quinta-feira, 28 de maio de 2020

O tempo e o vazio: reflexões sobre o tédio

Algumas pessoas que tem a possibilidade de estar em quarentena neste momento tem experimentado um constante ou intermitente estado de tédio. Mas o que, afinal de contas, é o tédio? Trata-se de um sentimento comum, que todos provavelmente já experimentaram ao menos uma vez na vida e, ao mesmo tempo, de algo bastante difícil de definir. Seria possível dizer do tédio aquilo que a poetisa Cecília Meirelles disse, certa vez, da liberdade: trata-se de uma expressão "que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda". No entanto, mesmo que não seja possível construir um entendimento completo do tédio - haja vista que as pessoas experimentam cada um dos sentimentos de uma forma muito particular e única - certamente é possível analisá-lo levando-se em conta alguns aspectos gerais da experiência. É o que fez o filósofo norueguês Lars Svendsen no livro Filosofia do tédio, talvez a melhor e mais ampla análise sobre o tema disponível em português. Nesta obra incrível, Svendsen faz uma retrospectiva histórica e filosófica da forma o tédio foi tratado por inúmeros pensadores ao longo do tempo. 

Um primeiro apontamento do autor é que o tédio seria, em sua visão, um fenômeno moderno. Para Svendsen "o tédio só passou a ser um fenômeno cultural central há cerca de dois séculos. É impossível, claro, determinar quando ele surgiu. Ademais, naturalmente teve precursores. Mas ele se destaca como um fenômeno típico da modernidade". Não é muito difícil entender o porquê. O tédio, tal como ele se manifesta em cada um de nós, tem relação com o excesso de opções e estímulos típico da vida moderna. Em contextos mais simples, menos agitados e estimulantes - tente imaginar, por exemplo, a vida de um agricultor na zona rural de uma pequena cidade do interior - é provável que as pessoas experimentem o sentimento de tédio com menor frequência e intensidade do que aquelas que vivem em contextos mais atribulados e frenéticos, como aqueles típicos das grandes cidades modernas. E o motivo é que a relação com o tempo, nos dois casos, é completamente diferente. No primeiro caso, não há a cobrança - e a autocobrança - de que todo o tempo seja utilizado de uma maneira significativa e útil. Um certo ócio contemplativo após o período de trabalho é visto como algo saudável e mesmo necessário. O passar do tempo, nesse caso, tende a ser experimentado de forma mais lenta - sem que isso seja visto como algo incômodo e entendiante. Já no segundo caso, isto é, no contexto de frenesi que muitos de nós vivemos, há a cobrança - e a autocobrança - de que todo o tempo seja utilizado de uma maneira útil. O ócio e a contemplação, de uma forma geral, são vistos como empecilhos para uma vida significativa. O problema é que é muito difícil utilizar todo o tempo que dispomos de um forma significativa e útil - e o tédio costuma aparecer justamente quando não conseguimos ver sentido, significado e utilidade naquilo que estamos fazendo em determinado momento. O tédio normalmente se manifesta quanto temos muitas opções de coisas para fazer mas não queremos fazer nada - ou melhor, não vemos sentido em nada. Como afirma Svendsen, o tédio deve ser entendido basicamente como uma ausência, "uma ausência de significado pessoal". Quando estamos entediados, nada faz sentido, nem as opções que temos diante de nós e nem a própria vida.

O tédio é caracterizado, em geral, por uma sensação de vazio. E o que fazemos, muitas vezes, diante desta sensação? Buscamos preencher o vazio, completando aquilo que falta. Esta busca, aliás, está na base de muitas das coisas que as pessoas fazem para afastar o tédio - na verdade, para tentar afastar o tédio. Neste período de quarentena, em especial, tem circulado muitas reportagens e textos com dicas para "combater" ou "afastar" o tédio durante o isolamento social. Por exemplo, na reportagem "O que fazer no tédio - 32 dicas para ajudar na passagem do tempo" o jornalista sugere a seus leitores o engajamento em atividades como ler, pintar, colorir, fazer listas, escrever, se exercitar, etc. - tudo para "passar o tempo". Muitas outras reportagens tem apresentado "dicas" ou "sugestões" de filmes, séries, livros, cursos ou jogos para se "vencer o tédio". E de fato as pessoas tem se engajado em inúmeras atividades para escapar deste sentimento, amplamente visto e entendido como algo a ser evitado, afastado, combatido. O tédio é um inimigo a ser vencido - e vencer o tédio só é possível, segundo tais reportagens, ao nos envolvermos em atividades que façam o tempo "passar". É interessante perceber, aliás, que esse objetivo de "passar o tempo" (base da ideia de passatempo) tem tudo a ver com o tédio na medida em que "passar" o tempo implica, na verdade, em não perceber a passagem do tempo e o tédio tem relação justamente com o dar-se conta desta passagem - dizendo de outra forma: quando estamos entendiados o tempo parece durar uma eternidade, ao passo que quando estamos envolvidos com alguma atividade o tempo parece passar muito mais rapidamente. De toda forma, a busca da pessoa entendiada não é somente que o tempo passe e ela não perceba. Ela quer e deseja acima de tudo novidades. Um exemplo bizarro que ilustra bem a relação entre tédio e desejo por novidade pode ser encontrado no clássico filme do diretor David Cronenberg Crash: estranhos prazeres, lançado em 1996, que retrata um grupo de pessoas entendiadas com suas vidas e relações amorosas que encontram prazer sexual (num sentido ampliado da ideia de sexualidade) ao observarem ou participarem de acidentes de carro. Tais pessoas desejam ardentemente alguma novidade que as tirem momentaneamente de suas vidas cinzas e acabam por encontrar tal novidade nos acidentes de carros. Ainda que tal desejo possa ser visto como algo bizarro e extraordinário, ele aponta para algo comum, que é o desejo por novidades, isto é, por tudo aquilo que retire as pessoas do tédio e as devolvam a vontade e o sentido de viver. 

Mas a grande questão é saber se esta busca por novidades e atividades de fato funciona para se fugir do tédio - ou se, pelo contrário, não há fuga possível e estamos fadados a voltar ao tédio tal qual Sísifo acaba por sempre retornar à base da montanha. E a resposta mais plausível é que, de forma temporária, é sim possível escapar do tédio. Quando nos envolvemos em determinadas atividades - ou mais precisamente naquilo que Svendsen chama de "corrida desordenada às diversões e ao lazer" - conseguimos às vezes e por algum tempo escapar do vazio e da falta de sentido que caracterizam o tédio - como afirma o psicanalista Erich Fromm no livro Do amor à vida (1986), "podemos temporariamente varrer o nosso tédio para debaixo do tapete tomando um tranquilizante, ou bebendo, ou indo ao coquetel após o outro, ou brigando com nossas mulheres, ou recorrendo aos meios de comunicação de massa em busca de diversão, ou devotando-nos à atividade sexual". Mas a questão é que não conseguimos e não conseguiremos escapar definitivamente do tédio. E o motivo é que se são as novidades (algumas novidades) que nos tiram momentaneamente do tédio, em pouco tempo a novidade deixa de ser novidade e o tédio retorna. Como aponta Svendsen, "quando nos jogamos sobre tudo que é novo, é na esperança de que o novo seja capaz de ter uma função individualizante e de dotar a vida de um significado pessoal; mas tudo que é novo logo se torna velho, e a promessa de significado pessoal nem sempre é cumprida – pelo menos, não mais que apenas no momento presente. O novo sempre se transforma rapidamente em rotina, e, então, também o novo entedia, pois é sempre o mesmo" Na visão do autor não há propriamente um remédio ou uma cura para o tédio, apenas sua aceitação. Como bem aponta Svendsen ao final do livro, "é preciso aceitar o tédio como um dado incontornável, como a própria gravidade da vida. Não é uma solução grandiosa - mas não há solução para o tédio".