domingo, 30 de janeiro de 2022

Controvérsias psiquiátricas: uma breve análise da minissérie "As 24 personalidades de Billy Milligan"

Lançada em 2021 pela Netflix, a minissérie documental "As 24 personalidades de Billy Milligan" (originalmente intitulada Monsters inside: the 24 faces of Billy Milligan) narra, em quatro episódios, a bizarra história de vida de um sujeito que, supostamente, tinha 24 personalidades diferentes. Preso na década de 1970 por uma série de estupros em um campus universitário, Milligan foi avaliado por psicólogos e psiquiatras, sendo diagnosticado com o Transtorno de Personalidade Múltipla - atualmente denominado Transtorno Dissociativo da Identidade - e, por conta disso, foi absolvido de seus crimes. O documentário discute com profundidade as controvérsias relacionadas a este diagnóstico, entrevistando tanto seus defensores quanto seus críticos - caso do famoso psiquiatra Allen Frances, autor do fenomenal livro "Voltando ao normal", para quem Milligan foi um farsante que surfou nesta onda diagnóstica "epidêmica" nos Estados Unidos dos anos 70 e 80, assim como inúmeros terapeutas e psiquiatras. O caso de Milligan ajudou a consolidar e popularizar este diagnóstico, que acabou servindo de inspiração para uma série de filmes hollywoodianos como Clube da Luta, Janela secreta e Fragmentado - o que só alimentou e ampliou o imaginário em torno das tais "personalidades múltiplas", muito mais comuns no cinema do que na realidade. Se você tiver interesse em se aprofundar nesta controvérsia recomendo fortemente esta ótima minissérie.

 

Como complemento a esta pequena análise, compartilho abaixo a íntegra da seção sobre o Transtorno de Múltiplas Personalidades do capítulo 4 (Modismos do passado) do livro "Voltando ao normal: como o excesso de diagnósticos e a medicalização da vida estão acabando com a nossa sanidade e o que pode ser feito para retomarmos o controle" (originalmente intitulado Saving normal), escrito pelo psiquiatra norte-americano Allen Frances e publicado no Brasil em 2017 pela Versal Editores:

O transtorno de múltiplas personalidades (TMP) tornou-se comum na Europa na virada do século XX. Charcot mais uma vez foi quem liderou o bando. Havia ajudado a fazer da hipnose um tratamento médico popular (quando não servia também como número de mágica barata). O transe hipnótico trouxe à luz sentimentos, fantasias, lembranças e ânsias inaceitáveis ​​antes mantidas fora da consciência. Uma colaboração entre pacientes e médicos sugestionáveis ​​formulou a ideia de que o indivíduo estava acobertando uma personalidade oculta (ou talvez duas, três ou mais). Mediante um processo de “dissociação”, as múltiplas personalidades haviam estabelecido sua própria existência independente e podiam até, algumas vezes, se impor temporariamente e fazer coisas que estavam fora do controle, ou mesmo da consciência, da personalidade dominante. Essa era uma forma de converter uma metáfora de angústia e desconforto consigo mesmo em uma doença aparentemente coerente, que também reduziria qualquer responsabilidade pessoal pelos sentimentos rejeitados.

Paradoxalmente, a maneira de tratar a dissociação que supostamente causava a multiplicação da personalidade era estimular ainda mais dissociação por meio da hipnose. O objetivo era induzir as “alter” personalidades a adentrar a luz do dia para que pudessem ser fundidas em um todo coeso. Não é de se surpreender que o efeito geral do tratamento hipnótico tenha sido promover, em vez de curar, a suposta doença — as personalidades submergidas continuavam a se dividir e multiplicar. Felizmente, terapeutas e pacientes acabaram entendendo que a hipnose estava causando mais prejuízo do que benefício, e ela se tornou menos popular. O transtorno de múltiplas personalidades desapareceu quando os hipnotizadores deram lugar aos psicanalistas, que concentraram a atenção do paciente em fragmentos de lembranças e impulsos reprimidos, e não em integrar as personalidades latentes. 

Em meados da década de 1950, 
ocorreu um breve renascimento da múltipla personalidade, sugerido pela popularidade do livro e do filme As três faces de Eva. Não durou muito porque a maioria dos terapeutas estava analiticamente treinada e desinteressada no transtorno. Não havia um quadro de terapeutas a postos capaz de criar um conjunto de pacientes de TMP. Uma onda mais duradoura veio após Sybil nos anos 1970. O volume de casos de TMP começou a aumentar drasticamente; o modismo se alimentava de si mesma, chegou ao auge no início da década de 1990 e, então, desapareceu de forma tão repentinamente quanto surgira. O reaparecimento do TMP foi motivado pela renovação do interesse terapêutico na hipnose e em outros tratamentos regressivos e sugestivos destinados a fazer emergir as “alter” personalidades. Uma indústria de terapeutas nasceu em oficinas de fim de semana, onde aprendiam a melhor forma de desvelar novas personalidades. Esse exército mal treinado de entusiasmados e recém-marcados "especialistas" no transtorno criou novas personalidades em um ritmo alarmante, e o TMP se tornou o “diagnóstico du jour” padrão para todo paciente atendido.

O TMP provavelmente não é mais que uma metáfora que assumiu vida própria. A maioria dos casos (se não todos) foi induzida pelos esforços desses terapeutas bem-intencionados, mas equivocados, que tinham tão pouca noção do que estava acontecendo quanto seus pacientes. Não é tão difícil para um terapeuta sugestionável tratar um paciente sugestionável de modo a transformar qualquer problema psiquiátrico comum em TMP. O indivíduo e o médico evocam e batizam a (ou as) “alter” personalidade(s) para dar coerência a impulsos e comportamentos fragmentários e inaceitáveis, em conflito com as expectativas de si próprio. Não custa muito presumir que eles tenham existência independente. 

Durante algum tempo pareceu que, a cada três ou quatro pacientes, um alegava ter múltiplas personalidades. O modismo também foi alimentado pela capacidade da internet (então emergente) de dar informação e apoio instantâneos. À medida que crescia o número de casos de TMP, crescia também o número de personalidades por pessoa, e desenvolveu-se uma competição para determinar quem atingia a maior quantidade de “alter” personalidades. O recorde, em minha experiência, foi estabelecido por uma mulher que dizia haver desenterrado 162 personalidades distintas (a maioria femininas, mas também umas duas dúzias de masculinas), das mais variadas idades e temperamentos, e cada uma com um nome. Tudo ficava ainda mais estúpido quando alguns pacientes (e mesmo, acredite ou não, alguns terapeutas) começaram a afirmar que as múltiplas personalidades estavam, de alguma forma, relacionadas à possessão demoníaca e a rituais satânicos. 

A demanda pelo tratamento de TMP caiu quando os seguros deixaram de pagar por ele e quando os terapeutas ficaram fatigados ​​e desiludidos. Os entusiastas do transtorno perceberam que estavam abrindo uma caixa de Pandora ao induzir mais e mais personalidades. Os pacientes, em geral, pioravam de maneira progressiva, às vezes ficando muito mal, e era difícil lidar com eles no tratamento e  na vida. Atendi ao menos uma centena de pessoas que alegavam acobertar múltiplas personalidades. Quase todas se apresentaram de uma vez durante o auge da epidemia, entre o fim dos anos 1980 e início da década seguinte. Em todos os casos, descobri que as personalidades emergentes haviam assumido vida própria após o paciente começar o tratamento com um psicoterapeuta interessado no tema, entrar em um grupo de bate-papo na internet, conhecer outra pessoa com o problema ou assistir um filme que o retratava. Pergunto-me se o TMP alguma vez ocorre como uma entidade clínica espontânea – se ocorre, não pode ser muito frequente. 

O TMP apresentou um dilema para meu trabalho como presidente da força-tarefa do DSM-IV. Eu o considerava um embuste (ou, em termos mais delicados, um contágio coletivo temporário de sugestionabilidade entre médico e paciente) e com certeza não um transtorno mental legítimo. Pelo bem ou pelo mal, decidi não impor minha visão. Continuamos incluindo-o no manual e fizemos um escrupuloso esforço para apresentar ambos os lados da controvérsia da maneira mais justa e eficiente possível - muito embora eu acreditasse que um dos lados era uma completa balela. Caí em minha própria armadilha conservadora: não fazer mudanças baseadas apenas em minha opinião. Felizmente, o mundo deu uma trégua e por ora se afastou do TMP, mas eu esperaria novos surtos no futuro. A múltipla personalidade parece ter um apelo duradouro entre pacientes ​​e terapeutas sugestionáveis; encontra-se ​​latente, pronta para retornar. Estamos sempre a apenas um blockbuster cinematográfico de distância, e algumas oficinas de fim de semana, de um novo modismo. Procure o início de mais uma epidemia em 1 ou 2 décadas, quando uma nova geração de terapeutas tiver esquecido as lições do passado. 

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

"Dopesick" e os crimes da Big Pharma

Assisti na semana passada à minissérie Dopesick, premiada no último Globo de Ouro - Michael Keaton levou o prêmio de melhor ator em série limitada por ela. E gostei muito! Disponível oficialmente na Star+ (mas também, é claro, em plataformas "alternativas") esta minissérie de 8 episódios trata do escândalo do OxyContin, um potente analgésico à base de opiáceos cujos terríveis efeitos colaterais, que incluem dependência e morte por overdose, foram minimizados e escondidos pela empresa produtora, a gigante farmacêutica Purdue Pharma, através de uma série de estratégias - muito bem retratadas pela série. É possível dizer que esta droga praticamente sozinha foi a grande responsável pela chamada crise dos opiáceos nos Estados Unidos, que resultou na morte de mais de 500 mil pessoas desde seu lançamento, em 1995. A minissérie acompanha, ao estilo Spotlight, a investigação que culminou em um processo contra a empresa e ainda apresenta um mosaico de personagens que representam os diversos atores envolvidos nesta crise (médicos, usuários da droga, representantes farmacêuticos, empresários, procuradores, movimentos sociais organizados, etc). Baseada no livro Dopesick: Dealers, Doctors, and the Drug Company That Addicted America, escrito pela jornalista Beth Macy, a minissérie é uma boa introdução à esta problemática. Caso você queira saber mais sobre a crise dos opióides e o papel da Purdue Pharma recomendo ainda o documentário O crime do século, disponível na HBO Max.