domingo, 31 de janeiro de 2021

"8 em Istambul" e os desafios da empatia

O título em português da série turca Bir Başkadır - "8 em Istambul" - não é lá muito preciso, já que bem mais do que 8 personagens dominam a narrativa - aliás, eu nem saberia dizer exatamente quem são estes tais 8. O título original, bem mais interessante, remete a um dito popular turco que aponta para algo ou alguém único, peculiar, singular. Pois esta expressão, impossível de ser traduzida, sintetiza muito bem a proposta desta maravilhosa série da Netflix, que é retratar a vida singular de alguns moradores da multifacetada cidade de Istambul, na Turquia. Dentre estes personagens temos Meryem, que pode ser considerada a protagonista da série, já que todos os demais personagens possuem alguma relação, direta ou indireta, com ela: seu irmão Yasin, sua cunhada Ruhiye, sua terapeuta Peri, a terapeuta de sua terapeuta Gülbin, seu líder religioso Hodja, seu patrão Sinan, dentre outros. A série tem início com Meryem se consultando, pela primeira vez, com a psiquiatra e psicoterapeuta Peri em um hospital da cidade. Meryem vinha tendo alguns desmaios e, por isso, foi encaminhada à psiquiatria pelo médico que lhe atendeu inicialmente. E é a partir dessa situação que a série se desenrola - e cabe apontar que não pretendo neste breve ensaio analisar todos os núcleos e histórias da série; gostaria de me focar especificamente na relação de Meryem com sua terapeuta Peri. Como descobrimos logo nos primeiros episódios, Peri é uma mulher ocidentalizada que nutre dentro de si um grande preconceito - e mesmo uma repulsa - com relação à mulheres muçulmanas que usam véu; pois Meryem é justamente uma mulher muçulmana que usa véu, o que constitui, para Peri, um desafio terapêutico e pessoal imenso - tanto que em inúmeras ocasiões Peri relata para sua própria terapeuta e supervisora, Gülbin, dificuldades no atendimento com Meryem, que os psicanalistas poderiam chamar de dificuldades transferenciais. Pois o fato é que, embora habitem a mesma cidade, Peri e Meryem possuem vidas e subjetividades completamente diferentes, como se habitassem mundos distintos. E esta distância - que está mais para um abismo - dificulta imensamente que Peri se conecte com Meryem e sinta empatia por ela. Afinal de contas, como se conectar e empatizar com uma pessoa que representa tudo aquilo que você rejeita? Este, aliás, é um imenso desafio para todos os terapeutas. Eu próprio já atendi e atendo com frequência inúmeras pessoas com identidades e visões de mundo radicalmente diferentes das minhas e isto sem dúvida traz consigo imensos desafios subjetivos. Como me "colocar no lugar" de uma pessoa que pensa e age de forma completamente diferente de mim? Na verdade, o problema é ainda mais complexo que isso, pois diz respeito não apenas àquelas pessoas com visões de mundo muito diferentes das minhas mas, no final das contas, à todas as pessoas. Como saber, por exemplo, se aquilo que um paciente chama de ansiedade ou tristeza ou angústia é exatamente aquilo que eu próprio chamo e sinto? Como já apontei em outras ocasiões - por exemplo, na resenha que fiz do filme A chegada - não temos, de fato, como saber. Este abismo entre a minha própria subjetividade e as demais subjetividades, incluindo aquelas dos meus pacientes, não é facilmente transponível ou superável. No entanto, apesar destas dificuldades, precisamos seguir com o nosso ofício. E também, como Peri, precisamos compreender melhor nossos preconceitos e, na medida do possível, superá-los, de forma que possamos nos conectar verdadeiramente com nossos pacientes. O desafio - para a terapia e para a vida em geral - está em lidar com o outro especialmente naquilo que ele é diferente de nós. Como aponta um famoso provérbio, atribuído ao mestre Paulo Freire, "amar o igual é amar a si próprio. O desafio está em amar o diferente". No caso de uma psicoterapia eu não diria que precisamos amar nossos pacientes - embora isto seja possível e até desejável, dentro de certos limites éticos e profissionais - mas certamente precisamos fazer o que estiver ao nosso alcance para nos conectarmos às suas vidas subjetivas naquilo que elas tem de mais peculiar. 

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