quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

O fim da Psicologia está próximo?

No ano passado, um antigo professor meu, que deixou o Brasil para trabalhar em uma universidade norte-americana, comentou em uma palestra que tem observado uma curiosa (e perigosa) preponderância dos estudos cerebrais nos departamentos de Psicologia dos Estados Unidos - em detrimento de estudos "mentais" e comportamentais, por exemplo. Segundo ele, dificilmente um projeto de pesquisa em psicologia consegue um financiamento significativo caso não mencione a palavra "cérebro". Na mesma direção, os autores deste artigo apontam para um curioso fenômeno no qual os departamentos de Psicologia de universidades norte-americanas vem gradualmente alterando os próprios nomes de forma a incluir o foco nas neurociências. Assim, é possível encontrar, atualmente, em prestigiosas universidades americanas não mais "departamentos de psicologia" mas sim "departamentos de psicologia e ciências cerebrais" ou "departamentos de psicologia e neurociências". De uma forma geral, os autores apontam, com preocupação, que a psicologia, nos últimos 20 anos, "adotou cada vez mais o cérebro como o mais importante nível de análise para a compreensão de fenômenos psicológicos, como as emoções, os pensamentos, os distúrbios de humor e ansiedade, os vícios e os problemas sociais". E isto, na visão deles, é muito danoso, pois reduz o foco da psicologia apenas a um nível de análise, quando há muitas outras formas e abordagens para se estudar o ser humano. No Brasil, talvez pela considerável força e presença da psicanálise e dos psicanalistas nos cursos de psicologia - e também, minoritariamente, dos humanistas e comportamentalistas - este processo vem ocorrendo de forma muito mais lenta - isto para não falar do alto custo dos estudos cerebrais associado ao baixo investimento governamental em pesquisa nos últimos anos. 

De toda forma, esta expansão das abordagens "neuro" no interior das áreas "psi" (que inclui também a psiquiatria) vem gerando preocupação em alguns pesquisadores, que especulam que em algum momento a neurociência poderá "engolir" a psicologia - se não totalmente, pelo menos hegemonicamente. E com isso, a psicologia, uma disciplina híbrida que historicamente oscila entre abordagens mais biológicas e abordagens mais psico-sociológicas, se inclinaria fortemente para a biologia. Para alguns, isto significaria o fim da psicologia como atualmente a entendemos; já para outros seria uma oportunidade para a psicologia se reinventar e se tornar de fato uma disciplina científica. Analisemos, por exemplo, o artigo  The imminent decline of psychology (as we know it today) (2017) [O iminente declínio da Psicologia (como a conhecemos hoje)], escrito pela psicóloga Jesús Retto, do departamento de Psicologia da Universidad Nacional Mayor de San Marcos, no Peru. De acordo com a autora, "o vertiginoso avanço tecnológico no campo da Inteligência Artificial, juntamente com a rápida expansão das Neurociências, está gradualmente tirando o lugar dos vários campos de estudo da Psicologia. Tanto que o seu desaparecimento - como a conhecemos hoje - é previsível em um futuro não muito distante, tanto como disciplina quanto como profissão". Para Retto, diante deste cenário apocalíptico para a Psicologia, a única saída é que os psicólogos se adaptem à nova realidade e busquem incorporar em seus estudos e práticas profissionais os conhecimentos advindos das ciências do cérebro. Em sua visão, a neurociência tem a capacidade de "oferecer melhores respostas" do que a Psicologia para os problemas referentes à psiquê humana, tanto em função de sua natureza multidisciplinar quando devido aos recursos tecnológicos que ela possui.

Como vocês já devem estar imaginando, eu discordo veementemente desta posição, pois acredito - como já defendi em outros momentos - que as áreas da psicologia e da neurociência podem e devem coexistir e colaborar uma com a outra. Não é necessário, nem me parece sensato acreditar, que uma área venha a substituir ou subjugar a outra, afinal cada uma tem suas especificidades, seus objetivos e seus métodos e ambas podem trazer contribuições importantes para o desenvolvimento de teorias interdisciplinares sobre a complexa relação mente-cérebro-comportamento. A neurociência cognitiva, por exemplo, sendo a sub-área da neurociência que se ocupa dos mecanismos biológicos relacionados aos processos cognitivos (memória, atenção, percepção, etc) tem muito a ganhar ao se aproximar e dialogar com a psicologia cognitiva, sub-área da psicologia que investiga os mesmos processos de um ponto de vista mental e comportamental. E vice-versa. Isoladamente, cada área ou subárea consegue investigar apenas um determinado nível da realidade, mas juntas elas podem construir conhecimentos mais profundos e relevantes sobre a cognição humana. Como defendem os autores do importante artigo The role of neuroscience within psychology: A call for inclusiveness over exclusiveness (2016) [O  papel da neurociência dentro da psicologia: um chamado para a inclusão acima da exclusividade] o conhecimento neurocientífico tem muito a contribuir e a somar com a psicologia na medida em que possibilita a análise das bases cerebrais dos pensamentos, emoções e comportamentos humanos. Como apontam os pesquisadores, "a neurociência é um componente essencial da psicologia porque ela nos permite entender o funcionamento do cérebro, os efeitos das lesões cerebrais no funcionamento psicológico e neurológico e as regiões e processos associados com atividades mentais específicas". Mas a grande questão é que este é apenas um olhar ou um nível de análise possível, dentre muitos outrosImaginar, neste sentido, que a psicologia chegará a um fim, sendo gradualmente substituída pelas neurociências, só faz sentido caso se acredite que estudar os neurônios, sinapses e circuitos cerebrais seja suficiente para se entender a mente e o comportamento humanos. Da mesma forma, imaginar que a profissão de psicólogo chegará a um fim, sendo substituída por uma espécie de neuropsiquiatria clínica, só faz sentido caso se acredite na existência, ou na possibilidade de desenvolvimento, de medicações ou intervenções puramente cerebrais capazes de dar conta das angústias, tristezas e demais questões inerentes à subjetividade humana. Eu, definitivamente, não acredito nisso. E você?

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

"O cérebro vai ao tribunal": reflexões a partir do caso do motorista epilético

No último dia 18 de Janeiro um motorista perdeu o controle do carro e invadiu o calçadão da praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, matando um bebê de 8 meses e deixando 17 pessoas feridas. Posteriormente descobriu-se que o motorista, que sobreviveu sem ferimentos, é epilético e teria tido, segundo seu próprio relato, confirmado por uma testemunha-chave, um ataque epilético enquanto dirigia naquele dia, o que teria causado o acidente. De toda forma, o motorista está sendo processado por homicídio culposo, quando não há intenção de matar, e também por falsidade ideológica, devido ao fato de não ter mencionado sua doença no processo de renovação da carteira de motorista. Pra piorar sua situação descobriu-se que sua habilitação estava suspensa devido ao fato de que, em cinco anos, ele acumulou 14 multas e 62 pontos na carteira - o motorista alega não ter sido informado desta suspensão. Pois bem, se realmente for comprovado que ele tinha ciência da suspensão e que intencionalmente não mencionou ser portador de epilepsia no formulário para renovação da carteira, eu não tenho dúvidas que ele tem alguma responsabilidade no acidente, ainda que não tenha responsabilidade sobre o ataque epilético, se de fato ele ocorreu. Segundo as normas de trânsito brasileiras, uma pessoa diagnosticada com epilepsia pode sim dirigir, desde que a pessoa esteja se medicando corretamente e o quadro esteja controlado. De acordo com este site, "pacientes epiléticos que apresentam crises frequentes ou com intervalos inferiores a 1 ano não devem dirigir e estão impossibilitados de tirar a Carteira Nacional de Habilitação (CNH)". Cabe apontar que para esta avaliação ser feita é necessário, antes de tudo, que a pessoa indique no formulário específico ser portadora de epilepsia. A partir daí, uma serie de avaliações médicas serão feitas ou exigidas de forma a avaliar, caso a caso, a gravidade da situação. 

Agora, vamos supor que o motorista em questão tenha de fato mencionado sua doença no questionário e sua avaliação tenha sido positiva, permitindo que ele tirasse a carteira de motorista e dirigisse por aí. Vamos supor ainda que o motorista estivesse tomando corretamente as medicações indicadas  e que, mesmo assim, ele tivesse tido o ataque epilético na Avenida Atlântica e atropelasse, no mesmo dia, as mesmas pessoas. Neste caso ele poderia ser considerado culpado da situação? Seu advogado de defesa certamente argumentaria - como provavelmente irá argumentar - que o acidente ocorreu devido a uma alteração elétrica no seu cérebro, sobre a qual ele não possui qualquer controle ou responsabilidade. "A culpa é do cérebro doente do meu cliente, meritíssimo, não do meu cliente", ele poderia argumentar. Se o juiz ou o júri seriam convencidos por esta alegação é uma outra história, mas é um fato estabelecido que tais argumentações focadas no funcionamento "anormal" do cérebro tem sido cada vez mais utilizadas nos tribunais, especialmente por advogados de defesa. Parodiando o título do meu primeiro livro, é possível dizer que atualmente o cérebro vai ao tribunal - cada vez mais. E por que isso tem ocorrido? Um dos motivos é que todo conhecimento ao qual é atribuído a alcunha de científico goza de mais legitimidade no mundo contemporâneo do que outras formas de conhecimento - como o filosófico e o artístico, por exemplo. Assim, a neurociência, sendo a ciência que se dedica ao estudo do sistema nervoso, tem sido cada vez mais vista por advogados e juristas como uma importante fonte de dados capaz de explicar o comportamento humano  - há algumas décadas eram a psicologia e à psicanálise que ocupavam esse lugar. Um segundo motivo, relacionado a este, é que o conhecimento neurocientífico é comumente utilizado não somente para explicar mas também para justificar determinado comportamento. Advogados de defesa frequentemente argumentam que seu cliente cometeu certo delito ou crime em decorrência de determinada "lesão", "disfunção"  ou "desequilíbrio" em seu cérebro, que "fez" com que ele se comportasse - ou não se comportasse - de determinada maneira. A ideia, neste caso, é inverter a lógica, e transformar um suposto culpado em vítima de algo que ocorreu dentro do seu cérebro - e, portanto, fora do seu controle.

Em alguns casos, certamente, isto faz sentido. Por exemplo, em um caso bastante citado na literatura neurocientífica, um homem passou de uma hora para outra a se interessar sexualmente por crianças. Posteriormente descobriu-se que o sujeito possuía um enorme tumor em seu lobo frontal, área relacionada, dentre outras coisas, ao controle de impulsos. O tumor foi retirado e o sujeito deixou de manifestar desejos e comportamentos pedófilos. Um outro caso, ficcional mas baseado em alguns casos reais, pode ser encontrado no filme Terapia de risco (que já analisei aqui), no qual uma mulher mata o marido durante um episódio de sonambulismo. Nestes dois casos, os sujeitos até podem ser punidos pelos atos ilícitos, no entanto me parece bastante claro que eles de fato não tinham total controle dos próprios comportamentos - no segundo caso menos ainda, pois a "criminosa" estava inconsciente. O mesmo parece valer para todos aqueles que cometeram crimes durante surtos psicóticos ou como consequência de transtornos psiquiátricos e neurológicos graves. Caso o advogado consiga provar que o sujeito não tinha consciência do que fez e de que tal ato era errado ele pode ser considerado inimputável, isto é, sobre ele não pode ser imputado ou atribuído nenhum crime. Como afirma este site, são inimputáveis todos aqueles "incapazes de discernir seus atos, que cometem infração penal, porém no momento do crime eram inteiramente incapazes de entender o caráter ilícito do fato" - no Brasil se encaixam nesta categoria os menores de 18 anos, os maiores de 70 anos, os "doentes mentais" e as pessoas que "cometeram crime em estado de embriaguez completa, desde que seja proveniente de caso fortuito ou força maior". A ideia de culpabilidade no Direito também está relacionada a esta questão. De acordo com este artigo, culpabilidade significa "poder atuar de outro modo". Isto quer dizer que só pode ser considerado culpado o sujeito que escolheu livremente agir de forma ilícita ou criminosa quando poderia seguir o caminho "correto". Caso o sujeito não tenha tido condições, por algum motivo, de "atuar de outro modo", ele não pode ser considerado culpado.

Isto significa que somente pessoas "livres", isto é, aquelas que poderiam agir de outra forma - embora não tenham agido - podem ser consideradas culpadas de algum crime - e curiosamente a punição para estas pessoas "livres" tem sido majoritariamente, já há alguns séculos, a perda da liberdade, isto é, a prisão. Mas uma questão importante em toda esta discussão é se nós, os imputáveis, os culpáveis, os "normais", somos de fato livres para fazer nossas escolhas? Esta questão da liberdade, que já discuti em outros momentos, é extremamente antiga e ainda não foi - e provavelmente nunca será - resolvida. Pois de fato é possível verificar uma oscilação ao longo dos séculos entre visões deterministas, que questionam e mesmo negam o livre-arbítrio humano e visões compatibilistas, que tentam compatibilizar o determinismo do mundo físico com a ideia de liberdade. Mais recentemente tem surgido no seio da neurociência um grupo de cientistas que defende a ideia de que a liberdade não passa de uma ilusão, pois todas as nossas escolhas seriam tomadas de forma inconsciente por nosso cérebro. Um dos mais célebres "neurodeterministas" é o neurocientista inglês David Eagleman, autor de diversos livros de divulgação científica, dentre eles o controverso Incógnito: as vidas secretas do cérebro e o interessante Cérebro: uma biografia, recém-lançado no Brasil. No primeiro livro o autor argumenta e defende a tese de que "em nossa atual compreensão da ciência, não podemos encontrar o hiato físico em que encaixar o livre-arbítrio - o causador sem causa - porque não parece haver nenhuma parte da maquinaria [cerebral] que não siga uma relação causal com outras partes". Isto significa que, para ele, nosso cérebro não passa de uma máquina extremamente complexa que toma as decisões de maneira automática em função tanto dos nossos genes, quanto da nossa química cerebral e da nossa educação. Afinal, como ele afirma em outro momento, "quando se trata de natureza e criação a questão que importa é que você não escolhe nem uma nem outra". Sua conclusão, neste sentido é simples: não somos livres pois somos determinados por instâncias que não temos controle. Assim, se um sujeito cometeu um crime, ele o fez necessariamente em função de alguma alteração em seu cérebro. Como afirma Eagleman, "mesmo quando não podemos medir o que há de errado no cérebro de um criminoso, podemos pressupor com boa segurança que há algo errado. Seus atos são prova suficiente de uma anormalidade cerebral mesmo que não saibamos (e talvez jamais venhamos a saber) dos detalhes".

A consequência desta visão é que todo o nosso sistema jurídico/penal, baseado na doutrina da culpabilidade, precisaria ser reformado para lidar com a ideia de que as decisões humanas não são autônomas e de que, enfim, o livre-arbítrio não passa de uma ilusão. David Eagleman defende, nesse sentido, um sistema de justiça "mais compatível com o cérebro" ou, mais precisamente, uma "jurisprudência de fundamentação biológica" na qual o objetivo do sistema não seria mais punir o infrator, que não é responsável pelo crime cometido (foi seu cérebro que o fez cometer, lembre-se!), mas sim tratá-lo para que mude seu comportamento. Sua perspectiva passa pela substituição da ideia de imputabilidade pela noção de modificabilidade. Neste caso, a questão que o juiz se faria perante um criminoso é se é ou não possível modificar o seu comportamento? Se constatar que sim, ele seria mandado para a reabilitação. Se constatar que não, seria mandado para a prisão. Sua principal crítica - com a qual eu concordo - é que atualmente o único caminho para a maioria dos criminosos é a prisão, que além de não "corrigir" ou "reabilitar" o sujeito (pelo contrário, acaba fortalecendo suas ligações com o crime), não parece ter outro propósito se não vingá-lo ou puni-lo por seu erro. O grande problema da visão de Eagleman, na minha opinião, é que não me parece tão simples assim dizer que o livre-arbítrio não passa de uma ilusão. Dizer, por exemplo, que um sujeito se tornou pedófilo ou cometeu algum crime devido a uma lesão ou tumor no cérebro não implica que todos os comportamentos humanos sejam causados por alterações cerebrais. Certamente as alterações cerebrais "acompanham" todas as ações humanas, mas isto não quer dizer que elas causam o comportamento, significa apenas que ambos estão "correlacionados". Além do mais, dizer e aceitar que grande parte dos comportamentos humanos são automáticos ou inconscientes não implica que todos os comportamentos sejam "determinados" pelo cérebro. Alguns comportamentos, mesmo que sejam poucos, são livremente escolhidos - por exemplo, David Eagleman decidiu por livre e espontânea vontade escrever um livro sobre a ausência de liberdade, eu decidi escrever esse texto, você escolheu lê-lo. Negar a ideia de liberdade, além de algo profundamente contra-intuitivo me parece extremamente perigoso. Afinal, se não somos livres para fazer nossas escolhas qual seria o problema, então, em deixá-las nas mãos de outras pessoas?

Além do mais, abolir a ideia de livre-arbítrio teria consequências catastróficas para o nosso sistema jurídico, em uma espécie de efeito dominó. Se o criminoso não é livre para escolher entre o crime e a lei, então o juiz também não é livre para julgar e proferir a sentença e o legislador não é livre para elaborar as leis. Retirar a ideia de liberdade de escolha do nossos sistemas jurídico e político me parece algo profundamente perigoso - e vários juristas pensam da mesma forma. Tanto é assim que nos diversos estudos que li sobre a aproximação entre Neurociências e Direito Penal em todos eles os juristas acabam por criticar a ideia de que a neurociência provou de forma definitiva que o livre-arbítrio é uma ilusão. Peguemos, por exemplo, a conclusão da tese de doutorado Livre-arbítrio e culpabilidade: a responsabilização penal em face das contribuições da neurociência, segundo a qual "o estado da arte da discussão filosófica sobre o livre-arbítrio continua no mesmo nível de anteriormente ao advento da neurociência: nossa noção intuitiva de que, de alguma forma, estamos no comando de nossas próprias ações permanece em encruzilhada científica, onde, em um flanco, estão os partidários da física clássica e, de outro, ficam os defensores da física quântica de escala atômica - sendo que nenhum deles é capaz de apresentar uma resposta satisfatória acerca da liberdade da vontade". Já na dissertação de mestrado Neurociências e culpabilidade a autora conclui que "ainda que a neurociência demonstre as cadeias causais inseridas no cérebro humano e revele que tudo se inicia no plano do inconsciente, a ideia de liberdade não é construída, afirmada ou negada a partir de tais parâmetros". Finalmente, no artigo Da psicanálise à neurociência: do fim ao fim da culpabilidade na doutrina ibérica, o autor conclui, de forma brilhante, que "provar empiricamente a existência do livre-arbítrio é tão difícil quanto provar a existência do amor ou da felicidade. Não é possível provar empiricamente que alguém ama ou que alguém é feliz, mas o certo é que o homem se vê como um sujeito capaz de amar e de ser feliz, assim como o ser humano se enxerga como alguém dotado de possibilidades de escolha, e com base nestas possibilidades deve pautar sua vida como homem livre". Enfim, a tese disseminada por alguns neurocientistas de que o livre-arbítrio não passa de uma ilusão é apenas mais uma hipótese sobre a liberdade, nem a única, nem a mais embasada e nem a mais verdadeira. 

Sobre a ideia de substituir a ideia de imputabilidade pela de modificabilidade, o próprio David Eagleman aponta que ainda não existem meios efetivos de se intervir no cérebro e no comportamento de um sujeito criminoso de forma a mudar sua forma de agir. Mas ele acredita que no futuro (sempre no futuro!) tais meios serão desenvolvidos. Como afirma em certo momento do livro Incógnito, "especulo que um dia poderemos basear as decisões de punições na neuroplasticidade" - isto é, na possibilidade de alterar e reabilitar o cérebro do criminoso. Tendo em vista que se trata de uma especulação baseada em uma série possibilidades e probabilidades ainda pouco concretas, seria bastante temerário modificar todo o sistema jurídico com base nisso. Além do mais, mesmo que um dia as neurociências provem de forma definitiva que o livre-arbítrio é uma ilusão (o que não creio ser possível), ainda assim a ideia de liberdade poderia ser defendida e utilizada como base do sistema jurídico. Isto porque uma coisa é o livre-arbítrio enquanto conceito científico e filosófico e outra coisa é a ideia de liberdade de um ponto de vista do Direito. Como bem aponta o autor do artigo Culpabilidade e neurociência: uma análise da crise do paradigma científico moderno, "o direito penal não se afeta pela Neurociência porque o tipo de verdade que interessa o Direito Penal e que se alcança mediante um processo não é a verdade científica (positivista), porém uma verdade formal, fruto de um procedimento regrado cujo objetivo é a resolução consensual do conflito e não a busca da verdade. O direito penal contrói seus próprios conceitos de forma independente do que consideramos hoje como conhecimento científico, de modo que a liberdade que sustenta o juízo de culpabilidade e a própria culpabilidade não é um conceito de caráter empírico, mas normativo". Resumindo: a verdade do Direito não corresponde necessariamente àquilo que a ciência e a neurociência consideram verdade. 

Na mesma linha de raciocínio, o autor do artigo Da psicanálise à neurociência afirma que "se há dúvidas razoáveis sobre a liberdade individual, no plano empírico ou filosófico, não se pode negar que há o reconhecimento de um direito fundamental de liberdade do gênero humano, direito este que é reconhecido pela ordem jurídica e compreende uma visão de ser humano construída historicamente e solidificada pela secularização e laicização do Estado de Direito. O ser humano é concebido pelo direito como um ser livre, seja coletiva, seja individualmente. E essa concepção não parece ser mera outorga do Direito positivo. Trata-se de um reflexo do modo com o qual o homem enxerga a si mesmo, e seria difícil conceber uma ordem jurídica que não reconheça, em maior ou menor grau, a liberdade como direito fundamental. Não se pode deixar de reconhecer que o moderno Estado Constitucional reflete uma visão de ser humano livre, e que a democracia moderna pressupõe o exercício individual e coletivo do direito de liberdade, sem o qual não é possível conceber a dignidade humana". De uma forma resumida o autor conclui: "A visão do homem como ser livre independe da comprovação empírica do livre-arbítrio". Tudo isto significa que ainda que a neurociência, ou melhor, alguns neurocientistas, neguem a ideia de livre-arbítrio, ainda assim podemos e devemos defender a liberdade humana. Afinal, como bem aponta o autor do artigo Culpabilidade e Neurociência "a Neurociência não é a única disciplina que demonstra dados relevantes sobre a conduta humana. O ser humano é em essência não somente um ente biológico, mas também um ser social, que se comunica, se interrelaciona, de modo que o Direito Penal não pode construir seus fundamentos e instrumentos desconsiderando outras ciências da conduta como a Sociologia, a Psicologia e as Ciências Criminais". Enfim, a neurociência por mais importante e relevante que seja, não tem como, sozinha, explicar o comportamento humano e muito menos direcionar e embasar o nosso sistema jurídico. 

PÓS-ESCRITO: em seu livro mais recente, Cérebro: uma biografia, David Eagleman parece ter recuado um pouco e adotado um tom levemente mais moderado sobre o tema do livre-arbítrio. Ele continua não acreditando na liberdade humana, mas pelo menos pondera que a neurociência não tem meios, ainda, de provar o determinismo. Como aponta em certo trecho do livro, "no momento, a neurociência não tem os experimentos perfeitos para excluir inteiramente o livre-arbítrio - este é um tema complexo e nossa ciência talvez seja jovem demais para o abordar em sua totalidade". Novamente, ele aposta no futuro para reverter esta indefinição.