segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Um famoso argumento contra o livre-arbítrio foi desmascarado


No dia 10 de Setembro de 2019, a revista The Atlantic publicou um excelente artigo da jornalista científica Bahar Gholipour denominado A Famous Argument Against Free Will Has Been Debunked. Segue a tradução amadora que fiz desse texto. Aliás, já comentei sobre sobre o assunto deste artigo em um post antigo do blog denominado Eu sou meu cérebro? Reflexões sobre liberdade e determinismo.

A morte do livre-arbítrio teve início com  milhares de leves batidas dos dedos. Em 1964, dois cientistas alemães monitoraram a atividade elétrica do cérebro de uma dúzia de pessoas. Todos os dias, durante vários meses, os voluntários iam ao laboratório de cientistas da Universidade de Freiburg para terem fios conectados ao couro cabeludo advindos de uma engenhoca semelhante a um chuveiro. Os participantes permaneciam sentados em uma cadeira situada em uma cabine de metal, e tinham que executar apenas uma tarefa: flexionar um dedo da mão direita a qualquer intervalo irregular de tempo que os agradasse, repetidamente, até 500 vezes por visita.

O objetivo deste experimento foi procurar sinais no cérebro dos participantes que precediam cada movimento do dedo. Naquele momento, os pesquisadores sabiam como medir a atividade cerebral que ocorria em resposta a eventos do mundo exterior - quando uma pessoa ouve uma música ou olha uma foto, por exemplo -, mas ninguém havia descoberto como isolar os sinais do cérebro de alguém iniciando uma ação.  

Os resultados do experimento vieram em linhas rabiscadas e pontilhadas, uma representação das mudanças nas ondas cerebrais. Nos milissegundos que antecediam os movimentos dos dedos, as linhas mostravam um aumento fraco, quase indetectável: uma onda que se elevou por cerca de um segundo, como um breve rufar de tambores neuronal, e que terminou abruptamente. Essa perturbação da atividade neuronal, que os cientistas chamaram de potencial de Bereitschafts [Bereitschaftspotential], ou potencial de prontidão, era como uma viagem infinitesimal no tempo. Pela primeira vez, eles puderam ver o cérebro se preparando para criar um movimento voluntário.

Essa importante descoberta foi o começo de muitos problemas na neurociência. Vinte anos depois, o fisiologista norte-americano Benjamin Libet usou o potencial de Bereitschafts para demonstrar não apenas que o cérebro mostra sinais de uma decisão antes da pessoa agir, mas que, incrivelmente, o mecanismo cerebral começa a se alterar antes que a pessoa tenha a intenção consciente de fazer algo. De repente, as escolhas das pessoas - mesmo um simples movimento de dedo - pareciam ser determinadas por algo fora de sua própria vontade consciente.   

A questão filosófica de se os seres humanos têm controle sobre suas próprias ações teve inicio séculos antes de Libet entrar no laboratório. Mas Libet introduziu um argumento neurológico genuíno contra o livre-arbítrio. Seu achado desencadeou uma nova onda de debates no meio científico e filosófico. E, com o tempo, suas implicações foram transformadas em tradição cultural.  

Atualmente, a noção de que nossos cérebros fazem escolhas antes mesmo de tomarmos consciência poderá aparecer em uma conversa informal em uma festa ou em uma resenha da série Black Mirror. Esta questão também tem sido tratada pelos principais veículos de jornalismo, incluindo This American Life, Radiolab e esta revista [The Atlantic]. O trabalho de Libet é freqüentemente trazido à tona por intelectuais populares como Sam Harris e Yuval Noah Harari para argumentar que a ciência teria provado que os seres humanos não são os autores de suas ações.  

Seria uma enorme façanha para um sinal cerebral 100 vezes menor que as principais ondas cerebrais resolver o problema do livre-arbítrio. Mas a história do potencial Bereitschafts tem mais uma reviravolta: pode ser algo completamente diferente.  

O potencial de Bereitschafts nunca foi concebido para se envolver em debates sobre o livre-arbítrio. Na verdade, buscou-se mostrar que o cérebro tem uma espécie de vontade [will of sorts]. Os dois cientistas alemães que o descobriram, um jovem neurologista chamado Hans Helmut Kornhuber e seu aluno de doutorado Lüder Deecke, ficaram frustrados com a abordagem científica de sua época que entendia o cérebro como uma máquina passiva que apenas produzia pensamentos e ações em resposta ao mundo exterior. Em um almoço em 1964, os dois decidiram descobrir como o cérebro trabalhava para gerar espontaneamente uma ação. “Kornhuber e eu acreditávamos no livre-arbítrio”, diz Deecke, que agora tem 81 anos e vive em Viena.  

Para realizar o experimento, a dupla teve que criar alguns truques para contornar a tecnologia limitada. Eles possuíam um computador de última geração para medir as ondas cerebrais de seus participantes, mas ele só funcionava depois que um movimento no dedo era detectado. Então, para coletar dados sobre o que acontecia no cérebro antes desse movimento, os dois pesquisadores se deram conta que podiam registrar a atividade cerebral de seus participantes separadamente em fita e depois reproduzí-las de frente para trás no computador. Essa técnica inventiva, apelidada de "média reversa" [reverse-averaging], revelou o potencial de Bereitschafts.  

A descoberta atraiu grande atenção. O ganhador do prêmio Nobel John Eccles e o proeminente filósofo da ciência Karl Popper compararam a ingenuidade do estudo ao uso de bolas deslizantes por Galileu para descobrir as leis do movimento do universo. Com um punhado de eletrodos e um gravador, Kornhuber e Deecke começaram a fazer o mesmo pelo cérebro. 
  
O que o potencial de Bereitschafts realmente significava, no entanto, era uma incógnita. Seu padrão crescente parecia refletir os dominós da atividade neural caindo um a um em uma trilha enquanto uma pessoa fazia alguma coisa. Os cientistas explicaram o potencial de Bereitschafts como o sinal eletrofisiológico envolvido no planejamento e no início de uma ação. Baseada nessa ideia estava a suposição implícita de que o potencial de Bereitschafts causava essa ação. A suposição era tão natural que, na verdade, ninguém a questionou - nem a testou.

Pesquisador da Universidade da Califórnia em San Francisco, Libet questionou o potencial de Bereitschafts de uma maneira diferente. Por que demora meio segundo ou mais entre a pessoa decidir movimentar um dedo e realmente fazê-lo? Ele repetiu o experimento de Kornhuber e Deecke, mas pediu aos participantes que observassem um aparelho semelhante a um relógio de forma que se lembrassem do momento em que tomaram a decisão. Os resultados mostraram que, enquanto o potencial de Bereitschafts começou a aumentar cerca de 500 milissegundos antes que os participantes realizassem uma ação, eles relataram sua decisão de realizar essa ação apenas cerca de 150 milissegundos antes. "O cérebro evidentemente 'decide' iniciar o ato" antes que a pessoa tenha consciência de que a decisão ocorreu, concluiu Libet.  

Para muitos cientistas, parecia implausível que nossa consciência de uma decisão fosse apenas uma reflexão posterior ilusória [illusory afterthought]. Os pesquisadores questionaram o projeto experimental de Libet, incluindo a precisão das ferramentas usadas por ele para medir as ondas cerebrais e a exatidão com que as pessoas poderiam realmente se lembrar de seu tempo de decisão. Mas falhas eram difíceis de identificar. E Libet, que faleceu em 2007, tinha tantos defensores quanto críticos. Nas décadas posteriores a seu experimento, estudo após estudo replicou sua descoberta usando tecnologias mais modernas, como a ressonância magnética funcional (fMRI). 

Mas um aspecto dos resultados de Libet passou em branco sem grandes questionamentos: a possibilidade de que o que ele estava vendo fosse exato, mas que suas conclusões fossem baseadas em uma premissa equivocada. E se o potencial Bereitschafts não causasse as ações? Alguns estudos notáveis sugeriram isso, mas eles não forneceram nenhuma pista a respeito de qual poderia ser a função do potencial do Bereitschafts. Para desmontar uma idéia tão poderosa, alguém teve que oferecer uma alternativa real.  

Em 2010, Aaron Schurger teve uma epifania. Como pesquisador do Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica de Paris, Schurger estudou as flutuações na atividade neuronal, o zumbido agitado no cérebro que emerge da oscilação espontânea de centenas de milhares de neurônios interconectados. Esse ruído eletrofisiológico contínuo sobe e desce em marés lentas, como a superfície do oceano - ou como qualquer coisa que resulte de muitas partes em movimento. “Quase todos os fenômenos naturais que eu consigo pensar se comportam dessa maneira. Por exemplo, o mercado de ações ou o clima”, diz Schurger.  

De uma forma geral, todos esses casos de dados barulhentos [noisy data] se assemelham a qualquer outro barulho desprovido de padrão. Mas ocorreu a Schurger que, se alguém alinhasse esses dados por seus pontos mais altos (tempestades, recordes de mercado) e calculasse a média inversa da maneira proposta pela abordagem inovadora de Kornhuber e Deecke, as representações visuais dos resultados pareceriam tendências de crescimento [climbing trends] (uma intensificação do clima, um aumento das ações). Não haveria nenhum propósito por detrás dessas tendências aparentes - nenhum plano prévio que causasse uma tempestade ou fortalecesse o mercado. De fato, o padrão refletiria simplesmente como vários fatores ocorreram de coincidir.

"Eu pensei: espere um minuto", diz Schurger. Se ele aplicasse o mesmo método ao ruído cerebral espontâneo que estudou, o que ele obteria? "Olhei para minha tela e vi algo parecido com o potencial do Bereitschafts". Schurger percebeu que o padrão crescente do potencial do Bereitschafts não era uma marca da intenção de um cérebro, mas algo muito mais circunstancial.  

Dois anos depois, Schurger e seus colegas Jacobo Sitt e Stanislas Dehaene propuseram uma explicação. Os neurocientistas sabem que para as pessoas tomarem qualquer tipo de decisão, nossos neurônios precisam reunir evidências para cada opção. A decisão é tomada quando um grupo de neurônios acumula uma certa quantidade de evidências. Às vezes, essa evidência vem de informações sensoriais do mundo exterior: se você estiver assistindo a neve cair, seu cérebro irá comparar o número de flocos de neve caindo contra os poucos levados pelo vento e rapidamente entenderá que a neve está se movendo para baixo. 

De acordo com Schurger o experimento de Libet não forneceu a seus sujeitos nenhuma pista externa. Para decidir quando movimentar os dedos, os participantes simplesmente agiam quando achavam melhor. Schurger argumentou que esses momentos espontâneos devem ter coincidido com o fluxo e refluxo aleatório da atividade cerebral dos participantes. Seria mais provável que eles mexessem os dedos quando o sistema motor estivesse mais próximo de um limiar para o início do movimento.  

Isso não implicaria, como Libet pensara, que o cérebro das pessoas "decidisse" mexer os dedos antes que elas percebessem. Dificilmente. Em vez disso, isso significaria que a atividade barulhenta no cérebro das pessoas às vezes declina, se não houver mais nada em que basear uma escolha, salvando-nos de uma indecisão sem fim quando confrontados com uma tarefa arbitrária. O potencial de Bereitschafts seria a parte crescente das flutuações cerebrais que tendem a coincidir com as decisões. Esta é uma situação altamente específica, não um caso geral para todas ou mesmo para muitas escolhas.  

Outros estudos recentes apóiam a idéia do potencial Bereitschafts como um sinal de quebra de simetria [symmetry-breaking signal]. Em um estudo com macacos desafiados a escolher entre duas opções iguais, uma equipe separada de pesquisadores observou que a escolha posterior de um macaco se correlacionava com sua atividade cerebral intrínseca antes que o macaco fosse apresentado às opções.  

Em um novo estudo ainda em revisão para publicação no periódico Proceedings of the National Academy of Sciences, Schurger e dois pesquisadores de Princeton repetiram uma versão do experimento de Libet. Para evitar o ruído cerebral não-intencional, eles incluíram uma condição de controle na qual as pessoas não se mexiam. Um classificador de inteligência artificial [artificial-intelligence classifier] permitiu que eles descobrissem em que momento a atividade cerebral nas duas condições divergia. Se Libet estivesse certo, isso deveria ter acontecido 500 milissegundos antes do movimento. Mas o algoritmo não conseguiu distinguir nenhuma diferença até apenas 150 milissegundos antes do movimento, quando as pessoas relataram tomar decisões no experimento original de Libet.  

Em outras palavras, a experiência subjetiva de decisão de uma pessoa - que o estudo de Libet parecia sugerir ser apenas uma ilusão - parecia coincidir com o momento real em que seus cérebros mostravam tomar uma decisão.  

Quando Schurger propôs pela primeira vez a explicação do ruído neural [neural-noise explanation], em 2012, o artigo não recebeu muita atenção externa, mas criou um burburinho na neurociência. Schurger recebeu prêmios por derrubar uma idéia de longa data. “Mostrou que o potencial Bereitschafts pode não ser o que pensávamos. Talvez ele seja, em algum sentido um artefato [artifactual] relacionado à forma como analisamos nossos dados”, diz Uri Maoz, neurocientista computacional da Chapman University.  

Para uma mudança de paradigma, o trabalho encontrou uma resistência mínima. Schurger parecia ter descoberto um erro científico clássico, tão sutil que ninguém havia notado e nenhuma quantidade de estudos de replicação poderia resolvê-lo, a menos que começassem a testar a causalidade. Agora, tanto pesquisadores que questionaram Libet quanto aqueles que o apoiaram estão deixando de basear suas experiências no potencial de Bereitschafts (As poucas pessoas que encontrei ainda defendendo a visão tradicional confessaram que não haviam lido o artigo de Schurger de 2012). 

"Isso abriu minha mente", diz Patrick Haggard, neurocientista da University College London que colaborou com Libet e reproduziu os experimentos originais.  

Ainda é possível que Schurger esteja errado. Os pesquisadores aceitam amplamente que ele esvaziou o modelo do potencial de Bereitschafts de Libet, mas a natureza inferencial da modelagem do cérebro deixa a porta aberta para uma explicação totalmente diferente no futuro. E, infelizmente, para os debates de ciência popular, o trabalho inovador de Schurger não resolve a problemática questão do livre-arbítrio, assim como o de Libet. Schurger apenas aprofundou a questão.  cérebro, ou podemos criar livremente intenções que influenciam nossas ações no mundo? O tópico é imensamente complicado, e o desmascaramento valioso de Schurger ressalta a necessidade de perguntas mais precisas e mais bem informadas. 

Tudo o que fazemos é determinado pelo encadeamento de causas e efeitos dos genes, do ambiente e das células que compõem nosso cérebro, ou podemos criar livremente intenções que influenciam nossas ações no mundo? O tópico é imensamente complicado, e o desmascaramento valioso de Schurger ressalta a necessidade de perguntas mais precisas e mais bem informadas.  

“Os filósofos debatem sobre o livre-arbítrio há milênios e eles tem avançado nesta questão. Mas os neurocientistas invadiram a questão como um elefante em uma loja de porcelana e alegaram tê-la resolvido de uma só vez”, diz Maoz. Na tentativa de colocar todos do mesmo lado, ele lidera a primeira colaboração intensiva de pesquisa entre neurocientistas e filósofos, apoiada em  7 milhões de dólares de duas fundações privadas, a John Templeton Foundation e o Fetzer Institute. Em uma conferência inaugural em março, os participantes discutiram planos para criar experimentos filosoficamente informados e concordaram unanimemente com a necessidade de definir os vários significados de "livre-arbítrio".

Fazendo isso, eles se juntam ao próprio Libet. Enquanto permaneceu firme na interpretação de seu estudo, ele achou que seu experimento não era suficiente para provar o determinismo total - a idéia de que todos os eventos são determinados por anteriores eventos, incluindo nossas próprias funções mentais. "Dado que a questão é tão fundamentalmente importante para nossa visão de quem somos, uma alegação de que nosso livre-arbítrio é ilusório deve ser baseada em evidências bastante diretas", ele escreveu em um livro de 2004. "Essa evidência não está disponível".

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Alterando o cérebro para tratar a mente: uma breve história dos psicofármacos

A história da psiquiatria, definitivamente, não é uma bela e inspiradora história, daquelas que poderíamos contar a nossos filhos antes de dormir. Na verdade, a história desta especialidade médica, assim como de toda a medicina, se assemelha muito mais a uma história de terror, daquelas que contamos à noite, ao redor de uma fogueira. Isto porque esta é uma história de todas as tentativas, em grande parte mal-sucedidas - aos olhares atuais - , de se compreender e enfrentar problemas complexos com relação aos quais não se conheciam, e continuamos sem conhecer, as causas. Grande parte destas tentativas, feitas por pessoas muitíssimo bem intencionadas e cientificamente embasadas, são hoje encaradas como atrocidades, como erros históricos, como coisas que nunca deviam ter acontecido. Pense, por exemplo, nas internações forçadas, na terapia por choque insulínico, na piroterapia por infecção de malária ou na lobotomia - todas interveções amplamente utilizadas, com aval científico, no tratamento de doenças mentais. Hoje nós encaramos tais tratamentos com um misto de descrença e horror, no entanto eles foram tentativas, não totalmente mal-sucedidas (pois as alternativas disponíveis eram muito piores), de auxiliar as pessoas acometidas por enfermidades mentais. Por outro lado, a narrativa contemporânea, utilizada por inúmeros psiquiatras - inclusive pelo ex-presidente da Associação Psiquiátrica Americana (APA) Jeffrey Lieberman no livro Psiquiatria: uma história não contada - é que todo este passado de horrores e "trevas" na Psiquiatria teria chegado ao fim com o advento dos psicofármacos no início da década de 1950. A partir de então, e por conta desta "revolução", os "loucos" foram libertos dos manicômios e a psiquiatria teria ingressado na era de ouro do tratamento dos transtornos mentais. Como afirma Lieberman, com a revolução farmacológica "pela primeira vez em sua longa e famigerada história, a psiquiatria podia oferecer tratamentos científicos humanos e eficazes para quem sofre de doença mental". Mas a grande questão, irrespondível no momento, é se daqui a 50 ou 100 anos olharemos para trás e enxergaremos a era da psicofarmacologia na psiquiatra da mesma forma como atualmente enxergamos a terapia por choque insulínico. Difícil saber... no entanto, mais de 50 anos já se passaram desde o lançamento dos primeiros remédios psiquiátricos e apesar de uma considerável parcela dos psiquiatras e da população continuarem olhando de forma positiva para os psicofármacos, alguns críticos tem apontado, de forma embasada, para significativos limites em seus efeitos assim como para inumeros e graves prejuízos decorrentes do uso contínuo e de longo prazo de tais medicações. Tratarei melhor desta questão em um post futuro; por agora, voltarei meu olhar para o passado.

Até a década de 1950 as únicas drogas que eram utilizadas com pacientes psiquiátricos eram alguns narcóticos ou sedativos potentes como a morfina, o hidrato de cloral e o brometo de sódio, que tinham como única função "dopar" o sujeito, fazendo-o adormecer. Como afirma Jeffrey Lieberman "as primeiras drogas psiquiátricas não pretendiam ser curativas ou mesmo terapêuticas - elas eram instrumentos explícitos de tranquilização. Seus efeitos colaterais assustadores só eram considerados aceitáveis porque as alternativas - cura pela febre, terapia do coma, convulsões induzidas - eram ainda piores". As primeiras drogas psiquiátricas, voltadas especificamente para o tratamento sintomático dos transtornos mentais, surgiram somente na década de 1950. Em 1952 uma dupla de psiquiatras franceses administrou, pela primeira vez, a clorpromazina em pacientes psicóticos do Hospital Sainte-Anne, em Paris. Em pouco tempo o uso dessa substância se espalhou pelos manicômios da Europa. Considerado o primeiro psicofármaco da história, a clorpromazina foi lançada em 1954 nos Estados Unidos com o nome comercial de Thorazine. Esta medicação foi a primeira da classe dos antipsicóticos ou neurolépticos, remédios voltados tanto para a diminuição da atividade psicomotora quanto para a atenuação de alguns sintomas psicóticos, como os delírios e alucinações. Para muitos autores o lançamento desta droga foi revolucionária na medida em que teria contribuído decisivamente para o fim da era manicomial na psiquiatria. Segundo Lieberman, "assim como o antibiótico estreptomicina esvaziou os sanatórios de tuberculose e a vacina contra a poliomielite tornou obsoleto o pulmão de aço, a adoção generalizada da clorpromazina marcou o início do fim dos manicômios e dos alienistas" - no entanto, cabe apontar, que até os dias atuais, os manicômios (e mais profundamente a lógica manicomial de exclusão da loucura) não desapareceram por completo, infelizmente. Um ano depois, em 1955, ocorreu o lançamento do meprobamato. Sintetizada nos Estados Unidos pelo químico tcheco Frank Berger alguns anos antes, em 1947 (daí o entendimento de alguns de que este seria, de fato, o primeiro psicofármaco), esta substância deu origem à categoria dos tranquilizantes, benzodiazepínicos ou, como chamamos hoje mais comumente, ansiolíticos. Tais remédios são voltados para a diminuição da ansiedade e, portanto, tem a função de produzir calma sem, necessariamente, fazer o paciente dormir. Especificamente no caso do meprobamato, cujo nome comercial era Miltown, apesar dos fortes efeitos colaterais, o remédio foi um sucesso, tornando-se o primeiro psicofármaco popular da história. Segundo Lieberman, "em 1956, espantosas 36 milhões de receitas do tranquilizante haviam sido expedidas; em cada três receitas expedidas no Estados Unidos, uma era de meprobamato" - situação semelhante à do ansiolítico Rivotril, nome comercial do clonazepan, que é atualmente um dos remédios mais vendidos no Brasil e no mundo. Por fim, em 1957, foi lançado o primeiro medicamento antidepressivo da classe dos Inibidores da monoaminoxidase (IMAO), a iproniazida, comercializada com o nome de Marsilid. Retirada do mercado em poucos anos devido a alguns efeitos colaterais graves, esta substância foi originalmente criada para tratar a tuberculose. Ao administrarem a droga em alguns pacientes tuberculosos os médicos perceberam uma melhora no humor e até mesmo uma certa euforia - daí resolveram testar a substância para tratar a depressão. Como bem afirma o jornalista Robert Whitaker no magnífico livro Anatomia de uma epidemia, "foram essas três drogas [clorpromazina, meprobamato e iproniazida] que desencadearam a revolução farmacológica. No curto espaço de três anos (1954-1957) a psiquiatria ganhou novos medicamentos para acalmar os pacientes agitados e maníacos nos manicômios, para a ansiedade e para a depressão". E ele acrescenta: "mas nenhuma dessas drogas foi desenvolvida depois de os cientistas identificarem algum processo patológico ou anormalidade cerebral que pudesse causar esses sintomas. Elas provieram das pesquisas pós-Segunda Guerra Mundial para encontrar pílulas mágicas contra doenças infecciosas, quando os pesquisadores, durante esse processo, tropeçaram em compostos que afetavam o sistema nervoso central de maneiras desconhecidas". Enfim, os efeitos neurais/psíquicos de tais substâncias foram descobertos por acaso, durante  pesquisas voltadas para o desenvolvimento de terapêuticas para doenças infecciosas, como a tuberculose.

Neste mesmo momento e posteriormente muitas outras medicações, e até mesmo novas classes de medicações, foram desenvolvidas. Em 1955, por exemplo, foi patenteado o metilfenidato, nome comercial da Ritalina, uma substância psicoestimulante da classe das anfetaminas. Sintetizada em 1944 na Suiça essa substância foi lançada comercialmente somente uma década depois, sendo atualmente prescrita e indicada para tratar pessoas hiperativas, especialmente crianças. Em 1958, por sua vez, foi lançado o Trofanil, nome comercial da imipramina, que foi o primeiro antidepressivo tricíclico - classe de medicação assim denominada por ter sua estrutura molecular composta por três anéis de carbono. Segundo Lieberman, tal qual o Miltown, a imipramina foi um "sucesso mundial instantâneo", sendo adotada pelo psiquiatras da Europa e dos Estados Unidos. Posteriormente muitos outros antidepressivos tricíclicos foram lançados, todos cópias da imipramina - que, para o autor, é de fato o primeiro antidepressivo, não a iproniazida. Mais à frente, na decada de 1970, pesquisadores ligados à megaempresa farmacêutica Eli Lilly desenvolveram a fluoxetina, lançada quase duas décadas depois com o nome de Prozac, e que foi o primeiro antidepressivo da classe dos inibidores seletivos de recaptação de serotonina (SSRI). Após o seu lançamento nos Estados Unidos, em 1987, o Prozac tornou-se um megasucesso farmacêutico, talvez o maior da história - e a fluoxetina, com nomes comerciais diversos, continua sendo uma das medicações mais prescritas e vendidas no mundo. Desde então se multiplicaram os nomes e marcas de psicofármacos, muito embora as substâncias-base não tenham se alterado tanto assim. E também se multiplicaram os usos equivocados e banalizados de tais medicações. Como afirma o psiquiatra norte-americano Allen Frances, coordenador da força-tarefa que elaborou o DSM-IV, no maravilhoso e necessário livro Voltando ao normal "tornamo-nos uma sociedade devoradora de comprimidos, e, com muita frequência são as pessoas erradas que estão devorando os comprimidos errados, receitados pelos médicos também errados". Em sua visão, o uso criterioso dos psicofármacos representa uma "poderosa ferramenta na psiquiatria" e também uma "dádiva para pacientes auxiliados". No entanto, com muita frequência, tais medicações tem sido utilizadas de forma "promíscua" o que, em sua visão, aproxima a medicina atual das "práticas charlatanescas dos alquimistas medievais".

Discurso circular: o que causa o que?
Em resumo: na segunda metade do século XX foram desenvolvidas praticamentes todas as classes de medicações psiquiátricas que hoje os médicos dispõem para tratar pacientes com transtornos mentais. Sem dúvida alguma o desenvolvimento de tais medicações representou um enorme avanço no tratamento das psicopatologias - especialmente ao levarmos em conta os terríveis tratamentos que eram empregados anteriormente. De uma forma geral, todas estas medicações são utilizadas com o objetivo de causar alterações no cérebro para, com isso, provocar alterações na mente e no comportamento do sujeito. No fundo, a lógica é a mesma da lobotomia, que pretendia alterar o cérebro do sujeito com o objetivo de corrigir ou curar sua mente - daí a denominação de psico-cirurgia. As diferenças entre os dois tratamentos, por outro lado, são significativas. Enquanto na lobotomia o cérebro era estruturalmente danificado através de um procedimento terrívelmente invasivo e irreversível, com as medicações se pretende provocar alterações funcionais/químicas no cérebro - muito embora cientistas já tenham encontrado algumas alterações estruturais decorrentes do uso de certas medicações. Além disso, a lobotomia trazia riscos e efeitos colaterais muito mais severos. De toda forma, o objetivo das duas terapêuticas é o mesmo: alterar o cérebro para alterar a mente do sujeito e, por consequência, o seu comportamento. A questão, especificamente sobre os medicamentos, é que ainda são desconhecidos os detalhes de seus mecanismos de ação no cérebro. Em geral, os psiquiatras sabem (ou acreditam) que tais remédios funcionam e veem seus efeitos nos pacientes embora não saibam exatamente porquê ou como funcionam. Sobre a maioria dos psicofármacos sabe-se, por exemplo, que eles alteram o nível de certos neurotransmissores, como a serotonina e a dopamina; a questão, ainda sem resposta, é de que forma o nível de certos transmissores se relacionaria com certos sintomas mentais ou comportamentais. Comumente diz-se que a depressão seria causada por um baixo nível de serotonina, mas o que afinal de contas causaria esse baixo nível de serotonina? Ainda não há uma resposta conclusiva para essa questão. Afirmar, nesse sentido que os transtornos mentais são causados por uma alteração para mais ou para menos no nível de certos neurotransmissores já se mostrou equivocado. A chamada Teoria do Desequilíbrio Químico, a despeito do que defende a indústria farmacêutica, é apenas um mito. O fato de indivíduos depressivos reagirem a remédios como a fluoxetina, que aumentam a produção de serotonina, não implica que é a baixa de serotonina que cause a depressão. Fazer tal afirmação seria como dizer que a dor de cabeça é causada por falta de aspirina ou que a timidez é causada por falta de cerveja. O fato de uma substância gerar certos efeitos não significa que é sua ausência que cause o problema. Outros fatores, desconhecidos, podem contribuir fortemente para a emergência de certas condições. Enfim, ainda há muito a ser descoberto sobre os mecanismos de ação das medicações psiquiátricas - e também, mais profundamente, sobre o funcionamento do cérebro humano. Só o que sabemos é que em sua curta história os psicofármacos representaram um significativo avanço para o tratamento dos transtornos mentais, mas ainda estão longe de serem pílulas mágicas. Os remédios ajudam sim, mas também geram uma série de prejuzos a curto e a longo prazo - e, de toda forma, não são uma panaceia para os problemas humanos. Intervir na química cerebral certamente pode ajudar em algumas situações; no entanto, como eu nunca me canso de repetir, nós somos muito mais do que nossos cérebros.

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Imortalidade digital e a busca pela alma sem corpo

No filme Cópias - De volta a vida (2019), uma terrível produção estrelada por Keanu Reeves, acompanhamos o neurocientista Will Foster em seu esforço de transferir a mente de um ser humano para um robô. Logo no início do filme, conversando com sua esposa sobre seus experimentos até então fracassados (os robôs sempre acabam por rejeitar a "mente" transplantada) ela afirma, em um diálogo ao mesmo tempo patético e interessante: "talvez tenha algo mais que nos torne humanos, como uma alma", ao que Foster responde: "Somos o que acontece conosco e como lidamos com isso. É o que nos torna humanos. Tudo é neuroquímico!". Sua esposa então questiona: "Você acredita mesmo nisso? É o que eu e as crianças somos? Apenas sinais elétricos e químicos?". Foster simplesmente ignora esta pertinente e necessária indagação e segue adiante com seus experimentos de mind upload ou transferência mental. Acontece que certo dia ele e sua família se envolvem em um terrível acidente de carro e sua esposa e seus três filhos acabam por falecer. Logo antes disso acontecer, no entanto, Foster faz o download da mente deles e, posteriormente - em apenas 17 dias - cria clones biológicos perfeitos de três deles (que já saem dos tanques de clonagem exatamente como eram, inclusive com os mesmos cortes de cabelo), e ele então transfere as versões virtuais de suas mentes a estes corpos, trazendo-os, portanto, de volta à vida. Só por este breve resumo já dá para ter uma noção da tragédia que é esse filme. De toda forma, apesar dos inúmeros problemas, ele traz uma discussão muito pertinente e atual: será que um dia será possível transferir o conteúdo mental/cerebral de uma pessoa para um dispositivo digital ou então para um outro corpo biológico? Já discuti esta questão no post Em busca da imortalidade da mente; gostaria agora de discutir uma questão relacionada a esta e que diz respeito à possibilidade de separar a mente do restante do corpo. Será que o corpo, incluído o cérebro, é realmente necessário para a existência e o funcionamento da mente ou se trata de algo descartável? Enfim, o corpo é ou não é necessário? No filme, em certo momento, Foster tem uma espécie de epifania ao compreender que suas tentativas de transferir a mente de um ser humano para um robô estavam dando errado porque faltava a esse um corpo biológico. "Não é a mente, não é o cérebro. É o corpo. Estávamos olhando para o lugar errado", afirma Foster. E é a partir dessa observação que ele resolve tentar transferir a mente das pessoas de sua família para corpos biológicos clonados e não para corpos sintéticos - o que de fato funciona. A resposta do filme para a última questão que fiz anteriormente seria, portanto, que o corpo é sim necessário, mas apenas para receber e abrigar a mente - ainda que não para se retirar a mente (basta observar que os corpos originais dos membros de sua família foram simplesmente descartados e substituídos por novos corpos). O filme termina com a cena de um idoso em uma cadeira de rodas sendo conduzido para um processo de replicação que permitirá que ele continue vivendo indefinidamente em outros corpos, o que aponta para a ideia de que o corpo é, ao mesmo tempo, fonte de inúmeros problemas (como o envelhecimento) mas também imprescindível para a existência da mente humana. O corpo é necessário e desnecessário.

Outras produções - algumas delas indicadas no post Top 12 - Filmes e séries sobre transplantes ou transferências de cabeça, cérebro, mente ou alma - tem apontado, nesse sentido, para a parcial ou total descartabilidade do corpo. Na série Altered Carbon, por exemplo, as pessoas, ou melhor, suas mentes, não morrem jamais: quando o corpo perece, um disco rígido com o conteúdo de sua mente é simplesmente realocado em um novo corpo ou "capa" biológico (que pode ser de um outro gênero, idade ou etnia) e a vida continua indefinidamente - como afirma o protagonista, você troca de capa como uma cobra muda de pele. Neste caso, como no filme Cópias, o corpo é necessário apenas para abrigar a mente e permitir que esta cicule pelo mundo - sendo, assim, apenas um veículo para a mente; no entanto, quando este falha ou envelhece - e todo corpo biológico falha e envelhece - basta transferir a mente para outro corpo. Cada corpo individual não importa, o que importa é que haja um corpo, qualquer corpo, para abrigar a mente. Já o filme Trancendence: a revolução (2014) vai além e elimina totalmente a necessidade do corpo. Nesta obra acompanhamos o cientista Will Caster transferir a própria mente para um computador quântico e, com isso, se tornar incrível e exageradamente poderoso. Neste caso o corpo é totalmente descartado e descartável; a única coisa que importa é a mente - e ela é completamente independente do corpo, inclusive do cérebro. A mente, nesta narrativa, existe apenas como informação, necessitando apenas da base física de um computador. Aliás, na maravilhosa série Years and Years, que acompanha uma família inglesa ao longo de muitos anos, a personagem Bethany Lions deseja justamente isso: tornar-se informação. Identificada como uma pessoa trans (mas não transexual e sim transhumana), a adolescente Bethany não aceita a sua existência corporal e deseja ardentemente descartar o próprio corpo. Conversando com seus pais, logo no primeiro episódio, ela afirma: "Eu quero me livrar dele [do corpo]. Desta coisa. Dos braços e pernas, de cada pedacinho.  Eu não quero ser de carne. Desculpem, mas vou fugir  desta coisa  e me tornar digital (...) Dizem que, em breve, vai haver clínicas na Suíça aonde você vai, assina um papel, eles pegam o seu cérebro e fazem download dele na nuvem". Sua mãe, aterrorisada com tais declarações, lhe questiona, então, se fazendo isso ela deseja morrer (haja vista que eliminar o próprio corpo, em geral, está relacionado ao objetivo de eliminar a si mesmo), ao que Bethany responde: "Eu quero viver para sempre. Como informação. Isso é ser transumano, mãe. Não masculino ou feminino. Melhor. Aonde eu vou não há vida ou morte. Só dados. Eu vou virar dados!". E sobre o que será feito do seu corpo quando ela se tornar apenas dados Bethany afirma: "Ele é reciclado. Na terra", o que sugere ser o corpo, incluído seu cérebro, apenas lixo, algo desnecessário e descartável. O que importa para a transhumana Bethany é única e exclusivamente sua mente, ou melhor, sua mente transformada em dados.

Muito embora todas as obras mencionadas acima sejam de ficção, mais precisamente de ficção científica, elas representam muito bem o pensamento, as expectativas e os desejos dos expoentes do transhumanismo, uma espécie de movimento religioso-científico que aposta na ampliação das capacidades humanas por meio da tecnologia. A ideia central é que a tecnologia tem o poder - e terá ainda mais no futuro - de ampliar as capacidades humanas, levando-nos além. Ainda que grande parte dos transhumanistas sejam, ou afirmem ser, ateus ou agnósticos, a essência desse movimento é religiosa no sentido de devotar grande fé na ciência e em sua capacidade de permitir que o ser humano supere sua biologia e, portanto, os limites e empecílios do corpo. Uma das expectativas/ desejos dos transhumanistas (e é sempre muito difícil diferenciar expectativas e desejos no caso dos transhumanistas) é que em algum momento no futuro será possível a transferência do conteúdo mental/ cerebral de uma pessoa - isto é, de sua personalidade, memórias e habilidades -  para dispositivos digitais, o que acarretaria na total descorporalidade da pessoa, e, portanto, em sua imortalidade. Ainda que não saibam exatamente como isso seria possível, muitos transhumanistas acreditam que isto ocorrerá em algumas décadas. Mas o ponto central passa pela questão de como fazer o download da mente do indivíduo e, posteriormente, o upload desta mente simulada para um dispositivo digital ignorando completamente o corpo. Como bem aponta o inventor e fututologista Ray Kurzweil na clássica obra transhumanista A singularidade está próxima "se estivermos realmente capturando os processos mentais de uma determinada pessoa, então a mente reinstalada vai precisar de um corpo, já que boa parte de nosso pensamento está dirigida para desejos e necessidades físicas". Em sua visão, este processo de upload mental só terá realmente sucesso se o conteúdo cerebral do indivíduo for transferido para um corpo sintético. Sem um corpo, biológico ou artificial, em constante interação com o mundo, nenhuma mente poderia existir. Uma mente sem corpo e, portanto, sem sentidos e sem interação com o ambiente, poderia ser uma forma de prisão. Como aponta o físico Michio Kaku no livro O futuro da mente, "o cérebro gerado por engenharia reversa, não tendo corpo, pode sofrer de isolamento sensorial e até manifestar sinais de doença mental, como os prisioneiros confinados na solitária. Talvez o preço de se criar o cérebro imortal, com engenharia reversa, seja a loucura". Uma maneira de contornar essa situação seria conectar este "cérebro virtual" a sensores que recebam sinais do mundo externo, de forma que alguns sentidos sejam mantidos, ainda que artificialmente. Mas a questão, sem dúvida alguma, é muito mais complexa que isso. A própria ideia de que seria possível, de alguma forma, retirar ou replicar o conteúdo cerebral/mental de um indivíduo e transferí-lo para um dispositivo digital passa por uma ideia, a meu ver, muito enganosa sobre o funcionamento do cérebro e da mente humanas e remete à ideia de alma imaterial e imortal. No fundo, apesar de se vender como um movimento científico - ou que tem na ciência seu fundamento - o transhumanismo se sustenta numa concepção espiritualista que apenas substitui a antiga noção de alma pela de mente. Assim, apesar de se apresentar como uma novidade, não passa de uma nova roupagem para velhas reflexões.

No clássico diálogo Fédon, publicado no século 4 A.C., o filósofo Platão defende a teoria da imortalidade da alma e sua separação do corpo. Em sua visão, corpo e alma permanecem unidos enquanto há vida; com a morte, no entanto, a alma imediatamente se separa - ou melhor, se liberta - do corpo, que funciona, assim, como um veículo da alma e também, como sua prisão. Como aponta em certo momento desse diálogo, "quando o homem perece, sua parte mortal também perece, mas a imortal escapa rapidamente, salvando-se da morte". Além disso, Platão vê o corpo, com suas emoções e sentimentos (que ele chama de "paixões"), como a fonte de grande parte dos problemas humanos. "Quem faz nascer as guerras, as revoltas os combates? Nada mais que o corpo, com todas as suas paixões", afirma Platão. Já a alma é entendida como a fonte da razão e, portanto, como a parte mais nobre e fundamental do ser humano. Nós somos as nossas almas, poderia dizer Platão. A atividade do filósofo, nesse sentido, envolve analisar o mundo racionalmente, utilizando-se, portanto, de sua alma e renunciando, assim, às paixões do corpo. Afirma Platão: "se desejamos saber realmente alguma coisa, é preciso que abandonemos o corpo e que apenas a alma analise os objetos que deseja conhecer". Estas ideias de Platão, em especial a de que a alma imortal, e não o corpo mortal, é o que realmente importa no ser humano, foram incorporadas e transformadas posteriormente pelo cristianismo e serviram de base também para o pensamento do filósofo renascentista René Descartes. Em sua famosa obra O discurso do método ele apresenta sua concepção dualista do ser humano afirmando que a alma humana "é de uma natureza inteiramente independente do corpo e, por conseguinte, não está de modo algum sujeita a morrer com ele". Em sua visão, é a alma, "coisa pensante", que nos faz o que somos; o corpo seria apenas uma máquina ao qual a alma se une enquanto estamos vivos. No livro Meditações metafísicas Descartes deixa bem claro o que somos e o que não somos ao afirmar, inicialmente, que "eu nada sou senão uma coisa que pensa, isto é, um espírito" e, posteriormente, que "eu não sou essa reunião de membros que se chama corpo humano". A famosa frase de Descartes "penso, logo existo", aponta igualmente para a ideia de que eu só existo porque eu penso e eu só penso porque eu possuo/sou uma alma racional. O pensamento é entendido, portanto, como a base da existência e da identidade humana. Voltando agora para os sonhos transhumanistas não é curioso observar o quanto eles se assemelham às concepções dualistas de Platão e Descartes? A ideia de transferir a mente de uma pessoa para um dispositivo digital tornando-a imortal se assemelha imensamente às visões destes autores de que a alma, imortal, teria uma natureza diferente do corpo, podendo ser separada deste. Outra ideia afim entre os velhos e os novos dualistas - e os transhumanistas são, essencialmente, dualistas - é aquela que entende a alma/mente como a essência do que somos. O objetivo dos transhumanistas de transferir ou simular a mente em um computador passa pela noção de que a única coisa não-descartável do ser humano são seus pensamentos. "Penso, logo existo", poderiam dizer os transhumanistas - já Bethany poderia afirmar: "Eu quero existir apenas como pensamento". Por fim, uma ideia central para os referidos filósofos e também para os transhumanistas é que o corpo é a fonte dos principais problemas humanos. Como afirma o filósofo Michael Hauskeller no artigo My Brain, My Mind, and I: Some Philosophical Problems of Mind-Uploading [Meu cérebro, minha mente e eu: alguns problemas filosóficos da transferência mental], "o corpo humano não é apenas considerado dispensável; é um obstáculo, um inimigo a ser combatido e do qual se livrar; ele envelhece e nos faz envelhecer, e, eventualmente, nos aniquila; é bagunçado, desordenado e sujo; traz caos e decadência em nossas vidas; carne e ossos são considerados materiais inadequados para uma existência avançada, digna, esclarecida e feliz. Então, vamos abandoná-lo se pudermos". Esta é, em suma, a essência do pensamento transhumanista sobre o corpo - e também dos pensamentos platônico e cartesiano.

Na visão do antropólogo francês David Le Breton, no livro Adeus ao corpo, uma tradição de suspeita e aversão ao corpo percorre o mundo ocidental desde a Grégia antiga, tradição esta associada ao dualismo entre corpo e alma e à visão de que é a alma e não o corpo que nos faz o que somos. O corpo, nesta tradição, seria apenas um estorvo, fonte dos pecados e dos problemas humanos. "A carne do homem é a parte maldita sujeita ao envelhecimento, à morte, à doença", escreve Le Breton. Curiosamente, na ciência atual, marcada por uma visão supostamente materialista e, portanto, antidualista do mundo e do ser humano, esta tradição se mantém. Segundo o antropólogo, "no discurso científico contemporâneo, o corpo é pensado como uma matéria indiferente, simples suporte da pessoa. Ontologicamente distinto do sujeito, torna-se um objeto à disposição sobre o qual agir a fim de melhorá-lo, uma materia-prima na qual dilui a identidade pessoal, e não mais uma raiz de identidade do homem". Isto significa, para o autor, que o corpo é atualmente pensado e concebido pela ciência apenas como algo acessório, não como algo central ou fundamental para sermos o que somos. Nossa identidade, isto é, nosso "eu", estaria situado em outro lugar, não no corpo, mas na mente, na consciência ou - por que não? - na alma. De forma semelhante à Descartes, o corpo é visto apenas como uma máquina incômoda com a qual temos que lidar e que melhor seria se pudéssemos eliminá-la. Com afirma Le Breton, "a carne do homem encarna sua parte maldita que inúmeros domínios da tecnociência pretendem por sorte remodelar, 'imaterializar', transformar em mecanismos controláveis para livrar o homem do incômodo fardo no qual amadurecem a fragilidade e a morte". Pois é justamente esse o objetivo, no fim das contas, de todas essas propostas de upload mental: livrar o homem da fragilidade do corpo, e, portanto, da morte. Como aponta maravilhosamente o antropólogo francês, "a luta contra o corpo revela sempre mais o móvel que a sustenta: o medo da morte. Corrigir o corpo, torná-lo uma mecânica, associá-lo à ideia da máquina ou acoplá-lo a ela é tentar escapar desse prazo, apagar a 'insustentável leveza do ser'". A questão é que desde a Grégia antiga tem-se tentado anular ou eliminar corpo, relegando-o à função de veículo e prisão da alma ou da mente, mas o corpo sempre resiste e insiste em se fazer presente. E o motivo é que nós somos, sempre fomos e, muito provavelmente, sempre seremos seres corporais. Nosso corpo é uma parte fundamental do que somos e da nossa experiência no mundo. Nossa subjetividade, por exemplo, tem grande relação com nossa corporalidade. Basta se atentar para o fato de que todo o tempo em que estamos conscientes nossa mente está continuamente percebendo e mapeando nosso estado corporal - além, é claro, do mundo exterior, através dos nossos sentidos. Tudo isto é feito de uma forma tão rotineira e natural que acabamos por não nos dar conta. Mente e corpo estão unidos de uma forma tão intensa que é como se tal união nem existisse. E ainda que a mente possua propriedades diferentes do corpo - no sentido, por exemplo, de que os métodos utilizados para estudá-la são diferentes daqueles utilizados para se estudá-lo - ela é, inevitávemente corporal e, portanto biológica. Imaginar uma mente separada do corpo não faz qualquer sentido - a menos, é claro, que se acredite em uma alma imortal (e eu duvido muito que os transhumanistas admitiriam tal crença). Aliás, uma importante diferença entre os conceitos de alma e mente passa pela ideia de que o primeiro, utilizado predominantemente no contexto religioso, diz respeito à algo que sobrevive após a morte do corpo, ao passo que o segundo aponta para algo ligado ao corpo e que morre com este. O que faz de uma mente algo diferente de uma alma é justamente o fato desta emergir de um corpo e permanecer conectada a este até a morte. Imaginar, portanto, que será possível um dia libertar a mente do corpo e viver eternamente como pensamento ou informação não passa de mais uma louca fantasia de ficção científica.

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

O Human Brain Project (HBP) e suas promessas

No dia 24 de Julho, a revista The Atlantic publicou um excelente artigo do jornalista científico Ed Yong denominado "The Human Brain Project Hasn’t Lived Up to Its Promise". Segue a tradução que fiz desse texto, cuja versão original pode ser lida aqui. Aliás, este é o terceiro artigo de Yong que traduzo para este blog - os demais podem ser lidos aqui e aqui.

No dia 22 de julho de 2009, o neurocientista Henry Markram entrou no palco da conferência TEDGlobal em Oxford, na Inglaterra, e disse ao público que ele iria simular o cérebro humano, com toda a sua complexidade, em um computador. Seus objetivos eram elevados: "Talvez seja para entender a percepção, compreender a realidade e talvez até entender a realidade física". Sua linha do tempo era ambiciosa: "Podemos fazê-lo dentro de 10 anos e, se conseguirmos, enviaremos para o TED, em 10 anos, um holograma para falar com você”. Se o meme do cérebro galáctico existisse naquele momento, teria sido um ótimo momento para invocá-lo.

Faz exatamente 10 anos. Ele não obteve sucesso.

Pode-se argumentar que a natureza dos pioneiros é mirar longe e falar muito, e que é grosseiro destacar qualquer previsão falha quando a ciência está tão cheia delas. (os escritores de ciência brincam que os medicamentos e as tecnologias inovadoras parecem estar sempre entre cinco e dez anos de distância) Mas vale a pena revisitar as alegações de Markram por duas razões. Em primeiro lugar, as apostas eram enormes: em 2013, a Comissão Européia concedeu à sua iniciativa - o Human Brain Project (HBP) - uma assombrosa quantia de 1 bilhão de euros (valendo cerca de 1,42 bilhão de dólares na época). Em segundo lugar, os esforços do HBP e a intensa reação negativa ao projeto expuseram importantes divisões na maneira como os neurocientistas pensam sobre o cérebro e como ele deve ser estudado.

O objetivo de Markram não era criar uma versão simplificada do cérebro, mas um fac-símile gloriosamente complexo, com os neurônios constituintes, a atividade elétrica que os percorre e até mesmo os genes ligando e desligando dentro deles. Desde o início, a crítica a essa abordagem era muito difundida e, para muitos outros neurocientistas, sua estratégia de baixo para cima [bottom-up strategy] parecia implausível no limite do absurdo. As complexidades do cérebro - como os neurônios se conectam e cooperam, como as memórias se formam, como as decisões são tomadas - são mais desconhecidas do que conhecidas, e não poderiam ser decifradas em detalhes suficientes em apenas uma década. Se já é difícil mapear e simular os 302 neurônios da lombriga C. elegans, imagine só os 86 bilhões de neurônios dentro de nossos crânios. "As pessoas pensaram que era irrealista e pouco razoável como objetivo", diz a neurocientista Grace Lindsay, que está escrevendo um livro sobre a modelagem do cérebro. 

E qual foi o objetivo? O HBP não estava tentando abordar qualquer questão de pesquisa em particular, ou testar uma hipótese específica sobre como o cérebro funciona. A simulação parecia um fim em si mesma - uma resposta da superengenharia para uma pergunta inexistente, uma ferramenta em busca de um uso. Quando o Blue Brain Project, um empreendimento relacionado que Markram fundou, lançou uma simulação de 30 mil neurônios de ratos em 2015 - apenas 0,15% do minúsculo cérebro do roedor -, os críticos apontaram para esta simulação como um enorme esforço que não revelou nada de novo. Mesmo que se pudesse fazer o mesmo com o cérebro humano, por que isso deveria ocorrer? "Agora você tem um cérebro em um computador e antes você tinha um cérebro em um crânio", diz Lindsay. "E daí?"

Markram explicou que, ao contrário do que disse no TED Talk [em 2009], ele nunca pretendeu que a simulação fizesse muita coisa. Ele não queria fazer uma inteligência artificial nem passar no teste de Turing. Em vez disso, ele concebeu seu projeto como um banco de testes experimental [experimental test bed] - uma maneira de os cientistas testarem suas hipóteses sem ter que cutucar a cabeça de um animal. “Isso seria incrivelmente valioso”, diz Lindsay, mas é baseado em lógica circular. Uma simulação pode permitir que os pesquisadores testem idéias sobre o cérebro, mas essas idéias já teriam que estar muito avançadas para se submeter à simulação. “Uma vez que a neurociência estivesse 'concluída', deveríamos ser capazes de fazer tal simulação, mas ter isso como um passo intermediário parece difícil.”

“Não é óbvio para mim o que a natureza de grande escala da simulação realizaria”, acrescenta Anne Churchland, do Cold Spring Harbor Laboratory. Sua equipe, por exemplo, simula redes de neurônios para estudar como os cérebros combinam informações visuais e auditivas. "Eu poderia implementar isso com centenas de milhares de neurônios, e não está claro o que eu obteria se tivesse 70 bilhões."

Em um artigo recente intitulado “O Caso Científico das Simulações Cerebrais”, vários cientistas do HBP argumentaram que grandes simulações “provavelmente serão indispensáveis ​​para aproximar as escalas entre o nível do neurônios e o nível dos sistemas no cérebro”. Em outras palavras: os cientistas podem olhar para o porcas e parafusos de como os neurônios funcionam, e eles podem estudar o comportamento de organismos inteiros, mas eles precisam de simulações para mostrar como o primeiro cria o segundo. Os autores do artigo fizeram uma comparação com as previsões do tempo, em que uma compreensão da física e da química na escala dos bairros nos permite prever com precisão a temperatura, as chuvas e o vento em todo o mundo.

A analogia não funciona, diz Adrienne Fairhall, neurocientista da Universidade de Washington, com formação em física. Sim, simulações em larga escala são úteis para entender o clima e as galáxias, mas “os sistemas planetários não dizem respeito a nada além de si mesmos”, diz ela. “Um cérebro é construído para ser sobre outras coisas.” Isto é: ele absorve informações do mundo e move corpos humanos e animais, que então influenciam esse mundo. Quanto nós realmente aprenderíamos com um cérebro desencorporado em um jarro virtual, que não está conectado a olhos, ouvidos ou membros? "Você poderia pegar um pedaço de tecido e analisar toda sua parte física, mas não chegaria ao que realmente importa", diz Fairhall. “Biologia é tipo de coisa que tem significado. Simular um tecido é factível, não faz nenhum sentido”.

O HBP, então, está em uma posição muito estranha, criticado por ser simultaneamente grandioso e estreito demais. Nenhum dos céticos com quem eu falei estava descartando a ideia de simular partes do cérebro, mas todos sentiam que tais esforços deveriam ser conduzidos por questões de pesquisa reais. Por exemplo, Xiao-Jing Wang, da Universidade de Nova York, construiu modelos que mostram como os neurônios, se conectados de uma certa maneira, podem manter a atividade elétrica mesmo se não estiverem sendo estimulados - a essência do que chamamos de memória de trabalho, ou a capacidade de manter pensamentos. Enquanto isso, Chris Eliasmith, da Universidade de Waterloo, construiu um modelo chamado Spaun, que usa um conjunto simplificado de 2,5 milhões de neurônios virtuais para realizar cálculos aritméticos simples e resolver problemas básicos de raciocínio.

Incontáveis projetos desse tipo poderiam ter sido financiados com o dinheiro canalizado para o HBP, o que explica muito do furor em torno do projeto. Em 2014, cerca de 800 neurocientistas escreveram uma carta aberta à Comissão Européia dizendo que “o HBP não é um projeto bem concebido ou implementado e que não é adequado para ser a peça central da neurociência européia.” Um ano depois, um comitê de mediação concordou com os críticos, pedindo ao HBP para reorientar seus esforços “para um número menor de atividades adequadamente priorizadas” e reestruturar sua estrutura administrativa pouco ortodoxa .

O HBP concordou. E efetivamente se redefiniu como um projeto de software que faz a curadoria de dados existentes sobre o cérebro, fornece ferramentas para pesquisar esses dados e desenvolve simuladores que permitirão a outros projetos construir seus próprios modelos. E com o grande bolo de financiamento previsto para expirar em 2023, o artigo recente da equipe parece um pedido por mais investimento. “O desenvolvimento de simuladores cerebrais de alta qualidade requer um comprometimento de recursos a longo prazo”, escreveram eles.

É notável, todavia, que as pessoas que eu entrei em contato tenham se esforçado para nomear uma grande contribuição que o HBP fez na última década. Isso não quer dizer que tais contribuições não existam. É mais que elas não viram um retorno proporcional ao orçamento empregado no projeto, ou talvez que o HBP ainda tenha que ganhar de volta a confiança de uma comunidade que foi alienada pela publicidade exagerada [no original: hype].

Markram parece irredutível. Em um artigo recente, ele e seu colega Xue Fan situaram firmemente as simulações cerebrais dentro não apenas do campo da neurociência, mas de todo o arco da filosofia ocidental e da civilização humana. E em um comunicado por e-mail, ele me disse: “A resistência política (não científica) ao projeto realmente nos desacelerou consideravelmente, mas não nos impediu nem o fará.” Ele apontou ainda para a o fato de 140 pessoas ainda trabalharem no Blue Brain Project, para um conjunto recente de publicações positivas de cinco revisores externos e também para sua "exponenciamente crescente" capacidade para "construir modelos biologicamente precisos de regiões do cérebro cada vez maiores".

Ele não aponta nenhum prazo, desta vez, mas não há escassez de outras pessoas prontas para fazer alegações extravagantes sobre o futuro da neurociência. Em 2014, participei da principal conferência do TED em Vancouver e assisti à palestra de abertura do fundador do MIT Media Lab, Nicholas Negroponte. Em suas palavras finais, ele afirmou que em 30 anos “vamos ingerir informações. Você vai engolir uma pílula e aprender inglês. Você vai engolir uma pílula e aprender Shakespeare. E isso se dará pela corrente sanguínea. E, uma vez na corrente sanguínea, basicamente ela vai para o cérebro, e quando ela souber que está no cérebro, nas diferentes partes, vai depositá-lo no lugar certo”.

Sobre o meu ombro esquerdo, uma voz abafada sussurrou: "Uau".

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Um breve guia para a obra de Antônio Damásio

Antônio Damásio é um neurologista e neurocientista português, nascido em Lisboa em 1944, que atua como professor e pesquisador na Universidade do Sul da Califórnia, nos Estados Unidos. É autor de cinco importantes livros - O erro de Descartes (1994), O mistério da Consciência (1999), Em busca de Espinosa (2003), E o cérebro criou o homem (2010) e A estranha ordem das coisas (2018) - além de inúmeros artigos científicos, vários em parceria com sua esposa Hanna Damásio, que também é médica e neurocientista e atua como professora do Instituto Salk, em La Jolla, Califórnia. Todos os seus livros se propõem a aproximar neurologia, neurociências e filosofia com o propósito de desenvolver teorias e hipóteses que expliquem o funcionamento geral do organismo, não apenas de seu cérebro. Em toda sua obra Damásio defende a importância de se levar em conta o funcionamento do organismo como um todo para se entender os pensamentos, sentimentos e comportamentos humanos. O autor aponta sempre para a complexa interação entre mente, cérebro, corpo e ambiente. Não é possível nem desejável, segundo Damásio, entender a mente e o cérebro separados do corpo e do ambiente. E isto  o leva, por sua vez, a sempre se colocar de forma crítica à toda forma de reducionismo, inclusive ao reducionismo neurocientífico. Em uma entrevista concedida ao jornal O Globo ele chegou a afirmar: 

 "O sucesso da neurociência faz com que muitos caiam em explicações simplistas. Tudo que tem relação com o cérebro é complexo, e por isso os neurocientistas devem se explicar mais, sempre. O reducionismo traz muitos riscos. Há quem acredite que podemos resolver a dor e a tristeza só tomando pílulas, o que é ridículo. Medicamentos não são a única solução. Estamos imersos em afetos, relações sociais, a justiça, a política, a economia. Não se pode isolar o cérebro disso tudo. Não é vantajoso neurologizar todos os problemas que temos".  

Esta fala sinaliza e demonstra que 'projeto' de Damásio é ambicioso: compreender e explicar a relação da mente com o sistema nervoso (que inclui o cérebro), do sistema nervoso com o resto do corpo e do organismo como um todo com o meio em que ele está inserido. Em especial, Damásio dedica seus escritos à investigação de três fenômenos que revelam esta complexa interação mente-corpo-ambiente: as emoções, os sentimentos e a consciência. Seus livros O erro de Descartes e Em busca de Espinosa se focam no tema das emoções e dos sentimentos; já as obras O mistério da consciência e E o cérebro criou o homem se dedicam ao tema da consciência (mas sem ignorar as emoções e sentimentos já que, para ele, tais fenômenos são uma parte fundamental da consciência); finalmente, em sua obra mais recente (e mais ambiciosa), A estranha ordem das coisas, Damásio entrelaça estes três fenômenos conectando-os ao processo mais geral da homeostase - pretendendo, com isso, compreender as bases biológicas ou naturais dos fenômenos culturais. Cabe apontar, contudo, que por mais que pretenda fugir de todos os reducionismos, o autor acaba por dar muito mais atenção ao cérebro e à relação deste com o restante do corpo (reforçando, assim, o chamado dualismo cérebro-corpo) do que à interação entre o organismo e os ambientes físico e social. 

Antes de fazer uma breve apresentação das obras de Damásio, gostaria de tecer algumas breves considerações sobre o estilo de escrita do autor. Ao contrário de escritores como Oliver Sacks (sobre quem já escrevi um breve guia) e de divulgadores científicos como David Eagleman, Sam Kean e Steven Johnson - e eu poderia citar muitos outros -, Damásio tem muito pouco talento para a popularização científica. A leitura de seus livros, em grande medida, não é nada fácil, fluida nem tampouco divertida. Embora eles sejam comumente entendidos como livros de divulgação científica eu os enxergo como livros de ciência e/ou filosofia, voltados para cientistas e filósofos ou, ao menos, para pessoas com um conhecimento mediano destas áreas. Alguém totalmente leigo provavelmente terá muita dificuldade em entender e acompanhar suas reflexões, às vezes (muitas vezes) terrivelmente abstratas. Para piorar, Damásio tem um estilo que eu não teria outra palavra para descrever a não ser... chato. É claro que existem momentos interessantes e inspirados em seus livros, mas, analisando sua obra como um todo - e eu li (ou reli) atentamente cada uma de suas linhas ao longo do último ano - penso que ele "enche linguiça" demais, é um tanto pedante e se repete mais do que seria necessário (em cada obra e ao longo de suas obras). Creio que ele poderia, de uma forma geral, ser um pouco mais conciso e mais claro na forma como expressa suas ideias. De toda forma, apesar destes "poréns" considero a obra de Damásio muito relevante especialmente devido à sua visão "holística", que pressupõe uma integração constante e dinâmica entre mente, cérebro, corpo e ambiente. Em especial, considero muito interessante e pertinente o entendimento do autor de que o corpo - e não somente o cérebro - é o alicerce da mente, o que significa dizer a mente não poderia jamais existir sem um corpo. Na contramão, portanto, de cientistas transumanistas que acreditam na possibilidade de transferência da mente para um dispositivo digital - o chamado upload mental, que analisei em detalhes no post Em busca da imortalidade da mente - para Damásio não faz sentido imaginar a mente separada do corpo. Como bem afirma em seu último livro, ao resumir um pensamento presente em todos os seus livros anteriores, "não existe mente sem corpo. Nosso organismo contém um corpo, um sistema nervoso e uma mente, que é derivada de ambos".

Tendo tudo isso em vista, segue abaixo uma breve apresentação de cada um dos livros do autor.


O ERRO DE DESCARTES:
EMOÇÃO, RAZÃO E CÉREBRO HUMANO (1994)
Título original: Descartes' error 

Em seu primeiro e mais famoso livro, muito lido e pouco compreendido, Damásio formula e defende a hipótese de que "a emoção é um componente central da maquinaria da razão". O autor não pretende com isso dizer que as emoções tomam as decisões por nós ou que não somos seres racionais. Sua ideia é mais simples: "limito-me a sugerir que certos aspectos do processo da emoção e do sentimento são indispensáveis para a racionalidade". E para investigar tal hipótese, Damásio utiliza como método principal a análise clínica e experimental de doentes neurológicos. Outra ideia importante do livro é o entendimento de que "a essência de um sentimento (o processo de viver uma emoção) não é uma qualidade mental ilusória associada a um objeto, mas sim a percepção direta de uma paisagem específica: a paisagem do corpo". Isto significa, para o autor, que "os sentimentos não são tão intangíveis quanto se supunha" e que se relacionam diretamente com o cérebro (e, dentro deste, não somente com o sistema limbico, mas também com os córtices pré-frontais) e com o restante do corpo. Os sentimentos, para ele, são como percepções dos "estados do corpo" – e, portanto, atuam como guias internos (ou termômetros) da situação atual do organismo. Outra ideia importante defendida pelo autor é que os circuitos cerebrais envolvidos em processos racionais estão diretamente relacionados a circuitos envolvidos em processos emocionais. Segundo Damásio há uma forte ligação entre, por exemplo, o córtex frontal – relacionado, dentre outras coisas, aos processos de tomada de decisão – e o sistema límbico, envolvido no processamento das emoções e sentimentos. E isto apontaria, segundo o autor, para uma intrínseca e inescapável relação entre razão e emoção. Segundo Damásio não é possível pensar em escolhas puramente racionais; toda escolha é necessariamente racional e emocional, ao mesmo tempo. Sua hipótese do marcador somático se relaciona a este entendimento. Por fim, cabe apontar que sua crítica ao dualismo mente-cérebro defendido pelo filósofo francês René Descartes (1596-1650) está baseada em uma visão equivocada da teoria do filósofo – que defende um entendimento interacionista da relação entre mente e cérebro (sendo a glândula pineal o órgão de contato entre os dois). Além disso, por mais que tente superar todos os dualismos, Damásio não só não consegue se desvencilhar do dualismo mente-cérebro como sistematicamente reforça o dualismo cérebro-corpo. Saiba mais no texto O acerto de Descartes.

O MISTÉRIO DA CONSCIÊNCIA: 
DO CORPO E DAS EMOÇÕES AO CONHECIMENTO DE SI (1999)
Título original: The feeling of what happens: body and emotion in making of consciousness [O sentimento do que acontece: corpo e emoção na construção da consciência]

Em seu segundo livro, publicado cinco anos após o primeiro, Damásio analisa em detalhes o chamado "problema da consciência". Partindo de uma definição simples mas interessante de consciência - "a percepção que um organismo tem de si mesmo e do que o cerca" - o autor investiga o fenômeno tendo como ponto de partida inúmeros casos clínicos de pessoas com lesões ou disfunções no funcionamento cerebral. Segundo Damásio a consciência diz respeito a um fenômeno privado, isto é, que somente a própria pessoa tem acesso, e que faz parte de outro processo privado que denominamos mente. A consciência é, assim, uma característica ou um ingrediente da mente - o que significa dizer que a mente pode, eventualmente, ocorrer sem consciência, como em algumas síndromes neurológicas. Logo no início da obra Damásio busca diferenciar dois "problemas da consciência": o primeiro consiste em entender como obtemos o que o autor chama de "filme no cérebro", isto é, as imagens mentais que temos quando estamos conscientes; já o segundo problema diz respeito à forma como o cérebro cria "um sentido de self no ato de conhecer", o que significa questionar de que forma ocorre a autoconsciência. O autor aponta, nesse sentido, para a existência de duas formas de consciência: uma forma simples, chamada de "consciência central" - que fornece ao organismo a percepção do mundo ao seu redor - e uma forma complexa, chamada de "consciência ampliada" - que fornece ao organismo a sensação de ter uma identidade própria. Damásio voltará a esta tipologia outras vezes em sua obra posterior, tentando sempre articular especulações filosóficas e hipóteses científicas com o resultado de pesquisas sobre as bases cerebrais para estas duas formas de consciência.

EM BUSCA DE ESPINOSA:
PRAZER E DOR NA CIÊNCIA DOS SENTIMENTOS (2003)
Título original: Looking for Spinoza: joy, sorrow and the feeling brain [Em busca de Espinosa: prazer, sofrimento e o cérebro que sente]  - Obra esgotada no Brasil

Em sua terceira obra, publicada quatro anos após a anterior, Damásio volta a explorar o tema dos sentimentos. Para tanto, assim como fez em seu primeiro livro, o autor toma como ponto de partida a obra de um filósofo, desta vez o filósofo holandês Baruch Espinosa (1632-1677). Só que ao contrário de O erro de Descartes, no qual Damásio questiona e tenta se afastar das ideias do filósofo francês, desta vez o autor se aproxima e se identifica com Espinosa. Na verdade, Damásio vê na obra deste filósofo um prenúncio de suas próprias ideias sobre a relação mente-cérebro-corpo. Em especial, o neurocientista se interessa pela visão monista de Espinosa que considerava mente e corpo como propriedades de uma mesma substância - e não substâncias diferentes, como propunha o dualista Descartes. Ao longo de todo o livro, Damásio resgata e refina grande parte da teoria das emoções e dos sentimentos que já havia proposto em seu primeiro livro, além de discutir o problema mente-cérebro a partir da obra de Espinosa. Na minha visão, o autor traz poucas novidades nesta obra, que considero a mais fraca de sua carreira. O único aspecto "inovador" da obra é sua interpretação do enigmático pensamento de Espinosa à luz dos conhecimentos da neurobiologia contemporânea. De resto, nada novo sob o sol.

E O CÉREBRO CRIOU O HOMEM (2010)
Título original: The self comes to mind: constructing the conscious brain [O "eu" vem à mente: construindo o cérebro consciente]

Em sua quarta obra, publicada sete anos após a anterior, Damásio retorna ao "problema da consciência", trazendo os mesmos temas, discussões e teorias já extensamente analisados em suas obras anteriores. Com um título em português que não faz jus ao objetivo geral da obra, este livro, como o anterior, traz pouca novidade para a teoria geral de Damásio, acrescentando apenas alguns resultados de pesquisa e algumas discussões específicas. De uma forma geral seu objetivo continua sendo compreender de que forma mente, cérebro e restante do corpo se articulam para "construir" a consciência - e de que maneira as emoções e os sentimentos contribuem pra isso. As principais perguntas que guiam  suas reflexões nesse livro são: 1) como o cérebro constrói a mente? e 2) como o cérebro toma essa mente consciente - o que pode ser resumido em apenas uma questão: como o cérebro "constrói" a mente consciente? Logo no primeiro capítulo ele deixa claro a natureza hipotética e especulativa de suas respostas para estas questões. Afirma Damásio: "o objetivo deste livro é refletir sobre as conjunturas e discutir um conjunto de hipóteses". E dentre todas as conjunturas e hipóteses que ele articula ao longo do livro - em geral de maneira muito abstrata e confusa - eu destacaria a visão dinâmica do funcionamento cerebral defendida por Damásio, oposta à disseminada perspectiva localizacionista (que identifica cada função mental a um local específico do cérebro). Especificamente sobre as bases cerebrais da consciência, ele afirma, em certo momento, que "nenhum mecanismo isolado explica a consciência no cérebro, nenhum dispositivo, nenhuma região, característica ou truque pode produzí-la sem ajuda, do mesmo modo que uma sinfonia não pode ser tocada por um só músico, e nem mesmo por alguns poucos. Muitos são necessários. A contribuição de cada um é importante. Mas só o conjunto produz o resultado que procuramos explicar". Além disso, Damásio traz e analisa, mais uma vez, o fenômeno da consciência (e também das emoções e sentimentos) à luz do fenômeno mais geral da homeostase. Em seu próximo livro, ele trará a homeostase para o centro da discussão.
  
A ESTRANHA ORDEM DAS COISAS: AS ORIGENS BIOLÓGICAS DOS SENTIMENTOS E DA CULTURA (2018)
Título original: The strange order of things: life, feeling and the making of cultures [A estranha ordem das coisas: vida, sentimento e a construção das culturas]

Em sua quinta obra, lançada oito anos após a anterior, Damásio se propõe a analisar a importância da homeostase para o entendimento dos fenômenos cerebrais, mentais e culturais. De acordo com o autor, a homeostase "é o conjunto fundamental de operações no cerne da vida, desde seu início mais antigo até o presente. É o imperativo poderoso, impensado, tácito, cujo cumprimento permite, a cada organismo vivo, pequeno ou grande, nada menos que perdurar e prevalecer". Trata-se do processo fundamental que permite a manutenção e perpetuação da vida. Em seu entendimento, todos os fenômenos corporais, cerebrais e/ou mentais estão relacionados a este fenômeno na medida em que favorecem (ou não) a vida. Em sua visão, as emoções, os sentimentos e a consciência só existem nos seres humanos porque, de alguma forma, tais fenômenos contribuiram para a manutenção e perpetuação da vida. Na mesma direção, todos os fenômenos sociais teriam como base (ou como condição mínima de existência) a homeostase, o que significa dizer que sem a regulação da vida não haveria vida em sociedade. A ideia de Damásio, embora sofisticada na forma, é muito simples no conteúdo: sem a biologia não haveria cultura, o que significa dizer que para que uma cultura exista é necessário que os seres que a compõem estejam vivos e se perpetuem - e isto só é possível devido à homeostase. Mas o argumento de Damásio vai um pouco além: para que uma cultura floresça são necessários não apenas seres vivos, mas seres vivos com mentes conscientes, emoções e sentimentos. Estes últimos, em especial, são vistos por Damásio como fundamentais para a existência de atividades culturais na medida em que funcionariam como um "termômetro" para o organismo - como afirma o autor, "em circunstâncias comuns, os sentimentos comunicam à mente, sem o uso de palavras, se a direção do processo da vida é boa ou má, em qualquer momento, no respectivo corpo. Ao fazerem isso, eles naturalmente qualificam o processo da vida como condizente ou não ao bem-estar e à prosperidade". A ideia, aparentemente complexa, também é relativamente simples: se nos sentimos bem, nosso organismo está bem; se nos sentimos mal, nosso organismo está mal. Assim, ao contribuírem para uma autoavaliação contínua do organismo, os sentimentos favoreceriam a manutenção e perpetuação da vida e estariam, com isso, na base de todas as atividades culturais humanas - ou, como aponta Damásio, "a atividade cultural começa e permenece profundamente alicerçada em sentimentos".

Saiba mais sobre a vida e obra de Antônio Damásio na reportagem A vida dos sentimentos.