há aqui um sofrimento emocional legítimo, que pode ser muito incapacitante, suscetível de alívio proporcionado por esses fármacos, às vezes só um pouco, às vezes de maneira profunda"

Em outro momento, de forma ainda mais contundente, afirma (e eu concordo 100% com ele): 

"Os fármacos psiquiátricos funcionam - para algumas pessoas, em certas situações, às vezes. Seria cruel negar aos esquizofrênicos a remissão química de delírios psicóticos, ou ao paciente bipolar o alívio farmacológico de suas manias perigosas ou de suas depressões avassaladoras - ou impedir que a pessoa destruída pelo pânico e aprisionada em sua casa busque alguma proteção médica contra a ansiedade. Creio que se pode ser cético com relação às alegações da indústria farmacêutica, preocupado com as implicações sociológicas de uma população tão medicamentada e sintonizado com os custos existenciais envolvidos no uso de fármacos psiquiátricos, mas não se opor ao uso judicioso dessas substâncias".

No restante do livro, o autor apresenta e analisa uma miríade de questões relacionadas ao tema da ansiedade. Não gostaria de cansá-lo apresentando o livro capítulo por capítulo. Gostaria simplesmente de salientar que, caso se interesse por esse tema - e se você é psicólogo clínico acredito que irá se interessar, pois tenho certeza que queixas de ansiedade são frequentes em seu consultório - esqueça aquela besteira que é o best-seller "Ansiedade: como enfrentar o mal do século", escrito pelo Augusto Cury (que segundo esse texto, ele próprio, é o mal do século) e aventure-se neste livro fantástico de Stossel. O caminho é mais longo, afinal são mais de 500 páginas, mas tenho certeza que você não irá se arrepender.

Update 09/12/14: O psiquiatra Daniel Martins de Barros, em seu blog, fez uma analise igualmente entusiasmada do livro Meus tempos de ansiedade. Disse ele: "Misturando relato pessoal, pesquisa científica e história cultural, o livro lançado no Brasil pela Cia. das Letras é talvez o mais completo e abrangente trabalho leigo sobre os transtornos ansiosos".
Comentários
3 Comentários

3 comentários:

Rodrigo Padrini Monteiro disse...

Fiquei muito curioso com esse livro e o do Solomon, sobre a depressão. Parecem relatos bem pessoais e profissionais ao mesmo tempo. Resenha bem completa, com certeza vou adquiri-lo. Parabéns.
Escrevo também em um blog de Psicologia, www.rodrigopadrini.blogspot.com.br , caso queira conhecer.
Abraços.

Unknown disse...

Parabéns pelos comentários !! Excelente !! Muito obrigado.

Unknown disse...

o que eu nao entendi foi isso...o scott escreve um livro falando da ansiedade e etc...mas mesmo assim toma tanto remedio tentando controlar a ansiedade???