domingo, 20 de setembro de 2020

O seu smartphone é uma extensão da sua mente?

Dando continuidade à discussão introduzida no post anterior, compartilho abaixo a tradução que fiz do ensaio 
Are ‘you’ just inside your skin or is your smartphone part of you? publicado no dia 26 de Fevereiro de 2018 no site AEON pela Karina Vold, pesquisadora do Leverhulme Centre for the Future of Intelligence da Universidade de Cambridge.

Em novembro de 2017, um homem armado entrou em uma igreja em Sutherland Springs, no Texas, e matou 26 pessoas, ferindo outras 20. Ele fugiu em seu carro, com policiais e moradores no seu encalço, antes de perder o controle do veículo e cair em uma vala. Quando a polícia chegou ao carro, ele já estava morto. Esse episódio já seria terrível o suficiente sem sua conclusão perturbadora: no decorrer de suas investigações, o FBI supostamente pressionou o dedo do atirador no recurso de reconhecimento de impressão digital de seu iPhone para tentar desbloqueá-lo. Independentemente de quem foi afetado, é inquietante pensar na polícia usando um cadáver para invadir a vida digital de uma pessoa após sua morte.

A maioria das constituições democráticas nos protege de violações indesejadas em nosso cérebro e corpo. Elas também consagram nosso direito à liberdade de pensamento e privacidade mental. É por isso que drogas neuroquímicas que interferem no funcionamento cognitivo não podem ser administradas contra a vontade de uma pessoa, a menos que haja uma justificativa médica clara. Da mesma forma, de acordo com o entendimento acadêmico, os responsáveis pela aplicação das leis não podem obrigar alguém a fazer um teste de detector de mentiras, porque isso seria uma invasão de privacidade e uma violação do direito de permanecer em silêncio.

Mas na atual era de tecnologia onipresente, os filósofos estão começando a se perguntar se a anatomia biológica realmente captura a totalidade de quem somos. Dado o papel que desempenham em nossas vidas, nossos dispositivos merecem as mesmas proteções que nossos cérebros e corpos?

Afinal de contas, seu smartphone é muito mais do que um telefone. Ele pode contar uma história mais íntima sobre você do que seu melhor amigo. Nenhum outro dispositivo na história, nem mesmo o seu cérebro, contém a qualidade ou a quantidade de informações contidas no seu smartphone: ele 'sabe' com quem você fala, quando fala, o que você disse, onde você esteve, suas compras, fotos, dados biométricos, até mesmo suas anotações para você mesmo - e ele faz tudo isso já há alguns anos.

Em 2014, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos usou essa observação para justificar a decisão de que a polícia deve obter um mandado antes de vasculhar nossos smartphones. Esses dispositivos "são agora uma parte tão arraigada da vida cotidiana que um visitante de Marte poderia concluir que eles são uma característica fundamental da anatomia humana", observou o presidente do tribunal John Roberts em sua decisão.

O presidente do tribunal provavelmente não estava se utilizando de um argumento metafísico - mas os filósofos Andy Clark e David Chalmers o fizeram quando argumentaram em 'The Extended Mind' (1998) que a tecnologia é, na verdade, parte de nós. De acordo com a ciência cognitiva tradicional, 'pensar' é um processo de manipulação de símbolos ou computação neural, que é executado pelo cérebro. Clark e Chalmers aceitam amplamente essa teoria computacional da mente, mas afirmam que certos dispositivos podem se integrar perfeitamente à maneira como pensamos. Objetos como smartphones ou blocos de notas são muitas vezes tão funcionalmente essenciais para nossa cognição quanto as sinapses disparando em nossas cabeças. Eles aumentam e estendem nossas mentes ao ampliar nosso poder cognitivo e libertar nossos recursos internos.

Se aceita, a tese da mente estendida [
extended mind] ameaça algumas suposições culturais arraigadas sobre a natureza inviolável dos nossos pensamentos, que estão no cerne da maioria das normas legais e sociais. Como a Suprema Corte dos Estados Unidos declarou em 1942: "a liberdade de pensamento é absoluta por sua própria natureza; mesmo o governo mais tirânico não tem o poder de controlar o funcionamento interno da mente". Essa visão tem sua origem em pensadores como John Locke e René Descartes, que argumentaram que a alma humana está presa em um corpo físico, mas que nossos pensamentos existem em um mundo imaterial, inacessível a outras pessoas. A vida interior de uma pessoa, portanto, precisa ser protegida apenas quando é externalizada, por exemplo, por meio da fala. Muitos pesquisadores da ciência cognitiva ainda estão apegados a essa concepção cartesiana - com a diferença de que, atualmente, entendem o domínio privado do pensamento como algo relacionado à atividade cerebral.

As instituições jurídicas atuais, contudo, estão lutando contra esse conceito estreito da mente. Estão tentando entender como a tecnologia está mudando o que significa ser humano e criar novos limites normativos para lidar com esta realidade. O juiz Roberts pode não conhecer a ideia da mente extendida, mas ela corrobora sua irônica observação de que os smartphones se tornaram parte de nosso corpo. Se nossas mentes agora incluem nossos telefones, então somos essencialmente ciborgues: parte-biologia e parte-tecnologia. Levando-se em conta como nossos smartphones assumiram o que antes eram funções de nossos cérebros - lembrar datas, números de telefone, endereços - talvez os dados que eles contêm devam ser tratados da mesma forma que as informações que temos em nossas cabeças. Portanto, se a lei visa proteger a privacidade mental, seus limites precisariam ser estendidos para garantir à nossa anatomia ciborgue as mesmas proteções que nossos cérebros.

Essa linha de raciocínio leva a algumas conclusões potencialmente radicais. Alguns filósofos argumentaram que, quando morremos, nossos dispositivos digitais devem ser tratados como restos mortais: se seu smartphone faz parte de quem você é, então talvez ele deva ser tratado mais como um cadáver do que como um objeto qualquer. Da mesma forma, pode-se argumentar que danificar o smartphone de alguém deveria ser entendido como uma forma "estendida" de agressão, isto é, como algo equivalente a um golpe na cabeça ao invés de simplesmente um dano à uma propriedade. Se suas memórias são apagadas porque alguém o atacou com um porrete, o tribunal não teria problemas em caracterizar o episódio como um incidente violento. Da mesma forma, se alguém quebrar seu smartphone e limpar seu conteúdo, talvez o agressor deva ser punido como ele seria se tivesse causado um traumatismo craniano.

A tese da mente estendida também desafia o papel da lei na
proteção tanto dos conteúdos quanto das formas de pensamento - isto é, no resguardo do que e como pensamos a partir de influências indevidas. A legislação impede a interferência não consensual em nossa neuroquímica (por exemplo, por meio de drogas), porque isso interfere no conteúdo de nossa mente. Mas se a cognição engloba dispositivos, então, sem dúvida, eles deveriam estar sujeitos às mesmas proibições. Talvez algumas das técnicas que os anunciantes se utilizam para capturar nossa atenção online, de modo a influenciar nossa tomada de decisão ou manipular resultados de pesquisa, devam contar como intrusões em nosso processo cognitivo. De maneira semelhante, em locais onde a lei protege as formas de pensamento, pode ser necessário garantir o acesso a ferramentas como smartphones - da mesma forma como a liberdade de expressão protege o direito das pessoas não somente para escrever ou falar, mas também para utilizar computadores e disseminar discursos pela internet.

Os tribunais ainda estão longe de chegar a essas decisões. Além dos casos de atiradores em massa que estão nas manchetes, há milhares de casos a cada ano no qual as autoridades policiais tentam obter acesso a dispositivos criptografados. Embora a Quinta Emenda da Constituição dos Estados Unidos proteja o direito dos indivíduos de permanecerem calados (e, portanto, de não fornecerem suas senhas), juízes em diversos estados decidiram que a polícia pode forçar o indivíduo a fornecer suas impressões digitais para desbloquear o telefone (Com o novo recurso de reconhecimento facial do iPhone X, a polícia pode fazer a pessoa simplesmente olhar para o telefone). Essas decisões refletem o conceito tradicional de que os direitos e liberdades de um indivíduo vão até o limite de sua pele.

No entanto, o conceito de direitos e liberdades pessoais que norteia nossas instituições jurídicas está desatualizado. Ele foi construído com base no modelo de um indivíduo livre que desfruta de uma vida interior intocável. Agora, porém, nossos pensamentos podem ser invadidos antes mesmo de serem desenvolvidos - e de certa forma, talvez isso não seja nada novo. O físico, vencedor do Prêmio Nobel, Richard Feynman costumava dizer que pensava com seu caderno. Sem uma caneta e um lápis, muitas reflexões e análises complexas nunca teriam sido possíveis. Se a visão da mente estendida estiver certa, então mesmo tecnologias simples como essas mereceriam reconhecimento e proteção como partes do kit de ferramentas essencial da mente.

sábado, 19 de setembro de 2020

A mente não está presa no cérebro e se estende para muito além dele

Compartilho abaixo a tradução que fiz do artigo The mind isn’t locked in the brain but extends far beyond it, publicado no site AEON no dia 7 de Julho de 2016 pelo filósofo e escritor Keith Frankish.

Onde está sua mente? Onde seu pensamento ocorre? Onde estão suas ideias? René Descartes pensava que a mente era uma alma imaterial, alojada na glândula pineal perto do centro do cérebro. Hoje em dia, pelo contrário, tendemos a identificar a mente com o cérebro. Sabemos que os processos mentais dependem dos processos cerebrais e que diferentes regiões cerebrais são responsáveis ​​por diferentes funções. No entanto, ainda concordamos com Descartes em uma coisa: ainda pensamos na mente como sendo (em uma expressão cunhada pelo filósofo da mente Andy Clark) limitada pelo cérebro [brainbound], isto é, como algo trancado na cabeça e que se comunica com o corpo e com o mundo, mas que se mantém separada destes. E isso pode estar muito errado. Eu não estou sugerindo que a mente não seja física ou duvidando que o cérebro seja central para sua existência; mas pode ser que (como Clark e outros argumentam) a mente se estenda para além do cérebro.

Para começar, há fortes motivos para se pensar que muitos processos mentais são essencialmente corporificadosA visão da mente como limitada ao cérebro [brainbound] retrata o cérebro como um poderoso executivo, planejando cada aspecto do comportamento e enviando instruções detalhadas aos músculos. Mas, como o trabalho em robótica demonstrou, existem maneiras mais eficientes de fazer as coisas, que a natureza quase certamente emprega. Os robôs mais biologicamente realistas já concebidos executam padrões básicos de movimento natural em virtude de sua dinâmica passiva, sem o uso de motores e comandos. O controle inteligente é alcançado através do monitoramento e da melhoria contínuos desses processos corporais, dividindo a tarefa de controle entre o cérebro e o corpo. De forma semelhante, ao invés de coletar passivamente informações para construir um modelo interno detalhado do mundo externo, é mais eficiente para o sistema de controle continuar ativamente sondando o mundo (para "usar o mundo como seu próprio modelo", aponta o roboticista Rodney Brooks), coletando apenas informações suficientes a cada momento para avançar na tarefa em questão. Essa estratégia depende essencialmente da atividade corporal.

Além de incorporados, os processos mentais também podem ser estendidos, de forma a incorporarem artefatos externos. Clark e seu colega David Chalmers, ambos filósofos da mente, propõem o que desde então ficou conhecido como Princípio da Paridade, que diz que se um artefato externo desempenha uma função que consideraríamos mental se ocorresse dentro da cabeça, então o artefato é (temporariamente) uma parte genuína da mente do usuário. Para ilustrar isso, Clark e Chalmers descrevem duas pessoas, cada uma tentando descobrir onde várias peças se encaixam em um quebra-cabeça. Uma delas faz isso em sua cabeça, formando e girando imagens mentais das peças, enquanto a outra pressiona um botão para girar as peças em uma tela. Como o primeiro processo é entendido como mental, o segundo também deveria ser, argumentam Clark e Chalmers. O que importa é o que o objeto faz, não onde ele está localizado. (Compare com uma máquina de diálise portátil, que se torna parte do sistema excretor de uma pessoa). A lógica é a mesma daquela usada para identificar a mente com o cérebro - e não com a alma; a mente é tudo o que executa funções mentais.

A linguagem é um meio particularmente poderoso de extensão e aprimoramento, servindo, nas palavras de Clark, como um andaime que permite ao cérebro biológico realizar coisas que ele não poderia fazer por conta própria. Os símbolos linguísticos fornecem novos focos de atenção, permitindo-nos registrar características do mundo que de outro modo não conseguiríamos fazer, e também fornecem sentenças estruturadas que revelam relações lógicas e semânticas, permitindo-nos desenvolver novos e mais abstratos procedimentos de raciocínio. Com uma caneta ou um notebook, podemos construir esquemas aprofundados de pensamento e raciocínio que nunca poderíamos conceber somente com nossos cérebros. Ao escrever, não estamos simplesmente registrando nossos pensamentos, mas construindo nossos pensamentos. (Como o físico Richard Feynman observou certa vez: 'Eu de fato fiz o trabalho no papel.').

Clark e Chalmers propõem que os 
estados mentais
, como as ideias, também podem ser localizados externamente. Eles imaginam um personagem, Otto, que tem a Doença de Alzheimer e usa um caderno para registrar as informações de que precisa para orientar suas atividades diárias. Quando precisa se lembrar de um endereço, Otto consulta seu caderno ao invés de sua memória biológica - e Clark e Chalmers sugerem que o caderno literalmente contém sua ideia sobre o endereço. O caderno funciona como uma memória externa (tal qual um pen drive) conectada ao resto da mente de Otto por meio de uma relação perceptiva. Clark e Chalmers enfatizam que esta conexão deve ser suficientemente forte para que o caderno tenha este status: Otto deve carregar o caderno constantemente consigo, deve poder acessar seu conteúdo facilmente e deve confiar no que está escrito nele (desta maneira, os conteúdos dos livros guardados nas prateleiras da casa de Otto não podem ser entendidos como ideias de sua mente). 
Claro, as ideias armazenadas no caderno de Otto não são conscientes (até que Otto as consulte), mas nem o são as ideias armazenadas em nossos cérebros até que as convoquemos à mente.

Como observa o filósofo da mente Daniel Dennett, muitos idosos estão na posição de Otto, contando com uma série de dicas espalhadas pela casa para orientá-los em suas rotinas diárias, lembrando-os do que fazer, quando e como. À medida que suas memórias falham, eles transferem esse trabalho para o ambiente externo, e retirá-los de suas casas, como Dennett afirma no livro Tipos de mentes (1996), "é literalmente separá-los de grandes partes de suas mentes - [algo] potencialmente tão devastador como sofrer uma cirurgia cerebral".

Você talvez esteja se perguntando por que devemos pensar em mentes 
que se extendem para corpos e artefatos, ao invés de meramente dizer que as mentes interagem com eles. Isso faz alguma diferença? Uma resposta possível é que, nos casos descritos, cérebro, corpo e mundo não estão agindo como sistemas interativos separados, mas como um único sistema acoplado, fortemente entrelaçado por complexas relações de feedback, e que precisamos olhar para o todo a fim de compreender como o processo se desenrola (é importante notar, também, que o próprio cérebro é uma coleção de subsistemas acoplados).

Naturalmente, pensamos que estamos situados em nossas cabeças. Mas isso é por causa de como nossos sistemas perceptivos modelam o mundo e nossa localização nele (refletindo a localização de nossos olhos e ouvidos), mas não porque nossos cérebros estejam lá. Imagine (se não for muito assustador) ter seu cérebro vivo removido temporariamente do crânio, mantendo-se as conexões nervosas intactas, de forma que você possa segurá-lo e olhá-lo. Você [isto é, o seu "eu] ainda pareceria estar em sua cabeça, embora seu cérebro estivesse em suas mãos.

Se a mente não é limitada pelo cérebro ou pela pele, até onde ela vai? Qual é seu limite? A resposta curta é que não existe um limite - pelo menos não um limite estável. A mente se expande e se encolhe. Às vezes (no pensamento silencioso, por exemplo) a atividade mental está confinada ao cérebro, mas frequentemente ela se espalha pelo corpo e pelo mundo externo. A mente é uma coisa escorregadia, que não pode ser contida.

terça-feira, 15 de setembro de 2020

Reconhecer nossa humanidade em comum pode não ser suficiente para impedir o ódio

Compartilho abaixo a tradução que fiz do artigo Recognising our common humanity might not be enough to prevent hatred, publicado no site Psyche no dia 2 de Setembro pela professora de psicologia da York University Harriet Over.

Ontem à noite, minha filha e eu nos enrolamos debaixo de um cobertor e lemos Under the Same Sky [Debaixo do mesmo céu] (2017), escrito pela Britta Teckentrup. É um lindo livro, ilustrado, sobre como somos fundamentalmente semelhantes uns aos outros. Ele começa assim: 'Vivemos sob o mesmo céu, em terras próximas e distantes. Vivemos sob o mesmo céu, onde quer que estejamos. Sentimos o mesmo amor no gelo frio e na neve. Sentimos o mesmo amor onde crescem prados delicados... '.

Oitenta anos atrás, uma mãe e uma filha alemãs poderiam muito bem ter se enrolado sob um cobertor da mesma maneira, mas com um livro infantil muito diferente, Der Giftpilz (1938), de Julius Streicher, - que poderia ser traduzido como "O cogumelo venenoso". Enquanto a capa do livro de Teckentrup traz duas raposas amorosas, a capa de Streicher apresenta horríveis caricaturas de homens judeus na forma de cogumelos e, no texto, ele descreve os judeus como uma praga e como demônios.

"O cogumelo venenoso" é frequentemente citado como um exemplo de desumanização - uma tendência de ver aqueles de fora do grupo [outsiders] como menos humanos. De acordo com a opinião consensual entre psicólogos e outros especialistas, membros de grupos externos são freqüentemente vistos como mais próximos de animais ou máquinas do que de outros seres que merecem cuidado. Além disso, esses especialistas acreditam que a desumanização está no cerne dos danos intergrupais. Argumentam que os nazistas nunca poderiam ter enviado homens, mulheres e crianças a Auschwitz se tivessem reconhecido sua humanidade em comum.

É uma ideia intuitivamente atraente. Quando os defensores da [ideia de] desumanização citam exemplos, como o do "O cogumemelo venenoso", que são tão poderosos e tão emocionalmente evocativos, é difícil questioná-los. Em seu livro Less Than Human (2012), o filósofo David Livingstone Smith reuniu inúmeros casos históricos semelhantes, onde os perpetradores de danos intergrupais extremos descreveram suas vítimas como menos humanas, incluindo o genocídio Hutu dos Tutsis em Ruanda em 1994 e a opressão de negros americanos por brancos sob o regime de escravidão no sul dos Estados Unidos.

Nenhum de nós está isento dessas forças. Nas sociedades ocidentais contemporâneas, não é incomum ouvir os imigrantes serem chamados de 'enxame' ou 'infestação'. A pesquisa psicológica também sugere que a desumanização não ocorre apenas dentre os extremistas. Quando voluntários são solicitados a avaliar as qualidades de diferentes grupos, mesmo aqueles que sustentam visões políticas moderadas frequentemente negam sutilmente aos grupos externos [outgroups] qualidades exclusivamente humanas, como civilidade, racionalidade e refinamento. Em estudos de percepção de emoção, nos quais voluntários são solicitados a avaliar as experiências emocionais de outras pessoas, eles relatam que os membros de grupos externos ao seu experimentam emoções humanas complexas, como orgulho, admiração e culpa, em menor grau do que membros do seu próprio grupo [ingroup].

No entanto, observe mais de perto as evidências, e a alegação de que grupos externos são desumanizados perde um pouco, talvez a maior parte, de seu valor explicativo. Existem dois problemas principais. Primeiro, não está claro se os grupos externos realmente são percebidos como menos humanos do que os internos. Em segundo lugar, mesmo que grupos externos sejam percebidos como menos humanos, não está claro por que isso aumentaria o risco de danos contra eles.

Conforme observado por outros autores, incluindo a filósofa Kate Manne e o psicólogo Paul Bloom, quando as pessoas depreciam os membros do grupo externo, elas geralmente os descrevem de maneiras que só fazem sentido quando aplicadas a humanos. No livro "O cogumelo venenoso", por exemplo, os judeus são descritos como mentirosos, vigaristas e estupradores. A propaganda nazista está repleta de exemplos semelhantes. Faz sentido chamar outro ser humano de vigarista, mas não faz sentido se referir a um animal ou a uma máquina dessa forma.

Além disso, embora membros de grupos externos sejam freqüentemente descritos como semelhantes a entidades não humanas, também o são membros de grupos internos. Olhe além da capa e o texto de "O cogumelo venenoso" revela que este é o caso: 'Os seres humanos neste mundo são como os cogumelos na floresta. Existem bons cogumelos e existem boas pessoas. Existem cogumelos venenosos e ruins e existem pessoas ruins'. Os judeus são comparados aos cogumelos, mas o povo alemão também o é.

A pesquisa psicológica que mostra evidências de desumanização também enfrenta desafios conceituais. Os modelos atuais sugerem que, quando as pessoas desumanizam sutilmente os grupos externos, negam-lhes qualidades exclusivamente humanas, como civilidade, refinamento e racionalidade. Isso pode muito bem ser verdade, mas e quanto às qualidades humanas mais anti-sociais? Os humanos podem ser civilizados, refinados e racionais, mas também podem ser mesquinhos, rancorosos e arrogantes. Em uma pesquisa em andamento em meu laboratório, nós perguntamos a voluntários sobre essas qualidades negativas e descobrimos que eles as consideram exclusivas dos seres humanos. Além disso, eles atribuem essas qualidades exclusivamente humanas mais fortemente aos grupos externos do que ao seu próprio grupo. Meus colegas e eu levantamos a hipótese de que o que parece ser uma evidência para a desumanização pode na verdade ser uma evidência para um processo mais básico de preferência intragrupal [ingroup preference] - que significa acreditar que seu próprio grupo possui qualidades humanas mais positivas e que outros grupos têm qualidades humanas mais negativas.

Existem também desafios para a pesquisa neurocientífica que pretende mostrar evidências de desumanização. Em um artigo amplamente citado, publicado em 2006, os pesquisadores Lasana Harris e Susan Fiske argumentaram que, quando as pessoas desumanizam grupos externos, elas pensam que eles carecem de estados mentais, como desejos, crenças e objetivos. Aparentemente corroborando essa visão, a dupla relatou que quando seus voluntários de pesquisa viram fotos de membros de grupos externos, como moradores de rua ou dependentes de drogas, eles exibiram menos ativação em áreas do cérebro associadas à mentalização, particularmente no córtex pré-frontal medial. No entanto, a caracterização de desumanização de Harris e Fiske é enfraquecida por exemplos supostamente prototípicos de desumanização extrema nos quais os perpetradores parecem fazer inferências do estado mental sobre suas vítimas. Por exemplo, a propaganda nazista está repleta de referências às supostas mentiras e conspirações dos judeus para atingirem seus objetivos. Essas referências às crenças e planos do povo judeu eram imprecisas e cheias de intenções maliciosas, mas eram, de toda forma, inferências de estado mental - acusar uma pessoa de mentir é fazer uma inferência sobre o que ela está pensando.

O que dizer então da alegação de que a desumanização dos grupos externos contribui para a disposição para prejudicá-los? Também aqui há razão para ser cético. Muitas pesquisas nesta área baseiam-se no pressuposto de que, ao minar o nosso reconhecimento uns dos outros como semelhantes, a desumanização corrói a inclinação natural que temos de cuidar uns dos outros. No entanto não é sensato colocar muita fé no desejo humano de proteger e cuidar de outros humanos. Na verdade, os membros de grupos externos às vezes são prejudicados por causa de sua humanidade percebida. Afinal, apenas humanos podem ser assassinos, traidores e inimigos - e assassinos, traidores e inimigos são vistos como alvos legítimos para tratamento negativo.

Uma segunda razão para duvidar do suposto papel causal da desumanização no dano intergrupal é que muitas pessoas têm um poderoso instinto de tratar animais não-humanos com muito cuidado. Os animais de estimação, por exemplo, são obviamente "menos que humanos" e mesmo assim as pessoas dispensam cuidado, atenção e dinheiro com eles. Ver um grupo como menos do que humano, então, não parece nem necessário nem suficiente para prejudicá-los.

Minha crítica à desumanização como uma explicação para os danos intergrupais tem implicações que vão além do debate acadêmico. Inspirados por trabalhos nesta área, alguns pesquisadores começaram a desenvolver intervenções voltadas para a mudança social que pretendiam reduzir a desumanização. Embora bem intencionados, esses esforços podem estar sendo mal direcionados. Minha análise sugere que as tentativas de fomentar uma sociedade mais inclusiva e igualitária poderiam ser melhor direcionadas caso se focalizassem em outros processos psicológicos já bem estabelecidos, como a tendência humana de estereotipar e depreciar as pessoas de fora do grupo [outsiders].

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Considerações sobre a campanha Setembro Amarelo

Setembro é o mês da campanha Setembro Amarelo, criada em 2015 pelo Centro de Valorização da Vida (CVV) juntamente com o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Desde então, neste mês são organizados eventos e discussões por todo o país sobre saúde mental com foco na prevenção do suicídio. A ideia que embasa a campanha é que falar sobre suicídio - e, mais amplamente sobre saúde mental - de alguma forma contribuiria, direta ou indiretamente, para a redução dos casos. A grande questão é que esta ideia não está comprovada de forma alguma - existe a possibilidade, inclusive, de que a ampla discussão sobre o tema possa contribuir para o aumento nos casos de suicídio. Um estudo publicado este ano avaliou os índices de suicídio no Brasil antes e após o início da campanha, em 2015. E a conclusão dos autores é que houve um aumento - mesmo resultado obtido por um outro estudo, publicado em 2018, que analisou os índices de suicídio antes e após a implementação da campanha Setembro Amarelo no Estado de Santa Catarina. Não se pode inferir destes resultados, contudo, que foi ou teria sido a campanha a responsável por tais aumentos, mas é possível sugerir que a campanha não foi tão útil na prevenção do suicídio como se imaginava e se pretendia. Certamente o suicídio tem relação com muito mais questões do que a campanha, logo não dá para apontar qualquer relação de causalidade, apenas correlações. Mas para além de sua eficácia ou ineficácia, meu principal incômodo com a campanha Setembro Amarelo está na visão, amplamente disseminada, de que a "prevenção do suicídio" diz respeito basicamente à contribuir para que as pessoas procurem apoio psicológico e (especialmente) psiquiátrico. O problema do suicídio é bem mais profundo e complexo do que o problema de como incentivar as pessoas em sofrimento a buscar ajuda ou tratamento, pois ele diz respeito à indagação fundamental de se a vida vale ou não a pena ser vivida. E esta indagação é sempre atravessada por inúmeras questões, tanto individuais como sociais. "Mas então" - alguém pode estar se perguntando - "você propõe que não se faça nada e que apenas observemos passivamente o aumento nas taxas de suicídio?". De forma alguma. Apoio totalmente ações e eventos voltados para a discussão da saúde mental - sem o foco no suicídio e também sem aquele viés patologizante e medicalizante típico de grande parte das iniciativas - assim como o incentivo à procura por apoio profissional, que mesmo não sendo uma panaceia pode contribuir para minimizar o problema. E penso que estas ações deveriam ocorrer ao longo de todo o ano, e não concentradas em um único mês. Mas também acredito que outras iniciativas deveriam vir junto, como o apoio à políticas de emprego e renda, à políticas ampliadas e não-excludentes de saúde mental, à políticas de proteção dos direitos humanos e de combate às opressões, dentre muitas outras políticas voltadas para a melhoria das condições de vida e saúde da população. Da mesma é fundamental se opor com veemência à políticas de facilitação do acesso a armas de fogo - que comprovadamente contribuem para o aumento nas taxas de suicídio - e à tantas outras necropolíticas que tem se multiplicado pelo Brasil nos últimos anos. Na minha visão, fazer cartazes com frases motivacionais e organizar palestras sobre saúde mental terá sempre um efeito muito pequeno, talvez nulo, se tais iniciativas não vierem acompanhadas de políticas e ações concretas que contribuam para que a vida realmente valha a pena ser vivida.