sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Aversão de si: uma resenha do livro O olho mais azul

Há algum tempo comecei a ler o livro Amada, da escritora norte-americana Toni Morrison e achei o início bem difícil e confuso, o que me levou a desistir temporariamente da leitura - que pretendo retomar em breve. Daí eu comentei sobre essa dificuldade em uma rede social e uma colega me sugeriu iniciar a obra de Morisson por seu primeiro livro, O olho mais azul, publicado originalmente em 1970. E foi o que fiz. E de fato achei a leitura deste livro bem mais tranquila e fluida, ainda que se trate de uma narrativa fragmentada e não-linear - como a própria autora explica no posfácio, ela quis "quebrar a narrativa em partes a serem reunidas pelo leitor". Pois a trama de O olho mais azul gira ao redor da família Breedlove, uma família afro-americana pobre composta pela mãe (Polly), pelo pai (Cholly) e pelos dois filhos (o garoto Sammy e a garota Pecola, que é a protagonista da história). Trata-se, sem dúvida, de uma família bastante problemática: o pai bebe demais e frequentemente bate na mãe e abusa das crianças; já a mãe dedica todo o seu amor e cuidado à família branca para quem ela trabalha há décadas; e as crianças são, assim, negligenciadas e maltratadas e sofrem com tudo isso. Pecola sofre ainda, terrivelmente, por ser considerada feia tanto por sua família quanto por seus vizinhos e colegas. Por ter o cabelo crespo e a pele mais escura que grande parte de seus colegas de escola, Pecola é frequentemente ridicularizada, humilhada e rejeitada pelas pessoas ao seu redor. E por conta disso, ela sonha e deseja ardentemente possuir os olhos azuis, como as meninas que ela (e toda a sociedade) consideram bonitas - aliás, Pecola não deseja simplesmente ter os olhos azuis; ela quer ter os olhos mais azuis dentre todos os olhos azuis. No posfácio do livro, Morisson afirma que este desejo tem relação com uma forte "aversão por si mesma", de origem racial, que acomete Pecola e grande parte das garotas negras - e das pessoas negras em geral. Na narrativa da autora, tal aversão ou desvalorização de si diz respeito a algo que, como o próprio racismo, acaba por persistir, de geração em geração, por meio da reprodução dos valores (e desvalores) dominantes. Mas este é apenas um dos inúmeros temas e questões tratados pela autora - a primeira mulher negra a receber o Prêmio Nobel - neste excelente e complexo romance. Recomendo fortemente!

Trecho do livro: "Tinha ocorrido a Pecola, havia algum tempo, que, se os seus olhos, aqueles olhos que retinham as imagens e conheciam as cenas, fossem diferentes, ou seja, bonitos, ela seria diferente. Tinha bons dentes, e o nariz, pelo menos, não era grande e chato como o de algumas garotas que eram consideradas tão bonitinhas. Se tivesse outra aparência, se fosse bonita, talvez Cholly fosse diferente, e a sra. Breedlove também. Talvez eles dissessem: “Ora, vejam que olhos bonitos os da Pecola. Não devemos fazer coisas ruins na frente desses olhos bonitos” (...) Toda noite, sem falta, ela rezava para ter olhos azuis. Fazia um ano que rezava fervorosamente. Embora um tanto desanimada, não tinha perdido a esperança. Levaria muito, muito tempo para que uma coisa maravilhosa como aquela acontecesse".

Comentários
0 Comentários

Nenhum comentário: