quinta-feira, 23 de maio de 2019

Em choque: uma breve história da Eletroconvulsoterapia

Aplicação de ECT no Hospital de Virginia, nos EUA, em 1949
Em uma polêmica Nota Técnica publicada em fevereiro de 2019, o Ministério da Saúde estabeleceu novas diretrizes para a política de saúde mental no Brasil. Dentre outras medidas questionáveis, o Ministério estabeleceu a ampliação da rede de hospitais psiquiátricos, a possibilidade de internação de crianças e adolescentes e também a aquisição e disponibilização pelo SUS de equipamentos de Eletroconvulsoterapia (ECT) para o "tratamento de pacientes que apresentam determinados transtornos mentais graves e refratários a outras abordagens terapêuticas". Popularmente conhecido como "eletrochoque" este tratamento tornou-se, juntamente com a lobotomia, um símbolo dos equívocos e crueldades cometidos - em nome da razão - pela psiquiatria e pela medicina de uma forma geral. No entanto, também como a lobotomia, a ECT foi vista na época de sua criação como um tratamento inovador, seguro, eficaz e - acredite se quiser - muito menos agressivo e desumano que as outras opções terapêuticas disponíveis naquele momento, como a Terapia por Choque de Insulina (que induzia os pacientes ao coma), a Malarioterapia ou Piroterapia por infecção de malária (que causava terríveis febres) e a Terapia convulsiva (que induzia a violentas convulsões). Posteriormente a ECT passou a ser mal vista e foi deixada de lado; no entanto, ela nunca deixou de ser aplicada. Até os dias atuais ela é utilizada, de uma maneira bastante diferente de quando foi criada, em pessoas com graves transtornos mentais refratárias a outros tratamentos. Especificamente com relação à referida Nota Técnica a preocupação de muitos profissionais e pesquisadores da área da saúde mental é que a aquisição e disponibilização de equipamentos de ECT pelo SUS possa favorecer um uso equivocado e banalizado da técnica, como ocorreu logo após sua criação, na década de 1930. Esta é, sem dúvida alguma, uma preocupação legítima, haja vista a falta de fiscalização adequada em inúmeros serviços públicos; além disso há o questionamento, igualmente pertinente, sobre se realmente vale a pena investir os escassos recursos da área da saúde em dispendiosos aparelhos de ECT - e também no provisionamento das clínicas e na capacitação dos aplicadores e equipe de apoio - ao invés de empregar tais recursos na melhoria dos serviços e dispositivos de saúde mental já incorporados ao SUS. Por fim, há que se questionar também se esta politica não estaria atendendo e beneficiando prioritariamente o lobby da indústria dos dispositivos médicos, mais do que os próprios pacientes. Por outro lado, se as diretrizes para o uso da técnica forem rigorosamente seguidas e sua utilização ocorrer apenas como último recurso terapêutico, e jamais como método punitivo e disciplinar, creio que as resistências à sua utilização diminuiriam consideravelmente - a questão é que eu duvido muito que a fiscalização desta atividade consiga ser realizada a contento, de forma a evitar excessos e usos equivocados. De toda forma, para além de toda esta polêmica, gostaria no presente texto de apresentar brevemente a história da ECT desde seu desenvolvimento até a atualidade. 

Violenta convusão induzida por Metrazol
A eletroconvulsoterapia, como o próprio nome indica, é um procedimento terapêutico que pretende gerar convulsões nos pacientes por meio da aplicação de correntes elétricas na região da cabeça - entende-se, neste caso, que as convulsões possuem um valor terapêutico na medida em que teriam a capacidade de aliviar certos sintomas psiquiátricos. No entanto, a ECT não foi o primeiro procedimento médico que visou a geração de "convulsões terapêuticas" nos pacientes. No início do século XX alguns psiquiatras notaram uma certa incompatibilidade entre a psicose e a epilepsia, o que significava que pacientes psicóticos muito raramente eram epiléticos ou apresentavam crises convulsivas. Com esta observação em mente - posteriormente refutada pela comunidade científica - o psiquiatra húngaro Ladisla Joseph von Meduna (1896-1964) começou, em 1933, a experimentar diferentes substâncias para induzir convulsões em animais e, posteriormente, em pacientes psicóticos. Inicialmente tentou a injeção de cânfora e de outras substâncias de forma intramuscular, mas os resultados não foram significativos; finalmente testou a injeção intravenosa de uma preparação de cânfora sintética menos tóxica denominada pentilenotetrazol, também conhecida como metrazol ou cardiazol. E acabou por descobrir que os sintomas psicóticos diminuiam consideravelmente após um ataque convulsivo induzido por esta substância - tratamento que acabou por ser chamado de terapia convulsiva. O grande problema é que o metrazol induzia nos pacientes um terrível sentimento de morte iminente e também levava a convulsões extremamente violentas. Como aponta o psiquiatra Jeffrey Lieberman no livro Psiquiatria - Uma história não contada, um estudo realizado em 1939 revelou que 43% dos pacientes submetidos à terapia convulsiva tiveram vértebras fraturadas durante as terríveis convulsões causadas pelo metrazol. Em função destes e outros problemas, os médicos começaram, então, a buscar outras maneiras, mais seguras e menos agressivas, de induzir convulsões nos pacientes.

Protótipo do primeiro aparelho de "eletrochoque"
Esta busca levou, no final da década de 1930, na Itália, ao desenvolvimento da Eletroconvulsoterapia pelo neurologista e neurocirurgião italiano Ugo Cerletti (1877-1963) em parceria com seu colega Lucio Bini (1908-1964). Inicialmente, Cerletti induziu experimentalmente convulsões em cachorros por meio de choques elétricos aplicados na cabeça. O pesquisador chegou a conceber a aplicação do mesmo método em seres humanos mas foi dissuadido por colegas. Posteriormente, enquanto comprava carne em um açougue local descobriu que os porcos eram abatidos depois de serem entorpecidos pela aplicação de correntes elétricas em suas cabeças, o que o fez questionar se o mesmo efeito "anestésico" ocorreria em humanos. Com esta ideia em mente, Cerletti recorreu a Bini para construir, em 1938, o primeiro aparelho voltado para aplicação de "choques terapêuticos" em seres humanos. No dia 15 de Abril deste ano, os pesquisadores utilizaram o aparelho, pela primeira vez, em um paciente esquizofrênico e o resultado ocorreu exatamente como esperado: após despertar da anestesia causada pelo choque os pesquisadores observaram significativas melhoras no quadro sintomático do paciente. De acordo com Franz Alexander e Sheldon Selesnick no livro História da psiquiatria, a partir desta primeira aplicação "tornou-se logo evidente que o eletrochoque era superior ao Metrazol, pois era menos perigoso, menos dispendioso e causava convulsão mais branda. Devido à simplicidade de seu processo e aos resultados favoráveis, o eletrochoque, na década de 1940, já substituia os tratamentos de choque de insulina na esquizofrenia". Na mesma direção, Jeffrey Lieberman, no já mencionado livro Psiquiatria - Uma história não contada, afirma que "a ECT significou um substituto bem vindo à terapia do metrazol porque era mais barata, menos aterrozizante para os pacientes (não havia mais a sensação de morte iminente), menos perigosa (nada de costelas quebradas), mais conveninente (bastava ligar e desligar a máquina) e mais eficaz. Pacientes deprimidos, em particular, frequentemente apresentavam melhoras surpreendentes de humor após apenas algumas sessões; e embora a ECT tivesse alguns efeitos colaterais, eles não eram nada comparados aos riscos alarmantes da terapia do coma, da terapia da malária ou da lobotomia. Era, de fato, um tratamento milagroso".

Cena do filme Um estranho no ninho (1975)
A partir da década de 1940 a técnica desenvolvida por Celetti e Bini foi amplamente aplicada em hospitais psiquiátricos de todo o mundo, inclusive no Brasil. Posteriormente, em função tanto do desenvolvimento das primeiras medicações psiquiátricas ou psicofármacos, no início da década de 1950, quanto dos crescentes questionamentos relativos aos efeitos colaterais e aos usos equivocados da técnica, a ECT acabou por perder muito de sua popularidade inicial. Especificamente com relação aos efeitos colaterais, um dos mais conhecidos e documentados é a perda de memória - que na maioria dos casos é temporária, e o paciente em pouco tempo retoma as lembranças, mas que em alguns casos torna-se definitiva, e o paciente passa a ter grandes dificuldades de memorização. Curiosamente, no início da aplicação da ECT este efeito colateral de esquecimento temporário foi considerado vantajoso na medida em que fazia o paciente se esquecer do desagradável procedimento de ser eletrocutado. Outros efeitos colaterais que ocorreram nos primeiros anos de aplicação da ECT - como fraturas ósseas e distensões musculares - se deviam ao fato de os aplicadores não utilizarem qualquer forma de anestesia ou relaxamento muscular. Posteriormente, com a introdução do suxametônio, um relaxante muscular, associado com um anestésico de curta duração, muitos desses outros efeitos colaterais foram minimizados, ainda que não totalmente eliminados. Já com relação aos usos equivocados da ECT são notórias as utilizações da técnica como forma de punição - e mesmo tortura - nas instituições psiquiátricas de todo o mundo - basta assistir ao clássico filme Um estranho no ninho (1975) e também ao brasileiro Bicho de sete cabeças (2001) para entender como isto ocorria. Em função de tudo isso, a técnica acabou por ser colocada de lado na área de saúde mental. No entanto, como já apontei acima, a ECT nunca deixou de ser utilizada. Após sua criação, no final da década de 1930, a técnica foi amplamente usada até a década de 1960, quando começou a ser preterida e marginalizada; na década de 1980 a ECT teve uma espécie de ressurgimento, ainda que impregnado por uma visão extremamente negativa, que permanece. Atualmente, a técnica é empregada de uma maneira completamente diferente de quando foi criada. Como aponta Jeffrey Lieberman, "hoje, o avanço tecnológico permite ajustar a ECT para cada paciente, de modo que seja usada a quantidade mínima de corrente elétrica para induzir ao surto [ou convulsão]. Além disso, a colocação estratégica dos eletrodos em lugares específicos da cabeça pode minimizar os efeitos colaterais. Agentes anestésicos modernos combinados com relaxantes musculares e oxigenação abundante tornam a ECT um procedimento extremamente seguro". Certamente há pesquisadores que questionam essa suposta segurança da ECT - indico, nesse sentido os artigos sobre o tema do blog Mad in Brasil; no entanto, ainda que não se trate de um procedimento 100% seguro - e nenhum procedimento ou intervenção é isento de riscos e efeitos colaterais - ainda assim a eletroconvulterapia continuará a existir e a ser aplicada. O que precisamos fazer, enquanto profissionais e pesquisadores da área de saúde mental, é continuar avaliando os efeitos positivos e negativos das intervenções biológicas em psiquiatria - que incluem desde a ECT até os psicofármacos - e paralelamente buscar alternativas psicossociais que nos ajudem a lidar com os sofrimentos e desequilíbrios humanos.

quarta-feira, 22 de maio de 2019

Os (outros) animais tem consciência?

O que será que Nina esta pensando?
Às vezes me pego olhando para a minha cachorrinha, Nina, e pensando: o que será que se passa na mente dela? O interessante deste questionamento é que eu - e provavelmente todos os donos de cachorro - temos a mais absoluta convicção de que os cachorros tem uma mente - e portanto, uma consciência de si e do mundo; provavelmente uma consciência diferente daquela de um ser humano adulto mas ainda sim uma consciência; alguma consciência. Mas será que temos razão? Será que de fato os cachorros e os outros animais não-humanos possuem uma consciência ou algum grau de consciência? Para responder a esta questão precisamos, em primeiro lugar, definir o que afinal de contas é essa tal consciência. Pois no livro O mistério da consciência, o famoso neurocientista português Antônio Damásio apresenta uma definição simples mas interessante: consciência é "a percepção que um organismo tem de si mesmo e do que o cerca". Segundo o autor trata-se de um fenômeno privado, isto é, que somente a própria pessoa tem acesso, e que faz parte de outro processo privado que denominamos mente. A consciência é, assim, uma característica ou um ingrediente da mente - o que significa dizer que a mente pode, eventualmente, ocorrer sem consciência. Na maior parte do tempo, a mente está (ou estaria) consciente. Se não fosse assim, a vida cotidiana se tornaria impossível: seríamos apenas zumbis que vagam pelo mundo. No entanto existem situações em que mente e consciência não se "encontram". Isto acontece, por exemplo, quando estamos dormindo e sonhando: nestes momentos certamente há uma mente que sonha mas não há propriamente uma consciência. O mesmo ocorre nos casos de sonambulismo e em algumas estranhas síndromes causadas por lesões cerebrais - várias descritas por Damásio em seu livro. Em todos esses casos, as pessoas continuam com uma mente mas perdem ou diminuem a consciência de si e/ou do mundo.

Cachorro-robô atual
Mas voltemos aos animais não-humanos. Eles possuem - seguindo a definição de Damásio - alguma percepção de si mesmos e do mundo? Com relação aos cachorros eu tenho convicção de que a resposta é afirmativa, mas como eu posso ter certeza disso? E a resposta é que eu não posso e nunca terei esta certeza. Como apontei na análise que fiz do filme A chegada, não temos como saber nem mesmo se os outros seres humanos possuem uma mente e são conscientes. Como estes processos dizem respeito a experiências privadas e subjetivas, que só eu tenho acesso, eu só posso dizer com certeza que eu próprio possuo uma mente consciente. É claro que acreditamos e precisamos acreditar que as outras pessoas também possuem mentes e consciências - de outra forma, nenhuma relação humana seria possível - mas de fato nunca saberemos. Só o que podemos fazer é pressupor que há uma mente consciente com base no comportamento da pessoa - e também dos outros animais. Quando observo minha cachorrinha, por exemplo, percebo que ela reage à forma como eu me comporto e também ao meu tom de voz: quando eu chego em casa ela se excita e corre pela sala; quando eu saio de casa ela se retrai e, por vezes, chora;  quando eu faço carinho ela se contorce e vira as patas para cima; quando eu falo com um tom de voz agudo ela balança o rabo; se eu passo a falar com um tom de voz grave ela para de balançar o rabo e se afasta. E todas estas reações me fazem pensar - e acreditar - que ela de fato possui uma mente consciente, que a permite perceber o mundo ao seu redor (que me inclui), se diferenciar deste mundo (e de mim) e reagir a ele. Mas vamos supor que no futuro inventem um cachorro-robô com aparência, movimentos e reações totalmente indistinguíveis de um cachorro real. Neste caso, baseado apenas em seu comportamento, eu poderia muito facilmente me deixar convencer de que este "animal" também possui uma mente consciente. No entanto, as reações do cachorro-robô foram totalmente programadas por seus criadores, não restando qualquer espaço para a subjetividade. Se eu estaria enganado neste caso, o que me faz crer que eu não estou enganado quando pressuponho mente e consciência em um cachorro real?

Como é ser um cachorro-morcego?
Em um clássico artigo de filosofia da mente, denominado Como é ser um morcego? (que já apresentei e analisei em outro post), o filósofo Thomas Nagel aponta para a impossibilidade de compreendermos como é ser um morcego. Seu argumento é que podemos estudar o corpo e o sistema nervoso deste animal com grande profundidade mas jamais entenderemos sua experiência subjetiva - e também a de todos os outros animais, incluídos aí todos os demais seres humanos que não nós próprios. O máximo que podemos fazer é 1) pressupor que todos os animais, dos mais simples aos mais complexos, possuem algum grau de consciência; 2) tentar imaginar como esses outros seres percebem e sentem o mundo e 3) agir com base nessas pressuposições e imaginações. De fato nunca teremos completa certeza de que tais entendimentos são verdadeiros, mas a ação humana com base na hipótese da existência de subjetividade em todos animais será, sem dúvida alguma, muito mais ética e responsável do que se imaginarmos que somente nós próprios possuímos mentes e consciências. Como afirma Eric Matthews no livro Mente: conceitos-chave em filosofia, "os animais, sejam eles capazes de raciocinar ou não, certamente possuem mentes no sentido de possuir sensações de dor e prazer e não parece existir nenhuma razão para acreditar que causar dor aos animais, ou seja, infligir-lhes crueldade, seja moralmente mais justificável do que infligi-la aos seres humanos". Na contramão de certas visões antigas - como aquela disseminada pelo filósofo renascentista René Descartes, que entendia que apenas os seres humanos possuíam alma, sendo os demais animais apenas máquinas desalmadas - esta compreensão enfatiza que todos os animais, inclusive os seres humanos, possuem determinadas características em comum - como a mente e a consciência. O que nos diferencia é apenas uma questão de grau e não de qualidade ou natureza - afinal de contas, somos todos animais.

PÓS-ESCRITO (23/05/19): Em 2012, um grupo de cientistas de diferentes áreas reunidos na Universidade de Cambridge, na Inglaterra, lançou uma espécie de manifesto que ficou conhecido como Declaração de Cambridge sobre a Consciência. Este documento - cuja tradução pode ser lida aqui - defende que apesar das dificuldades fundamentais na pesquisa sobre a consciência (com destaque para a "inabilidade dos animais não humanos, e até mesmo dos humanos, em comunicar clara e prontamente os seus estados internos") já seria possível dizer, naquele momento, que os animais não humanos de fato possuem uma consciência. Para embasair esta ideia os pesquisadores apresentam, em quatro tópicos, uma série de evidências, e concluem: "A ausência de um neocórtex não parece impedir que um organismo experimente estados afetivos. Evidências convergentes indicam que animais não humanos têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência juntamente como a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos".

PÓS-ESCRITO (17/06/19): No recém-lançado livro A vida secreta dos animais, o engenheiro florestal alemão Peter Wohlleben - mesmo autor do best-seller A vida secreta das árvores - faz algumas considerações bem afinadas com as que eu fiz acima. Logo na introdução, por exemplo, ele afirma: "Talvez soe descabido dizer que um porco sente as mesmas coisas que o ser humano, mas é pouco provável que ele sinta menos dor do que nós ao se ferir. 'Opa, isso nunca foi comprovado!", talvez exclamem os cientistas. É verdade, e o fato é que nunca haverá provas cabais. Para ser mais preciso, não consigo provar nem sequer que você tem sensações iguais às minhas. Ninguém é capaz de olhar para dentro de outra pessoa e provar, por exemplo, que uma picada de agulha provoca a mesma sensação em todos os 7 bilhões de seres humanos no planeta, mas todos sabemos expressar o que sentimos, e, considerando, as informações compartilhadas, são grandes as chances de termos sensações iguais". Em outro momento o autor questiona: "A ciência já afirmou tantas vezes que os animais não tem sentimentos que essa visão acabou se tornando a mais difundida, mas não seria melhor acreditar que eles tem sentimentos e passar a evitar que sofram sem necessidade?". Na visão do autor, jamais teremos completa certeza de que os animais possuem emoções e sentimentos mas porque não dar a eles o benefício da dúvida e simplesmente acreditarmos nisso? Agir com base nesta pressuposição certamente favorecerá um tratamento mais digno a todos os animais não-humanos. Por fim, no pósfacio, ao comentar sobre as evidências científicas indiretas que apontam para processos cognitivos nos outros animais, Wohlleben afirma: "As descobertas atuais da ciência na verdade não tem surpreendido os verdadeiros amantes dos animais; apenas tem dado mais segurança para confiar em nossos próprios sentimentos em relação a eles". E acrescenta: "quando vejo pessoas negando com veemência que os animais tem sentimentos, fico com a sensação de que isto acontece um pouco por medo de que o homem possa perder sua posição especial. Ou, pior ainda, por medo de que fique mais difícil explorar os animais. Toda vez que alguém fosse comer carne ou usar qualquer produto de couro teria uma crise moral que o impediria de ir adiante. Quando pensamos que os porcos são animais sensíveis, que transmitem conhecimento a seus descendentes e depois os ajudam a parir, que atendem pelo nome e se reconhecem no espelho, trememos só de lembrar que, apenas na União Europeia, cerca de 250 milhões de suínos são abatidos todos os ano".

PÓS-ESCRITO (09/07/2019):  No livro Alex e eu: como a relação de amor entre uma cientista e um papagaio revelou os segredos da inteligência animal, a pesquisadora norte-americana Irene Pepperberg narra a sua longa relação com o famoso papagaio-cinzento Alex, falecido em 2007 aos 31 anos de idade. Na conclusão do livro a autora apresenta uma série de descobertas sobre a inteligência de aves que ela e seu grupo fizeram a partir dos inúmeros experimentos realizados com o falante Alex e tece também algumas considerações sobre a consciência dos animais não-humanos. Afirma Pepperberg: "O que essas e outras coisas que Alex fez me ensinaram? Ensinaram que ele tinha um grau de consciência que nem mesmo os behavioristas radicais poderiam negar. Será que eu posso provar isso tal como provei que Alex era capaz de marcar objetos e aprender conceitos? Não, não posso. Embora a linguagem já não seja amplamente tida como requisito para o pensamento (...) é necessária para provar que outro indivíduo é consciente. A linguagem nos permite explorar o funcionamento da mente de outro indivíduo como nenhum outro instrumento permite. Se eu tivesse perguntado a Alex 'Por que você mastigou o projeto de financiamento quando estávamos na Purdue?" ou "O que estava pensando quando mastigou os slides que deixei sobre minha mesa lá na Northwestern?", e ele tivesse respondido "Ora, eu só estava me divertindo" ou "Eu sabia que você ficaria irritadíssima com aquilo", então eu teria vislumbrado a consciência dele. Mas Alex não usava a linguagem da maneira como eu e você usamos. Sendo assim, não posso provar que ele tinha um grau de consciência. Mas a forma como se comportava era certamente sugestiva". E ela conclui, de forma brilhante: "Alex me ensinou a acreditar que seu pequeno cérebro de pássaro era de alguma maneira consciente, ou seja, capaz de intencionalidade. Extrapolando, posso dizer que Alex me ensinou que o mundo em que vivemos é povoado de criaturas pensantes e conscientes. Não humanamente pensantes. Não humanamente conscientes. Mas nem por isso são autônomos sem mente que vagam como zumbis".

terça-feira, 14 de maio de 2019

Em defesa do livre pensamento nas universidades

Como reação aos absurdos cortes nos orçamentos das universidades federais e também às levianas críticas ao mundo acadêmico que tem circulado pelas redes sociais, inúmeras reportagens, abaixo-assinados e manifestações se esforçaram em mostrar à população como as universidades são úteis para a sociedade. Sem dúvida alguma este é um esforço louvável, haja vista que, de fato, nas universidades brasileiras - especialmente nas públicas - são realizadas pesquisas que contribuem ou poderão contribuir, no futuro, para a solução de inúmeros problemas ambientais e sociais. Por outro lado, algo que me incomoda muito nesta defesa da utilidade da universidade e da pesquisa acadêmica é que por vezes ela obscurece uma outra função absolutamente fundamental das universidades que é promover a busca pelo conhecimento como um fim em si mesmo. E esta busca não é necessariamente útil no sentido de servir para curar alguma doença, favorecer a produção de alguma patente ou gerar lucro para alguma empresa. A utilidade de uma parte significativa da pesquisa acadêmica é, "simplesmente", ampliar o entendimento que o ser humano tem de si mesmo e do mundo que o cerca. E isto não é pouco. E não é nada simples.

Desde sua origem, as universidades sempre foram espaços de livre pensamento, locais onde onde os mestres e aprendizes podiam fazer perguntas e buscar respostas sobre o que bem entendessem. A própria ideia de "universidade" se relaciona à essa busca por uma compreensão ampla, total, universal do próprio ser humano e do mundo. Isto está na origem, na evolução e na própria "alma" das universidades. O grande problema, no atual contexto brasileiro, é que as pessoas que ocupam o poder e que decidem como serão aplicados os recursos educacionais, não vêem as coisas desta forma. Para eles, as universidades se resumem a espaços inúteis e amorais, onde pessoas que estudam coisas desnecessárias andam nuas, usam drogas e fazem "balbúrdia" - seja lá o que isso for. Como no fatídico episódio do "golden shower", no qual uma cena desagradável foi utilizada para representar todo o carnaval brasileiro, imagens de nudez, balbúrdia ou flagrantes inutilidades (leia-se: capas de dissertações e teses da área de humanas) tem sido utilizados para representar as universidades brasileiras. Generalizações e interpretações indevidas são invocadas e disseminadas a cada momento, colocando em xeque a utilidade e a pertinência das universidades e das pesquisas acadêmicas. 

O que estas pessoas de mente estreita não conseguem ver é que as universidades não são e não devem ser apenas espaços de formação profissional mas também, e  fundamentalmente, espaços de livre pensamento sobre o mundo - inclusive sobre os governos, o que certamente incomoda nossos atuais governantes, que demonstram pouquíssimo apreço tanto ao pensamento quanto à liberdade. Na visão dessas pessoas, a universidade deve se limitar à sua função "técnica", capacitando profissionais para o mercado de trabalho; no entanto, como bem aponta Nuccio Ordine no fantástico livro A utilidade do inútil - Um manifesto, "privilegiar exclusivamente a profissionalização dos estudantes significa perder de vista uma dimensão universal da função formativa da educação: nenhuma profissão poderia ser exercida de modo consciente se as competências técnicas que ela exige não estivessem subordinadas a uma formação cultural mais ampla, capaz de encorajar os alunos a cultivarem autonomamente seu espírito e a possibilitar que expressem livremente sua curiosidade. Equiparar o ser humano exclusivamente com sua profissão seria um erro gravíssimo: em todo ser humano há algo de essencial que vai muito além de seu próprio 'ofício'. Sem essa dimensão pedagógica, ou seja, totalmente afastada de qualquer forma de utilitarismo, seria muito difícil, no futuro, continuar a imaginar cidadãos responsáveis, capazes de abandonar o próprio egoísmo para abraçar o bem comum, expressar solidariedade, defender a tolerância, reivindicar a liberdade, proteger a natureza, defender a justiça...". 

Não podemos permitir que estas pessoas de mente estreita - que não entendem o que são e para que "servem" as universidades e a educação de uma forma geral - determinem aquilo que é relevante ou útil e aquilo que não é. As universidades não podem - e não irão - perder aquilo que mais fortemente as constitui, que é o livre pensamento, que é a possibilidade de refletir e estudar sobre o que se quiser, independente de qualquer utilidade. Aliás, o que é utilidade? Para nossos governantes atuais, a utilidade parece estar relacionada a um retorno econômico-mercadológico de determinada pesquisa ou atividade - "se gerar dinheiro, é útil", pensam -, mas eu acho a definição do professor Ordine muito mais interessante: útil é tudo que nos ajuda a nos tornar melhores. Deste ponto de vista todas as pesquisas, de todas as áreas, são úteis porque nos fazem (ou tem o potencial de nos fazer) pensar - e pensar nos torna melhores. Isto significa, por sua vez, que tudo aquilo que parece inútil aos olhos dos nossos atuais governantes (o que inclui desde a pesquisa nas áreas de ciências humanas e sociais até a literatura e a arte) tem sim uma importante utilidade: expandir a nossa mente e o conhecimento humano. Como aponta o professor Ordine, "nesse contexto brutal [ele se refere à Europa, mas podemos facilmente estender sua análise para o Brasil atual], a utilidade dos saberes inúteis contrapõe-se radicalmente à utilidade dominante que, em nome de um interesse exclusivamente econômico, está progressivamente matando a memória do passado, as disciplinas humanísticas, as línguas clássicas, a educação, a livre pesquisa, a fantasia, a arte, o pensamento crítico e o horizonte civil que deveria inspirar toda a humanidade. No universo do utilitarismo, um martelo vale mais do que uma sinfonia, uma faca mais do que um poema, uma chave de fenda mais do que um quadro; porque é fácil compreender a eficácia de um utensílio, enquanto é sempre mais difícil compreender para que podem servir a música, a literatura ou a arte" - e também a universidade, eu acrescentaria.