quarta-feira, 28 de agosto de 2019

O Human Brain Project (HBP) e suas promessas

No dia 24 de Julho, a revista The Atlantic publicou um excelente artigo do jornalista científico Ed Yong denominado "The Human Brain Project Hasn’t Lived Up to Its Promise". Segue a tradução que fiz desse texto, cuja versão original pode ser lida aqui. Aliás, este é o terceiro artigo de Yong que traduzo para este blog - os demais podem ser lidos aqui e aqui.

No dia 22 de julho de 2009, o neurocientista Henry Markram entrou no palco da conferência TEDGlobal em Oxford, na Inglaterra, e disse ao público que ele iria simular o cérebro humano, com toda a sua complexidade, em um computador. Seus objetivos eram elevados: "Talvez seja para entender a percepção, compreender a realidade e talvez até entender a realidade física". Sua linha do tempo era ambiciosa: "Podemos fazê-lo dentro de 10 anos e, se conseguirmos, enviaremos para o TED, em 10 anos, um holograma para falar com você”. Se o meme do cérebro galáctico existisse naquele momento, teria sido um ótimo momento para invocá-lo.

Faz exatamente 10 anos. Ele não obteve sucesso.

Pode-se argumentar que a natureza dos pioneiros é mirar longe e falar muito, e que é grosseiro destacar qualquer previsão falha quando a ciência está tão cheia delas. (os escritores de ciência brincam que os medicamentos e as tecnologias inovadoras parecem estar sempre entre cinco e dez anos de distância) Mas vale a pena revisitar as alegações de Markram por duas razões. Em primeiro lugar, as apostas eram enormes: em 2013, a Comissão Européia concedeu à sua iniciativa - o Human Brain Project (HBP) - uma assombrosa quantia de 1 bilhão de euros (valendo cerca de 1,42 bilhão de dólares na época). Em segundo lugar, os esforços do HBP e a intensa reação negativa ao projeto expuseram importantes divisões na maneira como os neurocientistas pensam sobre o cérebro e como ele deve ser estudado.

O objetivo de Markram não era criar uma versão simplificada do cérebro, mas um fac-símile gloriosamente complexo, com os neurônios constituintes, a atividade elétrica que os percorre e até mesmo os genes ligando e desligando dentro deles. Desde o início, a crítica a essa abordagem era muito difundida e, para muitos outros neurocientistas, sua estratégia de baixo para cima [bottom-up strategy] parecia implausível no limite do absurdo. As complexidades do cérebro - como os neurônios se conectam e cooperam, como as memórias se formam, como as decisões são tomadas - são mais desconhecidas do que conhecidas, e não poderiam ser decifradas em detalhes suficientes em apenas uma década. Se já é difícil mapear e simular os 302 neurônios da lombriga C. elegans, imagine só os 86 bilhões de neurônios dentro de nossos crânios. "As pessoas pensaram que era irrealista e pouco razoável como objetivo", diz a neurocientista Grace Lindsay, que está escrevendo um livro sobre a modelagem do cérebro. 

E qual foi o objetivo? O HBP não estava tentando abordar qualquer questão de pesquisa em particular, ou testar uma hipótese específica sobre como o cérebro funciona. A simulação parecia um fim em si mesma - uma resposta da superengenharia para uma pergunta inexistente, uma ferramenta em busca de um uso. Quando o Blue Brain Project, um empreendimento relacionado que Markram fundou, lançou uma simulação de 30 mil neurônios de ratos em 2015 - apenas 0,15% do minúsculo cérebro do roedor -, os críticos apontaram para esta simulação como um enorme esforço que não revelou nada de novo. Mesmo que se pudesse fazer o mesmo com o cérebro humano, por que isso deveria ocorrer? "Agora você tem um cérebro em um computador e antes você tinha um cérebro em um crânio", diz Lindsay. "E daí?"

Markram explicou que, ao contrário do que disse no TED Talk [em 2009], ele nunca pretendeu que a simulação fizesse muita coisa. Ele não queria fazer uma inteligência artificial nem passar no teste de Turing. Em vez disso, ele concebeu seu projeto como um banco de testes experimental [experimental test bed] - uma maneira de os cientistas testarem suas hipóteses sem ter que cutucar a cabeça de um animal. “Isso seria incrivelmente valioso”, diz Lindsay, mas é baseado em lógica circular. Uma simulação pode permitir que os pesquisadores testem idéias sobre o cérebro, mas essas idéias já teriam que estar muito avançadas para se submeter à simulação. “Uma vez que a neurociência estivesse 'concluída', deveríamos ser capazes de fazer tal simulação, mas ter isso como um passo intermediário parece difícil.”

“Não é óbvio para mim o que a natureza de grande escala da simulação realizaria”, acrescenta Anne Churchland, do Cold Spring Harbor Laboratory. Sua equipe, por exemplo, simula redes de neurônios para estudar como os cérebros combinam informações visuais e auditivas. "Eu poderia implementar isso com centenas de milhares de neurônios, e não está claro o que eu obteria se tivesse 70 bilhões."

Em um artigo recente intitulado “O Caso Científico das Simulações Cerebrais”, vários cientistas do HBP argumentaram que grandes simulações “provavelmente serão indispensáveis ​​para aproximar as escalas entre o nível do neurônios e o nível dos sistemas no cérebro”. Em outras palavras: os cientistas podem olhar para o porcas e parafusos de como os neurônios funcionam, e eles podem estudar o comportamento de organismos inteiros, mas eles precisam de simulações para mostrar como o primeiro cria o segundo. Os autores do artigo fizeram uma comparação com as previsões do tempo, em que uma compreensão da física e da química na escala dos bairros nos permite prever com precisão a temperatura, as chuvas e o vento em todo o mundo.

A analogia não funciona, diz Adrienne Fairhall, neurocientista da Universidade de Washington, com formação em física. Sim, simulações em larga escala são úteis para entender o clima e as galáxias, mas “os sistemas planetários não dizem respeito a nada além de si mesmos”, diz ela. “Um cérebro é construído para ser sobre outras coisas.” Isto é: ele absorve informações do mundo e move corpos humanos e animais, que então influenciam esse mundo. Quanto nós realmente aprenderíamos com um cérebro desencorporado em um jarro virtual, que não está conectado a olhos, ouvidos ou membros? "Você poderia pegar um pedaço de tecido e analisar toda sua parte física, mas não chegaria ao que realmente importa", diz Fairhall. “Biologia é tipo de coisa que tem significado. Simular um tecido é factível, não faz nenhum sentido”.

O HBP, então, está em uma posição muito estranha, criticado por ser simultaneamente grandioso e estreito demais. Nenhum dos céticos com quem eu falei estava descartando a ideia de simular partes do cérebro, mas todos sentiam que tais esforços deveriam ser conduzidos por questões de pesquisa reais. Por exemplo, Xiao-Jing Wang, da Universidade de Nova York, construiu modelos que mostram como os neurônios, se conectados de uma certa maneira, podem manter a atividade elétrica mesmo se não estiverem sendo estimulados - a essência do que chamamos de memória de trabalho, ou a capacidade de manter pensamentos. Enquanto isso, Chris Eliasmith, da Universidade de Waterloo, construiu um modelo chamado Spaun, que usa um conjunto simplificado de 2,5 milhões de neurônios virtuais para realizar cálculos aritméticos simples e resolver problemas básicos de raciocínio.

Incontáveis projetos desse tipo poderiam ter sido financiados com o dinheiro canalizado para o HBP, o que explica muito do furor em torno do projeto. Em 2014, cerca de 800 neurocientistas escreveram uma carta aberta à Comissão Européia dizendo que “o HBP não é um projeto bem concebido ou implementado e que não é adequado para ser a peça central da neurociência européia.” Um ano depois, um comitê de mediação concordou com os críticos, pedindo ao HBP para reorientar seus esforços “para um número menor de atividades adequadamente priorizadas” e reestruturar sua estrutura administrativa pouco ortodoxa .

O HBP concordou. E efetivamente se redefiniu como um projeto de software que faz a curadoria de dados existentes sobre o cérebro, fornece ferramentas para pesquisar esses dados e desenvolve simuladores que permitirão a outros projetos construir seus próprios modelos. E com o grande bolo de financiamento previsto para expirar em 2023, o artigo recente da equipe parece um pedido por mais investimento. “O desenvolvimento de simuladores cerebrais de alta qualidade requer um comprometimento de recursos a longo prazo”, escreveram eles.

É notável, todavia, que as pessoas que eu entrei em contato tenham se esforçado para nomear uma grande contribuição que o HBP fez na última década. Isso não quer dizer que tais contribuições não existam. É mais que elas não viram um retorno proporcional ao orçamento empregado no projeto, ou talvez que o HBP ainda tenha que ganhar de volta a confiança de uma comunidade que foi alienada pela publicidade exagerada [no original: hype].

Markram parece irredutível. Em um artigo recente, ele e seu colega Xue Fan situaram firmemente as simulações cerebrais dentro não apenas do campo da neurociência, mas de todo o arco da filosofia ocidental e da civilização humana. E em um comunicado por e-mail, ele me disse: “A resistência política (não científica) ao projeto realmente nos desacelerou consideravelmente, mas não nos impediu nem o fará.” Ele apontou ainda para a o fato de 140 pessoas ainda trabalharem no Blue Brain Project, para um conjunto recente de publicações positivas de cinco revisores externos e também para sua "exponenciamente crescente" capacidade para "construir modelos biologicamente precisos de regiões do cérebro cada vez maiores".

Ele não aponta nenhum prazo, desta vez, mas não há escassez de outras pessoas prontas para fazer alegações extravagantes sobre o futuro da neurociência. Em 2014, participei da principal conferência do TED em Vancouver e assisti à palestra de abertura do fundador do MIT Media Lab, Nicholas Negroponte. Em suas palavras finais, ele afirmou que em 30 anos “vamos ingerir informações. Você vai engolir uma pílula e aprender inglês. Você vai engolir uma pílula e aprender Shakespeare. E isso se dará pela corrente sanguínea. E, uma vez na corrente sanguínea, basicamente ela vai para o cérebro, e quando ela souber que está no cérebro, nas diferentes partes, vai depositá-lo no lugar certo”.

Sobre o meu ombro esquerdo, uma voz abafada sussurrou: "Uau".

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Um breve guia para a obra de Antônio Damásio

Antônio Damásio é um neurologista e neurocientista português, nascido em Lisboa em 1944, que atua como professor e pesquisador na Universidade do Sul da Califórnia, nos Estados Unidos. É autor de cinco importantes livros - O erro de Descartes (1994), O mistério da Consciência (1999), Em busca de Espinosa (2003), E o cérebro criou o homem (2010) e A estranha ordem das coisas (2018) - além de inúmeros artigos científicos, vários em parceria com sua esposa Hanna Damásio, que também é médica e neurocientista e atua como professora do Instituto Salk, em La Jolla, Califórnia. Todos os seus livros se propõem a aproximar neurologia, neurociências e filosofia com o propósito de desenvolver teorias e hipóteses que expliquem o funcionamento geral do organismo, não apenas de seu cérebro. Em toda sua obra Damásio defende a importância de se levar em conta o funcionamento do organismo como um todo para se entender os pensamentos, sentimentos e comportamentos humanos. O autor aponta sempre para a complexa interação entre mente, cérebro, corpo e ambiente. Não é possível nem desejável, segundo Damásio, entender a mente e o cérebro separados do corpo e do ambiente. E isto  o leva, por sua vez, a sempre se colocar de forma crítica à toda forma de reducionismo, inclusive ao reducionismo neurocientífico. Em uma entrevista concedida ao jornal O Globo ele chegou a afirmar: 

 "O sucesso da neurociência faz com que muitos caiam em explicações simplistas. Tudo que tem relação com o cérebro é complexo, e por isso os neurocientistas devem se explicar mais, sempre. O reducionismo traz muitos riscos. Há quem acredite que podemos resolver a dor e a tristeza só tomando pílulas, o que é ridículo. Medicamentos não são a única solução. Estamos imersos em afetos, relações sociais, a justiça, a política, a economia. Não se pode isolar o cérebro disso tudo. Não é vantajoso neurologizar todos os problemas que temos".  

Esta fala sinaliza e demonstra que 'projeto' de Damásio é ambicioso: compreender e explicar a relação da mente com o sistema nervoso (que inclui o cérebro), do sistema nervoso com o resto do corpo e do organismo como um todo com o meio em que ele está inserido. Em especial, Damásio dedica seus escritos à investigação de três fenômenos que revelam esta complexa interação mente-corpo-ambiente: as emoções, os sentimentos e a consciência. Seus livros O erro de Descartes e Em busca de Espinosa se focam no tema das emoções e dos sentimentos; já as obras O mistério da consciência e E o cérebro criou o homem se dedicam ao tema da consciência (mas sem ignorar as emoções e sentimentos já que, para ele, tais fenômenos são uma parte fundamental da consciência); finalmente, em sua obra mais recente (e mais ambiciosa), A estranha ordem das coisas, Damásio entrelaça estes três fenômenos conectando-os ao processo mais geral da homeostase - pretendendo, com isso, compreender as bases biológicas ou naturais dos fenômenos culturais. Cabe apontar, contudo, que por mais que pretenda fugir de todos os reducionismos, o autor acaba por dar muito mais atenção ao cérebro e à relação deste com o restante do corpo (reforçando, assim, o chamado dualismo cérebro-corpo) do que à interação entre o organismo e os ambientes físico e social. 

Antes de fazer uma breve apresentação das obras de Damásio, gostaria de tecer algumas breves considerações sobre o estilo de escrita do autor. Ao contrário de escritores como Oliver Sacks (sobre quem já escrevi um breve guia) e de divulgadores científicos como David Eagleman, Sam Kean e Steven Johnson - e eu poderia citar muitos outros -, Damásio tem muito pouco talento para a popularização científica. A leitura de seus livros, em grande medida, não é nada fácil, fluida nem tampouco divertida. Embora eles sejam comumente entendidos como livros de divulgação científica eu os enxergo como livros de ciência e/ou filosofia, voltados para cientistas e filósofos ou, ao menos, para pessoas com um conhecimento mediano destas áreas. Alguém totalmente leigo provavelmente terá muita dificuldade em entender e acompanhar suas reflexões, às vezes (muitas vezes) terrivelmente abstratas. Para piorar, Damásio tem um estilo que eu não teria outra palavra para descrever a não ser... chato. É claro que existem momentos interessantes e inspirados em seus livros, mas, analisando sua obra como um todo - e eu li (ou reli) atentamente cada uma de suas linhas ao longo do último ano - penso que ele "enche linguiça" demais, é um tanto pedante e se repete mais do que seria necessário (em cada obra e ao longo de suas obras). Creio que ele poderia, de uma forma geral, ser um pouco mais conciso e mais claro na forma como expressa suas ideias. De toda forma, apesar destes "poréns" considero a obra de Damásio muito relevante especialmente devido à sua visão "holística", que pressupõe uma integração constante e dinâmica entre mente, cérebro, corpo e ambiente. Em especial, considero muito interessante e pertinente o entendimento do autor de que o corpo - e não somente o cérebro - é o alicerce da mente, o que significa dizer a mente não poderia jamais existir sem um corpo. Na contramão, portanto, de cientistas transumanistas que acreditam na possibilidade de transferência da mente para um dispositivo digital - o chamado upload mental, que analisei em detalhes no post Em busca da imortalidade da mente - para Damásio não faz sentido imaginar a mente separada do corpo. Como bem afirma em seu último livro, ao resumir um pensamento presente em todos os seus livros anteriores, "não existe mente sem corpo. Nosso organismo contém um corpo, um sistema nervoso e uma mente, que é derivada de ambos".

Tendo tudo isso em vista, segue abaixo uma breve apresentação de cada um dos livros do autor.


O ERRO DE DESCARTES:
EMOÇÃO, RAZÃO E CÉREBRO HUMANO (1994)
Título original: Descartes' error 

Em seu primeiro e mais famoso livro, muito lido e pouco compreendido, Damásio formula e defende a hipótese de que "a emoção é um componente central da maquinaria da razão". O autor não pretende com isso dizer que as emoções tomam as decisões por nós ou que não somos seres racionais. Sua ideia é mais simples: "limito-me a sugerir que certos aspectos do processo da emoção e do sentimento são indispensáveis para a racionalidade". E para investigar tal hipótese, Damásio utiliza como método principal a análise clínica e experimental de doentes neurológicos. Outra ideia importante do livro é o entendimento de que "a essência de um sentimento (o processo de viver uma emoção) não é uma qualidade mental ilusória associada a um objeto, mas sim a percepção direta de uma paisagem específica: a paisagem do corpo". Isto significa, para o autor, que "os sentimentos não são tão intangíveis quanto se supunha" e que se relacionam diretamente com o cérebro (e, dentro deste, não somente com o sistema limbico, mas também com os córtices pré-frontais) e com o restante do corpo. Os sentimentos, para ele, são como percepções dos "estados do corpo" – e, portanto, atuam como guias internos (ou termômetros) da situação atual do organismo. Outra ideia importante defendida pelo autor é que os circuitos cerebrais envolvidos em processos racionais estão diretamente relacionados a circuitos envolvidos em processos emocionais. Segundo Damásio há uma forte ligação entre, por exemplo, o córtex frontal – relacionado, dentre outras coisas, aos processos de tomada de decisão – e o sistema límbico, envolvido no processamento das emoções e sentimentos. E isto apontaria, segundo o autor, para uma intrínseca e inescapável relação entre razão e emoção. Segundo Damásio não é possível pensar em escolhas puramente racionais; toda escolha é necessariamente racional e emocional, ao mesmo tempo. Sua hipótese do marcador somático se relaciona a este entendimento. Por fim, cabe apontar que sua crítica ao dualismo mente-cérebro defendido pelo filósofo francês René Descartes (1596-1650) está baseada em uma visão equivocada da teoria do filósofo – que defende um entendimento interacionista da relação entre mente e cérebro (sendo a glândula pineal o órgão de contato entre os dois). Além disso, por mais que tente superar todos os dualismos, Damásio não só não consegue se desvencilhar do dualismo mente-cérebro como sistematicamente reforça o dualismo cérebro-corpo. Saiba mais no texto O acerto de Descartes.

O MISTÉRIO DA CONSCIÊNCIA: 
DO CORPO E DAS EMOÇÕES AO CONHECIMENTO DE SI (1999)
Título original: The feeling of what happens: body and emotion in making of consciousness [O sentimento do que acontece: corpo e emoção na construção da consciência]

Em seu segundo livro, publicado cinco anos após o primeiro, Damásio analisa em detalhes o chamado "problema da consciência". Partindo de uma definição simples mas interessante de consciência - "a percepção que um organismo tem de si mesmo e do que o cerca" - o autor investiga o fenômeno tendo como ponto de partida inúmeros casos clínicos de pessoas com lesões ou disfunções no funcionamento cerebral. Segundo Damásio a consciência diz respeito a um fenômeno privado, isto é, que somente a própria pessoa tem acesso, e que faz parte de outro processo privado que denominamos mente. A consciência é, assim, uma característica ou um ingrediente da mente - o que significa dizer que a mente pode, eventualmente, ocorrer sem consciência, como em algumas síndromes neurológicas. Logo no início da obra Damásio busca diferenciar dois "problemas da consciência": o primeiro consiste em entender como obtemos o que o autor chama de "filme no cérebro", isto é, as imagens mentais que temos quando estamos conscientes; já o segundo problema diz respeito à forma como o cérebro cria "um sentido de self no ato de conhecer", o que significa questionar de que forma ocorre a autoconsciência. O autor aponta, nesse sentido, para a existência de duas formas de consciência: uma forma simples, chamada de "consciência central" - que fornece ao organismo a percepção do mundo ao seu redor - e uma forma complexa, chamada de "consciência ampliada" - que fornece ao organismo a sensação de ter uma identidade própria. Damásio voltará a esta tipologia outras vezes em sua obra posterior, tentando sempre articular especulações filosóficas e hipóteses científicas com o resultado de pesquisas sobre as bases cerebrais para estas duas formas de consciência.

EM BUSCA DE ESPINOSA:
PRAZER E DOR NA CIÊNCIA DOS SENTIMENTOS (2003)
Título original: Looking for Spinoza: joy, sorrow and the feeling brain [Em busca de Espinosa: prazer, sofrimento e o cérebro que sente]  - Obra esgotada no Brasil

Em sua terceira obra, publicada quatro anos após a anterior, Damásio volta a explorar o tema dos sentimentos. Para tanto, assim como fez em seu primeiro livro, o autor toma como ponto de partida a obra de um filósofo, desta vez o filósofo holandês Baruch Espinosa (1632-1677). Só que ao contrário de O erro de Descartes, no qual Damásio questiona e tenta se afastar das ideias do filósofo francês, desta vez o autor se aproxima e se identifica com Espinosa. Na verdade, Damásio vê na obra deste filósofo um prenúncio de suas próprias ideias sobre a relação mente-cérebro-corpo. Em especial, o neurocientista se interessa pela visão monista de Espinosa que considerava mente e corpo como propriedades de uma mesma substância - e não substâncias diferentes, como propunha o dualista Descartes. Ao longo de todo o livro, Damásio resgata e refina grande parte da teoria das emoções e dos sentimentos que já havia proposto em seu primeiro livro, além de discutir o problema mente-cérebro a partir da obra de Espinosa. Na minha visão, o autor traz poucas novidades nesta obra, que considero a mais fraca de sua carreira. O único aspecto "inovador" da obra é sua interpretação do enigmático pensamento de Espinosa à luz dos conhecimentos da neurobiologia contemporânea. De resto, nada novo sob o sol.

E O CÉREBRO CRIOU O HOMEM (2010)
Título original: The self comes to mind: constructing the conscious brain [O "eu" vem à mente: construindo o cérebro consciente]

Em sua quarta obra, publicada sete anos após a anterior, Damásio retorna ao "problema da consciência", trazendo os mesmos temas, discussões e teorias já extensamente analisados em suas obras anteriores. Com um título em português que não faz jus ao objetivo geral da obra, este livro, como o anterior, traz pouca novidade para a teoria geral de Damásio, acrescentando apenas alguns resultados de pesquisa e algumas discussões específicas. De uma forma geral seu objetivo continua sendo compreender de que forma mente, cérebro e restante do corpo se articulam para "construir" a consciência - e de que maneira as emoções e os sentimentos contribuem pra isso. As principais perguntas que guiam  suas reflexões nesse livro são: 1) como o cérebro constrói a mente? e 2) como o cérebro toma essa mente consciente - o que pode ser resumido em apenas uma questão: como o cérebro "constrói" a mente consciente? Logo no primeiro capítulo ele deixa claro a natureza hipotética e especulativa de suas respostas para estas questões. Afirma Damásio: "o objetivo deste livro é refletir sobre as conjunturas e discutir um conjunto de hipóteses". E dentre todas as conjunturas e hipóteses que ele articula ao longo do livro - em geral de maneira muito abstrata e confusa - eu destacaria a visão dinâmica do funcionamento cerebral defendida por Damásio, oposta à disseminada perspectiva localizacionista (que identifica cada função mental a um local específico do cérebro). Especificamente sobre as bases cerebrais da consciência, ele afirma, em certo momento, que "nenhum mecanismo isolado explica a consciência no cérebro, nenhum dispositivo, nenhuma região, característica ou truque pode produzí-la sem ajuda, do mesmo modo que uma sinfonia não pode ser tocada por um só músico, e nem mesmo por alguns poucos. Muitos são necessários. A contribuição de cada um é importante. Mas só o conjunto produz o resultado que procuramos explicar". Além disso, Damásio traz e analisa, mais uma vez, o fenômeno da consciência (e também das emoções e sentimentos) à luz do fenômeno mais geral da homeostase. Em seu próximo livro, ele trará a homeostase para o centro da discussão.
  
A ESTRANHA ORDEM DAS COISAS: AS ORIGENS BIOLÓGICAS DOS SENTIMENTOS E DA CULTURA (2018)
Título original: The strange order of things: life, feeling and the making of cultures [A estranha ordem das coisas: vida, sentimento e a construção das culturas]

Em sua quinta obra, lançada oito anos após a anterior, Damásio se propõe a analisar a importância da homeostase para o entendimento dos fenômenos cerebrais, mentais e culturais. De acordo com o autor, a homeostase "é o conjunto fundamental de operações no cerne da vida, desde seu início mais antigo até o presente. É o imperativo poderoso, impensado, tácito, cujo cumprimento permite, a cada organismo vivo, pequeno ou grande, nada menos que perdurar e prevalecer". Trata-se do processo fundamental que permite a manutenção e perpetuação da vida. Em seu entendimento, todos os fenômenos corporais, cerebrais e/ou mentais estão relacionados a este fenômeno na medida em que favorecem (ou não) a vida. Em sua visão, as emoções, os sentimentos e a consciência só existem nos seres humanos porque, de alguma forma, tais fenômenos contribuiram para a manutenção e perpetuação da vida. Na mesma direção, todos os fenômenos sociais teriam como base (ou como condição mínima de existência) a homeostase, o que significa dizer que sem a regulação da vida não haveria vida em sociedade. A ideia de Damásio, embora sofisticada na forma, é muito simples no conteúdo: sem a biologia não haveria cultura, o que significa dizer que para que uma cultura exista é necessário que os seres que a compõem estejam vivos e se perpetuem - e isto só é possível devido à homeostase. Mas o argumento de Damásio vai um pouco além: para que uma cultura floresça são necessários não apenas seres vivos, mas seres vivos com mentes conscientes, emoções e sentimentos. Estes últimos, em especial, são vistos por Damásio como fundamentais para a existência de atividades culturais na medida em que funcionariam como um "termômetro" para o organismo - como afirma o autor, "em circunstâncias comuns, os sentimentos comunicam à mente, sem o uso de palavras, se a direção do processo da vida é boa ou má, em qualquer momento, no respectivo corpo. Ao fazerem isso, eles naturalmente qualificam o processo da vida como condizente ou não ao bem-estar e à prosperidade". A ideia, aparentemente complexa, também é relativamente simples: se nos sentimos bem, nosso organismo está bem; se nos sentimos mal, nosso organismo está mal. Assim, ao contribuírem para uma autoavaliação contínua do organismo, os sentimentos favoreceriam a manutenção e perpetuação da vida e estariam, com isso, na base de todas as atividades culturais humanas - ou, como aponta Damásio, "a atividade cultural começa e permenece profundamente alicerçada em sentimentos".

Saiba mais sobre a vida e obra de Antônio Damásio na reportagem A vida dos sentimentos.