quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Phineas Gage: entre o mito e a realidade

Talvez você ja tenha ouvido falar de Phineas Gage. Agora, se você é estudante ou profissional das áreas de psicologia, psiquiatria, neurologia ou neurociências, é praticamente impossível que em algum momento de sua vida, em alguma disciplina, livro ou palestra, você não tenha se deparado com a trágica história de Phineas. E a razão é que este sujeito é um dos "personagens" mais famosos - se não o mais famoso - da história das neurociências. Sua trajetória pode ser encontrada em praticamente todos os manuais de introdução às "ciências do cérebro" assim como em livros clássicos da área - sendo o mais famoso deles O erro de Descartes, do neurologista português Antônio Damásio, que se inicia justamente com a história de Phineas Gage. A grande questão, que gostaria de trazer e analisar neste texto, é que existem inúmeras informações equivocadas e até mesmo inventadas sobre a vida de Phineas. Em uma profunda análise concretizada no livro An odd kind of fame: stories of Phineas Gage [Um estranho tipo de fama: histórias sobre Phineas Gage], o psicólogo Malcolm Macmillan encontrou na literatura científica e popular inúmeros relatos inconsistentes e inverossímeis sobre a trajetória de Phineas. Analisarei abaixo algumas destas "histórias" de forma a separar o que de fato sabemos e o que não sabemos (e nem podemos saber) sobre o caso. O objetivo é, enfim, tentar entender o que é realidade e o que é ficção na curiosa história de Phineas Gage.

Pois bem, a história de Phineas Gage tem início no dia 9 de Julho de 1823, data de seu nascimento em New Hampshire nos Estados Unidos. No entanto, o evento que o tornou célebre e que representou praticamente um renascimento, ocorreu 25 anos após esta data, mais especificamente no dia 13 de setembro de 1848, nos arredores da cidade de Cavendish, também nos EUA.  Às 16:30h deste dia, Phineas, que trabalhava como capataz da indústria ferroviária,  fez um buraco em uma rocha, como de costume, e estava ajeitando a pólvora neste buraco com uma barra de ferro de cerca de 1 metro de comprimento, quando uma explosão fez com a barra entrasse com toda a força e velocidade em seu rosto, na altura de sua bochecha esquerda, e saísse pelo topo de sua cabeça, caindo a mais de 30 metros de distância. Em questão de segundos, seu olho esquerdo foi destruído e algumas partes do seu cérebro e crânio foram seriamente lesionadas. No entanto, surpreendentemente, Phineas ficou inconsciente por apenas alguns instantes, recobrando o movimento e a fala muito rapidamente. Esta parte da história, muito provavelmente, é verdadeira. As controvérias começam com os relatos sobre os momentos posteriores a este terrível acidente. De acordo com alguns desses relatos, após este episódio Cage mudou radicalmente sua personalidade, deixando de ser a pessoa pacata, responsável e educada que era até então e se tornando um sujeito anti-social, instável e até mesmo violento. Alguns relatos chegam a dizer que Gage se tornou um psicopata, isto é, um sujeito indiferente e hostil aos demais seres humanos. Outros relatos ainda apontam que Cage tornou-se tão perturbado e louco que chegou a molestar algumas crianças.

Todas estas narrativas são frequentemente utilizadas por neurocientistas e psicológos como provas incontestáveis de que determinadas partes do cérebro, em especial os lobos frontais (que teriam sido lesionados no acidente), são imprescindíveis para o controle de impulsos e para a execução de comportamentos pró-sociais de uma forma geral - o que significa também que qualquer lesão significativa nestas áreas poderia (na verdade, deveria) causar importantes e, até certo ponto, irreversíveis mudanças no comportamento e na personalidade do sujeito. No entanto, a incômoda realidade é que muito pouco se sabe sobre o comportamento de Gage após o acidente - assim como pouco se sabe sobre sua vida pregressa. Como aponta Malcolm Macmillian, grande parte destes relatos são inconsistentes e não fundamentados pelas evidências disponíveis. O que de fato se sabe é que cerca de uma hora após o acidente, Gage foi atendido pelo médico John Martyn Harlow, que conseguiu conter a hemorragia e, posteriormente, tratar uma grave infecção decorrente. Estes esforços, certamente, salvaram a vida de Gage. Três meses após o acidente e, tendo perdido o emprego de capataz, Gage regressou à fazenda de seus pais e passou a maior parte do ano de 1849 se recuperando. No mês de novembro deste ano, viajou até a cidade de Boston para ser examinado pelo médico Henry Jacob Bigelow, que também atuava como professor de cirurgia na Universidade de Harvard. A partir de 1950, Gage esteve envolvido em diversas atividades: atuou como atração de um "show de horrores" no Museu Americano de Barnum, em Nova Iorque; trabalhou como condutor de carruagens em Hanover; e então se mudou para o Chile com um homem que pretendia montar uma linha de carruagens em Valparaíso. Depois de muitos anos dirigindo carruagens, Phineas decidiu  retornar aos Estados Unidos, em 1859, para se reaproximar de sua família, que agora morava na cidade de São Francisco. Ainda no Chile Gage adquiriu alguma doença desconhecida e chegou nos EUA enfraquecido, o que lhe impossibilitou inicialmente de trabalhar. Pouco tempo depois, no início de 1860, Phineas começou a ter uma série de convulsões, que foram se tornando cada vez mais frequentes e graves. Até que no dia 21 de Maio de 1860 Phineas Gage faleceu, aos 37 anos, como consequência destes ataques, tendo sobrevido 11 anos e meio após o acidente. Seu crânio encontra-se, atualmente no Museu Anatômico de Warren, na Universidade de Harvard.

John Martyn Harlow (1819–1907)
Especificamente com relação às mudanças na personalidade de Gage existem poucos registros. Em 1868 - oito anos após sua morte - o médico John Martyn Harlow, descreveu em um relatório com menos de 200 palavras os motivos pelos quais os patrões de Phineas não o teriam empregado novamente. Esse resumo, além de algumas poucas palavras utilizadas por Harlow no laudo que escreveu após o acidente, nos contam praticamente tudo o que sabemos sobre a personalidade subsequente de Gage - e mesmo tais documentos não são totalmente confiáveis pois as avaliações que eles expõem foram todas subjetivas (nenhum teste ou avaliação mais objetivo foi aplicado em Gage, como seria feito hoje). Segundo Harlow, em seu relatório de 1868, o acidente destruiu "o equilíbrio entre suas faculdades intelectuais e suas propensões animais". Além disso, em função do acidente, Phineas teria se tornado: "vacilante, irreverente e grosseiramente profano, demonstrando 'pouca deferência por seus companheiros de trabalho'"; "intolerante a restrições ou conselhos que conflitam com seus desejos", "obstinadamente teimoso, caprichoso e vacilante a respeito de seus planos para o futuro"; "intelectualmente infantil com as 'paixões animais' de um homem forte". Em contraposição, Harlow apontou que anteriormente ao acidente, Phineas havia sido: "forte e ativo, com determinação de ferro e temperamento nervo-bilioso"; "de hábitos moderados e possuidor de uma considerável energia de caráter"; "o favorito dentre seus colegas de trabalho"; "o capataz mais eficiente e hábil contratado por seus patrões", "de posse de uma mente equilibrada" e "prezado como um homem de negócios esperto e inteligente muito energético na execução de seus planos". Harlow ainda aponta em seu escrito de 1868 que amigos e conhecidos de Phineas teriam dito que "Gage não era mais Gage", frase que se tornou famosa. A grande questão sobre estas supostas mudanças de personalidade é que elas estão respaldadas em apenas um documento, escrito por apenas um médico, Harlow, 8 anos após a morte de Gage. No laudo de 1848, escrito também por Harlow, não há nenhuma consideração sobre mudanças de personalidade - até porque o acidente tinha acabado de ocorrer. Da mesma forma, em registros posteriores feitos por outros médicos (Jackson em 1849 e Bigelow em 1950), não há, igualmente, nenhuma referência a tais mudanças.

De acordo com Macmillan, parte desta negligência pode ser explicada pela falta de conhecimento sobre as funções do cérebro no início do século XIX. De acordo com o autor, "além da organologia de Franz Josef Gall (frenologia) não existia, antes de 1848, uma teoria sobre o funcionamento do cérebro. O entendimento de que os nervos transmitem sensações e controlam os movimentos já era conhecido, mas ainda não era aceita a ideia de que danos em um lado do cérebro poderiam afetar os movimentos ou as sensações". Mas não só: o entendimento óbvio atualmente de que nossa linguagem e personalidade dependem, de alguma forma, do funcionamento cerebral, ainda não havia sido demonstrado até aquele momento. A situação teria começado a mudar na década de 1860, justamente na época do relatório de 1868 escrito por Harlow. Neste momento os achados feitos por Paul Broca a partir do estudo post mortem do cérebro de sujeitos afásicos sugeriu que as funções da linguagem estavam localizadas no hemisfério cerebral esquerdo. Um pouco mais tarde os experimentos feitos por David Ferrier com macacos demonstraram que danos no lobo pré-frontal poderiam provocar profundas mudanças de personalidade. No entanto, no momento do acidente de Gage - e até cerca de 20 anos após - não se sabia de nada disso. Segundo Macmillan, "Gage estava literalmente à frente de seu tempo". A consequência disso é que grande parte das análises sobre as supostas mudanças em sua personalidade foi feita retrospectivamente, de forma a se ajustar a certas teorias desenvolvidas nas décadas subsequentes. Como aponta Macmillan, "muitas interpretações sobre o comportamento de Phineas foram feitas para suportar teorias particulares". Por exemplo, as alegações sobre as mudanças na sexualidade de Gage - jamais mencionadas nos relatórios e laudos escritos por Harlow e Bigelow, os únicos que de fato examinaram Gage - serviram para dar suporte a observações feitas posteriormente com pacientes lobotomizados, que, em alguns casos, apresentavam tais mudanças. Da mesma forma, grande parte das supostas mudanças apontadas em Gage não passam de distorções ou puras invenções feitas com o propósito de confirmar certas teorias sobre o funcionamento do cérebro e, especificamente, sobre o funcionamento dos lobos frontais, que teriam sido lesionados em Gage. No entanto, como o cérebro de Gage jamais foi analisado - apenas seu crânio, retirado em uma exumação feita em 1867 - é impossível dizer com precisão quais áreas foram efetivamente lesionadas.

Tudo isto significa que grande parte do que é dito sobre Phineas Gage muito provavelmente não ocorreu ou ocorreu de uma outra forma. Esta contraposição quase caricatural entre o sujeito trabalhador, tranquilo e confiável de antes do acidente e o sujeito indisciplinado, imprevisível e depravado de depois do acidente não passa, muito provavelmente, de um mito, criado para respaldar certas teorias sobre o funcionamento do cérebro. Como afirma o jornalista científico Sam Kean no maravilhoso livro O duelo dos neurocirurgiões, "Gage tornou-se - e contiua sendo até hoje - uma espécie de teste de Rorschach para neurocientistas, um reflexo das paixões e obsessões de cada era que passa". Curiosamente, uma possibilidade pouco discutida na literatura neurocientífica é aquela que aponta para a recuperação, ainda que parcial, de Phineas Gage. Tendo em vista a compreensão contemporânea acerca da plasticidade cerebral, assim como os imprecisos mas fundamentais relatos sobre sua vida subsequente, não me parece incorreto afirmar que Gage, de alguma forma, se recuperou da grave lesão cerebral causada pelo acidente. Nunca saberemos de fato, mas indícios indiretos apontam nesta direção. Macmillan afirma, por exemplo, que o longo período em que Gage trabalhou como condutor de carruagens no Chile - um trabalho exigente em termos de habilidades motoras e cognitivas - é inconsistente com a ideia de que após o acidente ele teria se tornado totalmente indisciplinado, impulsivo e desleixado. De acordo com o mesmo autor, a possibilidade de que Gage tenha se recuperado, ainda que parcialmente, traz consigo importantes consequências teóricas e práticas. Segundo Macmillan tal descoberta "poderia se somar  às evidências atuais de que reabilitação pode ser efetiva mesmo em casos difíceis e graves. Mas também poderia significar que o pesquisadores do funcionamento do lobo frontal teriam de considerar que os lobos cerebrais e suas funções são muito mais plásticos do que pensamos agora". Ainda que esta possibilidade de que Gage tenha se recuperado seja em grande medida especulativa, as demais histórias sobre sua vida e sobre suas supostas mudanças  de personalidade são igualmente especulativas. A dolorosa verdade é que jamais saberemos de fato (e em detalhes) como foi a vida e a personalidade de Phineas Cage antes e após o acidente, assim como jamais saberemos com exatidão quais partes de seu cérebro foram danificadas. E este vácuo, por sua vez, abriu espaço para todo tipo de especulação. Como afirma Sam Kean "a escassez de detalhes concretos sobre Gage provavelmente assegurou sua fama, uma vez que deixou espaço infinito para interpretação e discussão". Assim, para além de um marco na história das neurociências, a curiosa história de Phineas Gage também ilustra com perfeição a facilidade com que uma pequena quantidade de fatos pode ser transformada, ao longo do tempo, em um mito popular e científico. 

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2 Comentários

2 comentários:

Anônimo disse...

Excelente! ����

Dalila disse...

Temos atitudes há sempre um porquê