quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Melhor filme de 2020: "O som do silêncio"

E o prêmio Felipe Lisboa de melhor filme de 2020 vai para... "O som do silêncio". Dentre os inúmeros filmes que assisti esse ano - e eu assisti muitos - penso que este filme, além de todo o primor técnico e artístico, condensa e simboliza muito bem o momento em que vivemos. Lançado em agosto pela Prime Video, este filme conta a história de um baterista de uma banda de heavy metal que perde a audição e busca apoio em uma comunidade de surdos nos Estados Unidos. Um dos aspectos técnicos mais notáveis do filme é que ele leva o espectador a vivenciar a experiência do sujeito com os sons - e também com o silêncio (de forma semelhante ao que foi feito, com o sentido da visão, no filme O escafandro e a borboleta). Eu destacaria ainda a atuação brilhante - ao mesmo tempo intensa e delicada - do ator anglo-paquistanês Riz Ahmed, que merece todos os prêmios possíveis. Acho bastante interessante também a discussão trazida pelo filme sobre como a comunidade surda (ou parte dela) enxerga os tratamentos ou curas para a surdez. Mas o motivo que considero este o filme símbolo deste momento é que ele traz uma narrativa sobre um sujeito que vive uma transformação radical e avassaladora em sua vida (um músico que deixa de escutar, imaginem só!) e que passa a ter, então, duas escolhas para lidar com esta nova situação: tentar (em vão) retornar à sua vida anterior - o que ele faz inicialmente - ou aceitar que a vida nunca mais será a mesma. De certa forma, este é o dilema que cada um de nós teve de lidar em 2020: sonhar com o "velho normal" e fingir que as coisas continuam iguais (como fizeram os "negacionistas") ou então aceitar o tal "novo normal" e tocar a vida tendo em vista que o mundo se alterou provavelmente de forma irreversível. "O som do silêncio" coloca o protagonista em situação análoga à que vivemos neste ano maluco, enquanto indivíduos e enquanto sociedade - e por isso, e também pelo conjunto da obra, considero este o melhor filme de 2020.

Texto escrito originalmente para meu perfil pessoal no Instagram - me segue lá: @felipestephan

Melhor livro de não-ficção de 2020: "Talvez você deva conversar com alguém"

E o prêmio Felipe Lisboa de melhor livro de não-ficção de 2020 vai para... "Talvez você deva conversar com alguém", da psicoterapeuta norte-americana Lori Gottlieb. Fiquei curioso para ler esse livro quando vi, na contracapa, uma recomendação do psiquiatra e psicoterapeuta Irvin Yalom, autor que admiro muito e que consegue, como poucos, descrever a complexidade do encontro terapêutico (algo que os livros técnicos raramente conseguem). Pois Lori também é muitíssimo bem-sucedida nesta empreitada. Ouso dizer que ela supera Yalom, pois além de descrever com enorme verossimilhança e sensibilidade alguns atendimentos que realizou ao longo dos anos, Lori ainda conta a sua própria história, com uma sinceridade admirável, por vezes rasgante. Nunca antes tinha lido um livro no qual o/a terapeuta expõe suas dores, seus medos, suas inseguranças - e também suas alegrias e forças - com tanta verdade e sensibilidade como neste livro, cuja narrativa mescla tocantes histórias de pacientes atendidos por Lori com histórias dela própria, muitas passadas ou relatadas no consultório de seu terapeuta. Vemos, assim, os dois lados da moeda: a Lori terapeuta e a Lori paciente. Mas curiosamente, ao expor estas duas facetas, ela consegue um feito admirável: ao mesmo tempo em que mostra a realidade e os bastidores de uma terapia ela consegue demonstrar também o sentido e o valor do processo terapêutico. Ao retirá-lo da torre de marfim, mostrando que terapeutas também são pessoas, ela acaba por mostrar que está justamente aí - no fato de todos serem pessoas - a força do processo, que continua fazendo sentido, apesar de todos os tratamentos farmacológicos disponíveis. Acho bastante difícil resumir esse livro, que traz tantos ensinamentos, tanta verdade e tanta esperança (sem ser piegas e sem flertar com a autoajuda) que eu não tenho como não recomendá-lo para todo mundo, especialmente para psicólogos. Sem dúvida o melhor livro que li esse ano e um dos melhores sobre psicoterapia que já li na vida - muito embora rotulá-lo como um "livro de psicoterapia" seja extremamente equivocado e reducionista: trata-se de um livro sobre a vida e seus enormes e eternos desafios.

Trecho do livro: "Obviamente, os terapeutas lidam com os desafios diários existenciais, como qualquer pessoa. Essa familiaridade, de fato, está na raiz da conexão forjada por nós com estranhos que nos confiam suas mais delicadas histórias e segredos. Nossa formação nos ensinou teorias, ferramentas e técnicas, mas pulsando sob nossa competência adquirida a duras penas está o fato de sabermos o quanto é difícil ser um indivíduo. O que equivale a dizer: continuamos indo trabalhar diariamente sendo nós mesmos, com nosso próprio conjunto de vulnerabilidades, nossos próprios anseios e inseguranças, bem como nossas próprias histórias. De todas as minhas credenciais como terapeuta, a mais significativa é eu ser membro de carteirinha da raça humana".

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quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Racismo sem fim: uma resenha do livro "Eu, Tibuba: bruxa negra de Salem"

Acabei de ler "Eu, Tituba: bruxa negra de Salem", da escritora francesa Maryse Condé (ed. Rosa dos tempos, 2020). E gostei muitíssimo. A obra reconstitui ficcionalmente a trajetória de Tituba, mulher negra escravizada, nascida na Ilha de Barbados e transportada posteriormente aos Estados Unidos, e que foi uma das mulheres julgadas como bruxas nos famosos julgamentos de Salem, ocorridos em 1692 - e que inspiraram o famoso filme Bruxas de Salem, que traz Tituba como uma das personagens secundárias. A ideia da autora foi dar voz à esta personagem marginalizada e esquecida pela história, narrando em primeira pessoa não apenas os acontecimentos de Salem mas também sua vida pregressa e subsequente, desde sua concepção (consequência de um estupro) até sua morte. O que achei mais interessante (e triste) no livro é a forma como a autora, negra, retrata o absurdo que foi a escravidão. Aliás, eu acho sempre chocante lembrar como até bem pouco tempo atrás alguns seres humanos se julgaram superiores ao ponto de se considerarem donos de outros seres humanos. "Eu, Tituba" narra em detalhes toda a humilhação e violência sofridas pela personagem e por outras pessoas escravizadas, expondo de forma terrivelmente dolorosa o racismo dominante naquele momento - e que infelizmente persiste na atualidade. Eu destacaria também a forma como a autora retrata as relações de Tituba com os mortos e com as plantas e os animais, relações estas que eram frequentemente encaradas pelos brancos como provas de sua atividade como bruxa. O livro trata ainda de muitos outros temas e questões, sempre de uma forma sensível e poética. Recomendo demais!

Trecho do livro: "Eu urrava, e, quanto mais eu urrava, mais eu tinha o desejo de urrar. De urrar meu sofrimento, minha revolta, minha raiva impotente. Que mundo era aquele que tinha feito de mim uma escravizada, uma órfã, uma pária? Que mundo era aquele que me separava dos meus? Que me obrigava a viver entre pessoas que não falavam a minha língua, que não compartilhavam minha religião, num país feio, nada agradável?"

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quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

O cérebro cria a a realidade? Uma resenha crítica do livro O verdadeiro criador de tudo

Li há alguns meses "O verdadeiro criador de tudo: como o cérebro humano esculpiu o universo como nós o conhecemos", novo livro do neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, professor e pesquisador na Universidade de Duke, nos Estados Unidos. Minha avaliação da obra é que ela começa muito bem e se perde completamente da metade em diante. Quando discorre sobre a abordagem distribuída do cérebro - oposta à localizacionista, prevalente na neurociência contemporânea - e também sobre a interessante Teoria do Cérebro Relativístico, Nicolelis se sai muitíssimo bem e traz contribuições relevantes para o entendimento do cérebro humano - muito embora ele já tenha apresentado tais visões em duas obras anteriores: "Muito além do nosso eu" e "O cérebro relativístico", escrito em parceria com o matemático Ronald Cicurel. Gosto especialmente de sua visão do cérebro como um sistema integrado, dinâmico e complexo que não pode e jamais poderá ser simulado ou reproduzido digitalmente - questão que já discuti anteriormente no post Em busca da imortalidade da mente, no qual cito, inclusive, os argumentos de Nicolelis para a impossibilidade de um upload mental. Na visão do neurocientista o cérebro, sendo um "computador orgânico", funciona de forma completamente distinta de um "computador digital", possuindo propriedades (como a plasticidade) que nunca poderiam ser simuladas por algoritmos digitais, concepção que simplesmente coloca por terra alguns dos estranhos sonhos dos chamados transhumanistas. Por outro lado, quando resolve apresentar sua visão cerebrocêntrica - também chamada de "cosmologia centrada no cérebro" - Nicolelis acaba por se perder. Na visão do neurocientista o cérebro humano está no centro do universo na medida em que ele próprio cria o universo. Sem dúvida, para existirem reflexões e estudos sobre o universo é necessário que existam humanos (com seus cérebros), mas daí dizer que o universo existe apenas na medida em que é concebido pelo cérebro humano - e pior: que o cérebro é o "verdadeiro criador de TUDO"  - trata-se, sem dúvida, uma extrapolação desmedida. Com tais afirmações, ainda que não pretenda, Nicolelis acaba por se vincular a uma perspectiva idealista, segundo a qual o mundo só existe enquanto construção mental - ou, no caso de Nicolelis, cerebral. Da metade do livro em diante o neurocientista, utilizando seu equivocado e frágil conceito de brainet - que seria uma espécie de sincronia entre os cérebros humanos - fala um pouco de tudo e se perde ainda mais. Em sua ânsia de explicar o universo, o mundo e até mesmo as sociedades através de sua teoria neurocientifica, Nicolelis acaba por se tornar vítima da própria ambição. Nos últimos capítulos Nicolelis chega ao cúmulo de pretender explicar as guerras e os genocídios pelo conceito de brainet - que, na verdade, poderia ser chamado de humanet, na medida em que aponta para relações e sincronias entre humanos e não entre cérebros isolados. Como Antonio Damásio em seu último livro A estranha ordem das coisas, Nicolelis pretende explicar o social pelo biológico, proposta extremamente equivocada - e, em última instância, reducionista. Enfim, um livro que começa muito bem e termina muito mal.

Quando o cérebro falha: uma resenha do livro No labirinto do cérebro

Li esta semana o livro No labirinto do cérebro, recém-lançado pela editora Companhia das Letras. Achei bom, não excelente. Escrito pelo neurocirurgião Paulo Niemeyer Filho (filho do também neurocirurgião Paulo Niemeyer e sobrinho do famoso arquiteto Oscar Niemeyer) este livro tem um duplo objetivo: divulgar para um público amplo o conhecimento atual do sistema nervoso humano e, ao mesmo tempo, relatar situações vividas pelo autor em seus muitos anos como neurocirurgião. Quando se foca na divulgação científica o livro não empolga (ou melhor, não me empolgou), pois traz informações já exaustivamente tratadas em inúmeros outros livros de neurociência - pense, por exemplo, nas clássicas histórias dos pacientes HM, Phineas Gage, etc. Por outro lado, o filé mignon do livro são seus relatos de doença e cirurgia que, infelizmente, ocupam, se muito, 10% das páginas. Uma pena, já que o que eu esperava de um livro escrito por um neurocirurgião seriam histórias de sua prática - tal qual fez com brilhantismo o neurocirurgião inglês Henry Marsh na já clássica obra "Sem causar mal: histórias de vida, morte e neurocirurgia", lançada no Brasil em 2016 (e sobre a qual já escrevi anteriormente). Em comparação com o livro de Marsh, falta também à Paulo Niemeyer profundidade emocional em seus relatos. Em geral as histórias clínicas são contadas de forma muito rápida e objetiva, sem que o autor relate sua própria vivência. Ainda assim - o que considero um ponto positivo - Niemeyer relata não apenas casos "bem sucedidos" mas também "fracassos", isto é, casos que não resultaram em melhora ou, pelo contrário, que resultaram em piora ou morte. De uma forma geral considero uma boa obra, que ao mesmo tempo informa sobre a estrutura e o funcionamento cerebral e ainda traz relatos do autor, um experiente neurocirurgião.

Trecho do livro: "Os cirurgiões parecem ter chegado ao limite do que é possível, com uma técnica baseada no conhecimento anatômico e na habilidade manual. Hoje, já não existem áreas do cérebro que sejam inalcançáveis. Podemos atingir qualquer ponto, o que não significa que possamos remover ou corrigir todas as lesões. Os limites agora são características biológicas das doenças. Como curar um tumor maligno que infiltra o cérebro? Certamente, não será pela cirurgia".

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Com o cérebro em mente: uma resenha do livro Mentes, cérebros, almas e deuses

Muito embora eu não seja uma pessoa religiosa - considero-me agnóstico - decidi dar uma chance para este livro, publicado em 2016 pela editora cristã Ultimato e escrito por um cientista católico, o psicólogo britânico Malcolm Jeeves. O livro traz um longo diálogo (imaginário, creio eu) entre Jeeves e um estudante de psicologia cristão em crise com seu curso - na verdade em conflito entre suas crenças religiosas e algumas visões pretensamente científicas que ele se deparou no curso. Os temas discutidos são variados mas passam por muitas questões de interface entre o campo científico e o religioso - os títulos de alguns capítulos, em geral sob a forma de perguntas, ilustram muito bem os tópicos discutidos: "Qual a relação entre mente e cérebro?", "Até que ponto sou livre?", "Mas será que tudo está no cérebro?", "Será que meu cérebro tem um 'módulo de Deus?", "A ciência seria capaz de invalidar a religião?". E qual não foi minha surpresa ao descobrir um excelente livro, que discute com muita ponderação e clareza temas espinhosos ligados tanto à ciência quanto à religião - e ele faz isso sem exaltar ou desmerecer desmedidamente nem uma nem outra. Gostei especialmente da visão critica do autor aos reducionismos e determinismos de toda ordem - em especial aos reducionismos e determinismos biológicos e neurocientificos. Durante todo o livro o autor critica as "simplificações grosseiras" cometidas tanto por cientistas quanto por jornalistas científicos na interpretação de certos resultados científicos e ainda defende uma visão integral do ser humano, entendido por ele como uma "unidade psicobiológica". O autor, que se define como um "monista de aspecto dual" no que diz respeito à relação mente-cérebro defende que "não podemos reduzir o mental ao físico no mesmo grau em que não podemos reduzir o físico ao mental". Por esta e por outras visões considero este um livro precioso, que precisa ser lido não apenas por cristãos mas por todos aqueles que se interessam pelos grandes temas e dilemas filosóficos e científicos dos nossos tempos - e de todos os tempos.

Trecho do livro: "Ao falar sobre a relação mente-cérebro, é preciso ser muito cauteloso com aqueles que usam analogia - por exemplo, o cérebro como computador com seu hardware e software -, como se assim de fato resolvessem o problema mente-cérebro, quando na realidade não fizeram nada além de descrevê-lo de outra maneira".

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Remediando a vida: uma resenha do livro Meu ano de descanso e relaxamento

Em meu esforço de ler mais ficção acabei de finalizar mais um livro: "Meu ano de descanso e relaxamento", da escritora norte-americana Ottessa Moshfegh. A obra, que gostei muito, tem como protagonista e narradora uma mulher de quase 30 anos que, após a morte dos pais e o fim de um relacionamento, decide tirar um ano de "descanso e relaxamento", ou melhor, um ano de luto, depressão e intoxicação medicamentosa. Neste ano "sabático" ela planeja basicamente se isolar de tudo e de todos, se entupir de remédios psiquiátricos - receitados por uma psiquiatra terrivelmente antiética e picareta - e simplesmente dormir, isolando-se em si e também de si mesma. Seu plano original era dormir o tempo todo durante um ano, o que, em sua visão distorcida, a faria acordar deste processo renovada e pronta para encarar os desafios da vida. A questão é que seu plano não sai exatamente como planejado, ao menos inicialmente. A narrativa não é, em grande parte, focada na ação da personagem, já que ela se encontra constantemente num estado de quase completa inação e letargia. O foco está nas lembranças, pensamentos e devaneios desta jovem que não consegue ver nada muito claramente - especialmente devido aos efeitos dos inúmeros remédios que ela toma dia e noite, muitas vezes misturados com álcool. O que acho mais interessante no livro é como ele retrata a forma como muitas pessoas lidam com o sofrimento em nossa sociedade - e, em especial, na sociedade norte-americana. Como a personagem, muitas e muitas pessoas têm recorrido a medicações psiquiátricas e outras drogas com o intuito (ilusório) de eliminar sofrimentos que não conseguem ou não querem lidar - e comumente ignoram ou não prestam a devida atenção nos significativos efeitos colaterais, que muitas vezes acrescentam sofrimentos e problemas às suas já complicadas vidas. Enfim, a obra capta muitíssimo bem esse zeitgeist da relação dos sujeitos contemporâneos com o sofrimento e as medicações psiquiátricas. Recomendo fortemente!

Trecho do livro: "E foi durante essa calmaria no drama do sono que entrei numa realidade desconhecida e menos certa. Os dias se arrastavam, havia pouco a ser lembrado, a não ser o entalhe familiar das almofadas do sofá e uma espuma na pia do banheiro que parecia uma paisagem lunar, suas crateras borbulhando sobre a porcelana quando eu lavava o rosto ou escovava os dentes. Mas era apenas isso que acontecia. E talvez eu tivesse sonhado com espuma. Nada parecia real de verdade. Dormindo, acordada, tudo colidia numa viagem cinzenta e monótona de avião por entre as nuvens. Eu não conversava mentalmente comigo mesma. Não tinha muito o que dizer. Foi assim que soube que o sono estava fazendo efeito: estava ficando cada vez menos apegada à vida. Se continuasse, pensei, desapareceria por completo, depois reapareceria sob alguma outra forma. Essa era a minha esperança. Esse era o sonho".

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O preço da "inteligência": uma resenha do livro Flores para Algernon

Há tempos não me empolgava tanto com um livro de ficção como ocorreu com Flores para Algernon, clássico de ficção científica do escritor norte-americano Daniel Keyes, lançado originalmente em 1966. O livro conta a história de Charlie Gordon um jovem com deficiência intelectual severa que é submetido a uma cirurgia cerebral experimental que faz com que sua inteligência cresça exponencialmente - aliás, acho mais correto afirmar que ocorre um aumento de sua compreensão do mundo e de si mesmo, já que "inteligência" é um termo bastante impreciso e controverso. O mais interessante do livro é que acompanhamos este crescimento intelectual através de um diário escrito pelo próprio Charlie. Inicialmente redigido de uma forma simples e com inúmeros erros linguísticos, tal relato se torna, aos poucos, super bem-escrito e até mesmo sofisticado, à medida em que Charlie vai adquirindo compreensão sobre o mundo e sobre si mesmo. Ao mesmo tempo, à medida em que se torna mais e mais esclarecido, Charlie se torna mais e mais confuso, inseguro e solitário. O livro aponta, nesse sentido, para os efeitos colaterais da "inteligência" - que inclui, no caso específico de Charlie, o questionamento de sua função como cobaia de um experimento científico. Após se identificar com Algernon - um ratinho de laboratório superinteligente utilizado no experimento que serviu de base para a cirurgia que ele foi submetido - Charlie busca se libertar da condição de objeto experimental, tornando-se sujeito de sua vida e de seu destino. "Flores para Algernon" trata de todos estes temas e questões - e muitos outros - com brilhantismo e delicadeza. Recomendo demais!

Trecho do livro: "Sou um gênio? Acho que não.  Ainda não, de qualquer forma. Como Burt diria, rindo dos eufemismos do jargão educacional, sou excepcional – um  termo democrático usado para  evitar os malditos rótulos de  talentoso e incapaz (que  costumavam  dizer  brilhante  e  retardado), e, assim que excepcional começar a significar algo para alguém, vão mudá-lo.  A ideia parece ser: use uma expressão enquanto ela não significar nada  para ninguém. Excepcional se refere aos dois finais do espectro, então eu fui excepcional a vida inteira. (...) Estranho sobre aprender; quanto mais longe eu vou, mais vejo o que nunca soube que sequer existia. Algum tempo atrás, tolamente imaginei que poderia aprender tudo, todo o conhecimento existente. Agora espero apenas ser capaz de saber de sua existência e entender um mínimo disso”.

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