segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Um famoso argumento contra o livre-arbítrio foi desmascarado


No dia 10 de Setembro de 2019, a revista The Atlantic publicou um excelente artigo da jornalista científica Bahar Gholipour denominado A Famous Argument Against Free Will Has Been Debunked. Segue a tradução amadora que fiz desse texto. Aliás, já comentei sobre sobre o assunto deste artigo em um post antigo do blog denominado Eu sou meu cérebro? Reflexões sobre liberdade e determinismo.

A morte do livre-arbítrio teve início com  milhares de leves batidas dos dedos. Em 1964, dois cientistas alemães monitoraram a atividade elétrica do cérebro de uma dúzia de pessoas. Todos os dias, durante vários meses, os voluntários iam ao laboratório de cientistas da Universidade de Freiburg para terem fios conectados ao couro cabeludo advindos de uma engenhoca semelhante a um chuveiro. Os participantes permaneciam sentados em uma cadeira situada em uma cabine de metal, e tinham que executar apenas uma tarefa: flexionar um dedo da mão direita a qualquer intervalo irregular de tempo que os agradasse, repetidamente, até 500 vezes por visita.

O objetivo deste experimento foi procurar sinais no cérebro dos participantes que precediam cada movimento do dedo. Naquele momento, os pesquisadores sabiam como medir a atividade cerebral que ocorria em resposta a eventos do mundo exterior - quando uma pessoa ouve uma música ou olha uma foto, por exemplo -, mas ninguém havia descoberto como isolar os sinais do cérebro de alguém iniciando uma ação.  

Os resultados do experimento vieram em linhas rabiscadas e pontilhadas, uma representação das mudanças nas ondas cerebrais. Nos milissegundos que antecediam os movimentos dos dedos, as linhas mostravam um aumento fraco, quase indetectável: uma onda que se elevou por cerca de um segundo, como um breve rufar de tambores neuronal, e que terminou abruptamente. Essa perturbação da atividade neuronal, que os cientistas chamaram de potencial de Bereitschafts [Bereitschaftspotential], ou potencial de prontidão, era como uma viagem infinitesimal no tempo. Pela primeira vez, eles puderam ver o cérebro se preparando para criar um movimento voluntário.

Essa importante descoberta foi o começo de muitos problemas na neurociência. Vinte anos depois, o fisiologista norte-americano Benjamin Libet usou o potencial de Bereitschafts para demonstrar não apenas que o cérebro mostra sinais de uma decisão antes da pessoa agir, mas que, incrivelmente, o mecanismo cerebral começa a se alterar antes que a pessoa tenha a intenção consciente de fazer algo. De repente, as escolhas das pessoas - mesmo um simples movimento de dedo - pareciam ser determinadas por algo fora de sua própria vontade consciente.   

A questão filosófica de se os seres humanos têm controle sobre suas próprias ações teve inicio séculos antes de Libet entrar no laboratório. Mas Libet introduziu um argumento neurológico genuíno contra o livre-arbítrio. Seu achado desencadeou uma nova onda de debates no meio científico e filosófico. E, com o tempo, suas implicações foram transformadas em tradição cultural.  

Atualmente, a noção de que nossos cérebros fazem escolhas antes mesmo de tomarmos consciência poderá aparecer em uma conversa informal em uma festa ou em uma resenha da série Black Mirror. Esta questão também tem sido tratada pelos principais veículos de jornalismo, incluindo This American Life, Radiolab e esta revista [The Atlantic]. O trabalho de Libet é freqüentemente trazido à tona por intelectuais populares como Sam Harris e Yuval Noah Harari para argumentar que a ciência teria provado que os seres humanos não são os autores de suas ações.  

Seria uma enorme façanha para um sinal cerebral 100 vezes menor que as principais ondas cerebrais resolver o problema do livre-arbítrio. Mas a história do potencial Bereitschafts tem mais uma reviravolta: pode ser algo completamente diferente.  

O potencial de Bereitschafts nunca foi concebido para se envolver em debates sobre o livre-arbítrio. Na verdade, buscou-se mostrar que o cérebro tem uma espécie de vontade [will of sorts]. Os dois cientistas alemães que o descobriram, um jovem neurologista chamado Hans Helmut Kornhuber e seu aluno de doutorado Lüder Deecke, ficaram frustrados com a abordagem científica de sua época que entendia o cérebro como uma máquina passiva que apenas produzia pensamentos e ações em resposta ao mundo exterior. Em um almoço em 1964, os dois decidiram descobrir como o cérebro trabalhava para gerar espontaneamente uma ação. “Kornhuber e eu acreditávamos no livre-arbítrio”, diz Deecke, que agora tem 81 anos e vive em Viena.  

Para realizar o experimento, a dupla teve que criar alguns truques para contornar a tecnologia limitada. Eles possuíam um computador de última geração para medir as ondas cerebrais de seus participantes, mas ele só funcionava depois que um movimento no dedo era detectado. Então, para coletar dados sobre o que acontecia no cérebro antes desse movimento, os dois pesquisadores se deram conta que podiam registrar a atividade cerebral de seus participantes separadamente em fita e depois reproduzí-las de frente para trás no computador. Essa técnica inventiva, apelidada de "média reversa" [reverse-averaging], revelou o potencial de Bereitschafts.  

A descoberta atraiu grande atenção. O ganhador do prêmio Nobel John Eccles e o proeminente filósofo da ciência Karl Popper compararam a ingenuidade do estudo ao uso de bolas deslizantes por Galileu para descobrir as leis do movimento do universo. Com um punhado de eletrodos e um gravador, Kornhuber e Deecke começaram a fazer o mesmo pelo cérebro. 
  
O que o potencial de Bereitschafts realmente significava, no entanto, era uma incógnita. Seu padrão crescente parecia refletir os dominós da atividade neural caindo um a um em uma trilha enquanto uma pessoa fazia alguma coisa. Os cientistas explicaram o potencial de Bereitschafts como o sinal eletrofisiológico envolvido no planejamento e no início de uma ação. Baseada nessa ideia estava a suposição implícita de que o potencial de Bereitschafts causava essa ação. A suposição era tão natural que, na verdade, ninguém a questionou - nem a testou.

Pesquisador da Universidade da Califórnia em San Francisco, Libet questionou o potencial de Bereitschafts de uma maneira diferente. Por que demora meio segundo ou mais entre a pessoa decidir movimentar um dedo e realmente fazê-lo? Ele repetiu o experimento de Kornhuber e Deecke, mas pediu aos participantes que observassem um aparelho semelhante a um relógio de forma que se lembrassem do momento em que tomaram a decisão. Os resultados mostraram que, enquanto o potencial de Bereitschafts começou a aumentar cerca de 500 milissegundos antes que os participantes realizassem uma ação, eles relataram sua decisão de realizar essa ação apenas cerca de 150 milissegundos antes. "O cérebro evidentemente 'decide' iniciar o ato" antes que a pessoa tenha consciência de que a decisão ocorreu, concluiu Libet.  

Para muitos cientistas, parecia implausível que nossa consciência de uma decisão fosse apenas uma reflexão posterior ilusória [illusory afterthought]. Os pesquisadores questionaram o projeto experimental de Libet, incluindo a precisão das ferramentas usadas por ele para medir as ondas cerebrais e a exatidão com que as pessoas poderiam realmente se lembrar de seu tempo de decisão. Mas falhas eram difíceis de identificar. E Libet, que faleceu em 2007, tinha tantos defensores quanto críticos. Nas décadas posteriores a seu experimento, estudo após estudo replicou sua descoberta usando tecnologias mais modernas, como a ressonância magnética funcional (fMRI). 

Mas um aspecto dos resultados de Libet passou em branco sem grandes questionamentos: a possibilidade de que o que ele estava vendo fosse exato, mas que suas conclusões fossem baseadas em uma premissa equivocada. E se o potencial Bereitschafts não causasse as ações? Alguns estudos notáveis sugeriram isso, mas eles não forneceram nenhuma pista a respeito de qual poderia ser a função do potencial do Bereitschafts. Para desmontar uma idéia tão poderosa, alguém teve que oferecer uma alternativa real.  

Em 2010, Aaron Schurger teve uma epifania. Como pesquisador do Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica de Paris, Schurger estudou as flutuações na atividade neuronal, o zumbido agitado no cérebro que emerge da oscilação espontânea de centenas de milhares de neurônios interconectados. Esse ruído eletrofisiológico contínuo sobe e desce em marés lentas, como a superfície do oceano - ou como qualquer coisa que resulte de muitas partes em movimento. “Quase todos os fenômenos naturais que eu consigo pensar se comportam dessa maneira. Por exemplo, o mercado de ações ou o clima”, diz Schurger.  

De uma forma geral, todos esses casos de dados barulhentos [noisy data] se assemelham a qualquer outro barulho desprovido de padrão. Mas ocorreu a Schurger que, se alguém alinhasse esses dados por seus pontos mais altos (tempestades, recordes de mercado) e calculasse a média inversa da maneira proposta pela abordagem inovadora de Kornhuber e Deecke, as representações visuais dos resultados pareceriam tendências de crescimento [climbing trends] (uma intensificação do clima, um aumento das ações). Não haveria nenhum propósito por detrás dessas tendências aparentes - nenhum plano prévio que causasse uma tempestade ou fortalecesse o mercado. De fato, o padrão refletiria simplesmente como vários fatores ocorreram de coincidir.

"Eu pensei: espere um minuto", diz Schurger. Se ele aplicasse o mesmo método ao ruído cerebral espontâneo que estudou, o que ele obteria? "Olhei para minha tela e vi algo parecido com o potencial do Bereitschafts". Schurger percebeu que o padrão crescente do potencial do Bereitschafts não era uma marca da intenção de um cérebro, mas algo muito mais circunstancial.  

Dois anos depois, Schurger e seus colegas Jacobo Sitt e Stanislas Dehaene propuseram uma explicação. Os neurocientistas sabem que para as pessoas tomarem qualquer tipo de decisão, nossos neurônios precisam reunir evidências para cada opção. A decisão é tomada quando um grupo de neurônios acumula uma certa quantidade de evidências. Às vezes, essa evidência vem de informações sensoriais do mundo exterior: se você estiver assistindo a neve cair, seu cérebro irá comparar o número de flocos de neve caindo contra os poucos levados pelo vento e rapidamente entenderá que a neve está se movendo para baixo. 

De acordo com Schurger o experimento de Libet não forneceu a seus sujeitos nenhuma pista externa. Para decidir quando movimentar os dedos, os participantes simplesmente agiam quando achavam melhor. Schurger argumentou que esses momentos espontâneos devem ter coincidido com o fluxo e refluxo aleatório da atividade cerebral dos participantes. Seria mais provável que eles mexessem os dedos quando o sistema motor estivesse mais próximo de um limiar para o início do movimento.  

Isso não implicaria, como Libet pensara, que o cérebro das pessoas "decidisse" mexer os dedos antes que elas percebessem. Dificilmente. Em vez disso, isso significaria que a atividade barulhenta no cérebro das pessoas às vezes declina, se não houver mais nada em que basear uma escolha, salvando-nos de uma indecisão sem fim quando confrontados com uma tarefa arbitrária. O potencial de Bereitschafts seria a parte crescente das flutuações cerebrais que tendem a coincidir com as decisões. Esta é uma situação altamente específica, não um caso geral para todas ou mesmo para muitas escolhas.  

Outros estudos recentes apóiam a idéia do potencial Bereitschafts como um sinal de quebra de simetria [symmetry-breaking signal]. Em um estudo com macacos desafiados a escolher entre duas opções iguais, uma equipe separada de pesquisadores observou que a escolha posterior de um macaco se correlacionava com sua atividade cerebral intrínseca antes que o macaco fosse apresentado às opções.  

Em um novo estudo ainda em revisão para publicação no periódico Proceedings of the National Academy of Sciences, Schurger e dois pesquisadores de Princeton repetiram uma versão do experimento de Libet. Para evitar o ruído cerebral não-intencional, eles incluíram uma condição de controle na qual as pessoas não se mexiam. Um classificador de inteligência artificial [artificial-intelligence classifier] permitiu que eles descobrissem em que momento a atividade cerebral nas duas condições divergia. Se Libet estivesse certo, isso deveria ter acontecido 500 milissegundos antes do movimento. Mas o algoritmo não conseguiu distinguir nenhuma diferença até apenas 150 milissegundos antes do movimento, quando as pessoas relataram tomar decisões no experimento original de Libet.  

Em outras palavras, a experiência subjetiva de decisão de uma pessoa - que o estudo de Libet parecia sugerir ser apenas uma ilusão - parecia coincidir com o momento real em que seus cérebros mostravam tomar uma decisão.  

Quando Schurger propôs pela primeira vez a explicação do ruído neural [neural-noise explanation], em 2012, o artigo não recebeu muita atenção externa, mas criou um burburinho na neurociência. Schurger recebeu prêmios por derrubar uma idéia de longa data. “Mostrou que o potencial Bereitschafts pode não ser o que pensávamos. Talvez ele seja, em algum sentido um artefato [artifactual] relacionado à forma como analisamos nossos dados”, diz Uri Maoz, neurocientista computacional da Chapman University.  

Para uma mudança de paradigma, o trabalho encontrou uma resistência mínima. Schurger parecia ter descoberto um erro científico clássico, tão sutil que ninguém havia notado e nenhuma quantidade de estudos de replicação poderia resolvê-lo, a menos que começassem a testar a causalidade. Agora, tanto pesquisadores que questionaram Libet quanto aqueles que o apoiaram estão deixando de basear suas experiências no potencial de Bereitschafts (As poucas pessoas que encontrei ainda defendendo a visão tradicional confessaram que não haviam lido o artigo de Schurger de 2012). 

"Isso abriu minha mente", diz Patrick Haggard, neurocientista da University College London que colaborou com Libet e reproduziu os experimentos originais.  

Ainda é possível que Schurger esteja errado. Os pesquisadores aceitam amplamente que ele esvaziou o modelo do potencial de Bereitschafts de Libet, mas a natureza inferencial da modelagem do cérebro deixa a porta aberta para uma explicação totalmente diferente no futuro. E, infelizmente, para os debates de ciência popular, o trabalho inovador de Schurger não resolve a problemática questão do livre-arbítrio, assim como o de Libet. Schurger apenas aprofundou a questão.  cérebro, ou podemos criar livremente intenções que influenciam nossas ações no mundo? O tópico é imensamente complicado, e o desmascaramento valioso de Schurger ressalta a necessidade de perguntas mais precisas e mais bem informadas. 

Tudo o que fazemos é determinado pelo encadeamento de causas e efeitos dos genes, do ambiente e das células que compõem nosso cérebro, ou podemos criar livremente intenções que influenciam nossas ações no mundo? O tópico é imensamente complicado, e o desmascaramento valioso de Schurger ressalta a necessidade de perguntas mais precisas e mais bem informadas.  

“Os filósofos debatem sobre o livre-arbítrio há milênios e eles tem avançado nesta questão. Mas os neurocientistas invadiram a questão como um elefante em uma loja de porcelana e alegaram tê-la resolvido de uma só vez”, diz Maoz. Na tentativa de colocar todos do mesmo lado, ele lidera a primeira colaboração intensiva de pesquisa entre neurocientistas e filósofos, apoiada em  7 milhões de dólares de duas fundações privadas, a John Templeton Foundation e o Fetzer Institute. Em uma conferência inaugural em março, os participantes discutiram planos para criar experimentos filosoficamente informados e concordaram unanimemente com a necessidade de definir os vários significados de "livre-arbítrio".

Fazendo isso, eles se juntam ao próprio Libet. Enquanto permaneceu firme na interpretação de seu estudo, ele achou que seu experimento não era suficiente para provar o determinismo total - a idéia de que todos os eventos são determinados por anteriores eventos, incluindo nossas próprias funções mentais. "Dado que a questão é tão fundamentalmente importante para nossa visão de quem somos, uma alegação de que nosso livre-arbítrio é ilusório deve ser baseada em evidências bastante diretas", ele escreveu em um livro de 2004. "Essa evidência não está disponível".

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Alterando o cérebro para tratar a mente: uma breve história dos psicofármacos

A história da psiquiatria, definitivamente, não é uma bela e inspiradora história, daquelas que poderíamos contar a nossos filhos antes de dormir. Na verdade, a história desta especialidade médica, assim como de toda a medicina, se assemelha muito mais a uma história de terror, daquelas que contamos à noite, ao redor de uma fogueira. Isto porque esta é uma história de todas as tentativas, em grande parte mal-sucedidas - aos olhares atuais - , de se compreender e enfrentar problemas complexos com relação aos quais não se conheciam, e continuamos sem conhecer, as causas. Grande parte destas tentativas, feitas por pessoas muitíssimo bem intencionadas e cientificamente embasadas, são hoje encaradas como atrocidades, como erros históricos, como coisas que nunca deviam ter acontecido. Pense, por exemplo, nas internações forçadas, na terapia por choque insulínico, na piroterapia por infecção de malária ou na lobotomia - todas interveções amplamente utilizadas, com aval científico, no tratamento de doenças mentais. Hoje nós encaramos tais tratamentos com um misto de descrença e horror, no entanto eles foram tentativas, não totalmente mal-sucedidas (pois as alternativas disponíveis eram muito piores), de auxiliar as pessoas acometidas por enfermidades mentais. Por outro lado, a narrativa contemporânea, utilizada por inúmeros psiquiatras - inclusive pelo ex-presidente da Associação Psiquiátrica Americana (APA) Jeffrey Lieberman no livro Psiquiatria: uma história não contada - é que todo este passado de horrores e "trevas" na Psiquiatria teria chegado ao fim com o advento dos psicofármacos no início da década de 1950. A partir de então, e por conta desta "revolução", os "loucos" foram libertos dos manicômios e a psiquiatria teria ingressado na era de ouro do tratamento dos transtornos mentais. Como afirma Lieberman, com a revolução farmacológica "pela primeira vez em sua longa e famigerada história, a psiquiatria podia oferecer tratamentos científicos humanos e eficazes para quem sofre de doença mental". Mas a grande questão, irrespondível no momento, é se daqui a 50 ou 100 anos olharemos para trás e enxergaremos a era da psicofarmacologia na psiquiatra da mesma forma como atualmente enxergamos a terapia por choque insulínico. Difícil saber... no entanto, mais de 50 anos já se passaram desde o lançamento dos primeiros remédios psiquiátricos e apesar de uma considerável parcela dos psiquiatras e da população continuarem olhando de forma positiva para os psicofármacos, alguns críticos tem apontado, de forma embasada, para significativos limites em seus efeitos assim como para inumeros e graves prejuízos decorrentes do uso contínuo e de longo prazo de tais medicações. Tratarei melhor desta questão em um post futuro; por agora, voltarei meu olhar para o passado.

Até a década de 1950 as únicas drogas que eram utilizadas com pacientes psiquiátricos eram alguns narcóticos ou sedativos potentes como a morfina, o hidrato de cloral e o brometo de sódio, que tinham como única função "dopar" o sujeito, fazendo-o adormecer. Como afirma Jeffrey Lieberman "as primeiras drogas psiquiátricas não pretendiam ser curativas ou mesmo terapêuticas - elas eram instrumentos explícitos de tranquilização. Seus efeitos colaterais assustadores só eram considerados aceitáveis porque as alternativas - cura pela febre, terapia do coma, convulsões induzidas - eram ainda piores". As primeiras drogas psiquiátricas, voltadas especificamente para o tratamento sintomático dos transtornos mentais, surgiram somente na década de 1950. Em 1952 uma dupla de psiquiatras franceses administrou, pela primeira vez, a clorpromazina em pacientes psicóticos do Hospital Sainte-Anne, em Paris. Em pouco tempo o uso dessa substância se espalhou pelos manicômios da Europa. Considerado o primeiro psicofármaco da história, a clorpromazina foi lançada em 1954 nos Estados Unidos com o nome comercial de Thorazine. Esta medicação foi a primeira da classe dos antipsicóticos ou neurolépticos, remédios voltados tanto para a diminuição da atividade psicomotora quanto para a atenuação de alguns sintomas psicóticos, como os delírios e alucinações. Para muitos autores o lançamento desta droga foi revolucionária na medida em que teria contribuído decisivamente para o fim da era manicomial na psiquiatria. Segundo Lieberman, "assim como o antibiótico estreptomicina esvaziou os sanatórios de tuberculose e a vacina contra a poliomielite tornou obsoleto o pulmão de aço, a adoção generalizada da clorpromazina marcou o início do fim dos manicômios e dos alienistas" - no entanto, cabe apontar, que até os dias atuais, os manicômios (e mais profundamente a lógica manicomial de exclusão da loucura) não desapareceram por completo, infelizmente. Um ano depois, em 1955, ocorreu o lançamento do meprobamato. Sintetizada nos Estados Unidos pelo químico tcheco Frank Berger alguns anos antes, em 1947 (daí o entendimento de alguns de que este seria, de fato, o primeiro psicofármaco), esta substância deu origem à categoria dos tranquilizantes, benzodiazepínicos ou, como chamamos hoje mais comumente, ansiolíticos. Tais remédios são voltados para a diminuição da ansiedade e, portanto, tem a função de produzir calma sem, necessariamente, fazer o paciente dormir. Especificamente no caso do meprobamato, cujo nome comercial era Miltown, apesar dos fortes efeitos colaterais, o remédio foi um sucesso, tornando-se o primeiro psicofármaco popular da história. Segundo Lieberman, "em 1956, espantosas 36 milhões de receitas do tranquilizante haviam sido expedidas; em cada três receitas expedidas no Estados Unidos, uma era de meprobamato" - situação semelhante à do ansiolítico Rivotril, nome comercial do clonazepan, que é atualmente um dos remédios mais vendidos no Brasil e no mundo. Por fim, em 1957, foi lançado o primeiro medicamento antidepressivo da classe dos Inibidores da monoaminoxidase (IMAO), a iproniazida, comercializada com o nome de Marsilid. Retirada do mercado em poucos anos devido a alguns efeitos colaterais graves, esta substância foi originalmente criada para tratar a tuberculose. Ao administrarem a droga em alguns pacientes tuberculosos os médicos perceberam uma melhora no humor e até mesmo uma certa euforia - daí resolveram testar a substância para tratar a depressão. Como bem afirma o jornalista Robert Whitaker no magnífico livro Anatomia de uma epidemia, "foram essas três drogas [clorpromazina, meprobamato e iproniazida] que desencadearam a revolução farmacológica. No curto espaço de três anos (1954-1957) a psiquiatria ganhou novos medicamentos para acalmar os pacientes agitados e maníacos nos manicômios, para a ansiedade e para a depressão". E ele acrescenta: "mas nenhuma dessas drogas foi desenvolvida depois de os cientistas identificarem algum processo patológico ou anormalidade cerebral que pudesse causar esses sintomas. Elas provieram das pesquisas pós-Segunda Guerra Mundial para encontrar pílulas mágicas contra doenças infecciosas, quando os pesquisadores, durante esse processo, tropeçaram em compostos que afetavam o sistema nervoso central de maneiras desconhecidas". Enfim, os efeitos neurais/psíquicos de tais substâncias foram descobertos por acaso, durante  pesquisas voltadas para o desenvolvimento de terapêuticas para doenças infecciosas, como a tuberculose.

Neste mesmo momento e posteriormente muitas outras medicações, e até mesmo novas classes de medicações, foram desenvolvidas. Em 1955, por exemplo, foi patenteado o metilfenidato, nome comercial da Ritalina, uma substância psicoestimulante da classe das anfetaminas. Sintetizada em 1944 na Suiça essa substância foi lançada comercialmente somente uma década depois, sendo atualmente prescrita e indicada para tratar pessoas hiperativas, especialmente crianças. Em 1958, por sua vez, foi lançado o Trofanil, nome comercial da imipramina, que foi o primeiro antidepressivo tricíclico - classe de medicação assim denominada por ter sua estrutura molecular composta por três anéis de carbono. Segundo Lieberman, tal qual o Miltown, a imipramina foi um "sucesso mundial instantâneo", sendo adotada pelo psiquiatras da Europa e dos Estados Unidos. Posteriormente muitos outros antidepressivos tricíclicos foram lançados, todos cópias da imipramina - que, para o autor, é de fato o primeiro antidepressivo, não a iproniazida. Mais à frente, na decada de 1970, pesquisadores ligados à megaempresa farmacêutica Eli Lilly desenvolveram a fluoxetina, lançada quase duas décadas depois com o nome de Prozac, e que foi o primeiro antidepressivo da classe dos inibidores seletivos de recaptação de serotonina (SSRI). Após o seu lançamento nos Estados Unidos, em 1987, o Prozac tornou-se um megasucesso farmacêutico, talvez o maior da história - e a fluoxetina, com nomes comerciais diversos, continua sendo uma das medicações mais prescritas e vendidas no mundo. Desde então se multiplicaram os nomes e marcas de psicofármacos, muito embora as substâncias-base não tenham se alterado tanto assim. E também se multiplicaram os usos equivocados e banalizados de tais medicações. Como afirma o psiquiatra norte-americano Allen Frances, coordenador da força-tarefa que elaborou o DSM-IV, no maravilhoso e necessário livro Voltando ao normal "tornamo-nos uma sociedade devoradora de comprimidos, e, com muita frequência são as pessoas erradas que estão devorando os comprimidos errados, receitados pelos médicos também errados". Em sua visão, o uso criterioso dos psicofármacos representa uma "poderosa ferramenta na psiquiatria" e também uma "dádiva para pacientes auxiliados". No entanto, com muita frequência, tais medicações tem sido utilizadas de forma "promíscua" o que, em sua visão, aproxima a medicina atual das "práticas charlatanescas dos alquimistas medievais".

Discurso circular: o que causa o que?
Em resumo: na segunda metade do século XX foram desenvolvidas praticamentes todas as classes de medicações psiquiátricas que hoje os médicos dispõem para tratar pacientes com transtornos mentais. Sem dúvida alguma o desenvolvimento de tais medicações representou um enorme avanço no tratamento das psicopatologias - especialmente ao levarmos em conta os terríveis tratamentos que eram empregados anteriormente. De uma forma geral, todas estas medicações são utilizadas com o objetivo de causar alterações no cérebro para, com isso, provocar alterações na mente e no comportamento do sujeito. No fundo, a lógica é a mesma da lobotomia, que pretendia alterar o cérebro do sujeito com o objetivo de corrigir ou curar sua mente - daí a denominação de psico-cirurgia. As diferenças entre os dois tratamentos, por outro lado, são significativas. Enquanto na lobotomia o cérebro era estruturalmente danificado através de um procedimento terrívelmente invasivo e irreversível, com as medicações se pretende provocar alterações funcionais/químicas no cérebro - muito embora cientistas já tenham encontrado algumas alterações estruturais decorrentes do uso de certas medicações. Além disso, a lobotomia trazia riscos e efeitos colaterais muito mais severos. De toda forma, o objetivo das duas terapêuticas é o mesmo: alterar o cérebro para alterar a mente do sujeito e, por consequência, o seu comportamento. A questão, especificamente sobre os medicamentos, é que ainda são desconhecidos os detalhes de seus mecanismos de ação no cérebro. Em geral, os psiquiatras sabem (ou acreditam) que tais remédios funcionam e veem seus efeitos nos pacientes embora não saibam exatamente porquê ou como funcionam. Sobre a maioria dos psicofármacos sabe-se, por exemplo, que eles alteram o nível de certos neurotransmissores, como a serotonina e a dopamina; a questão, ainda sem resposta, é de que forma o nível de certos transmissores se relacionaria com certos sintomas mentais ou comportamentais. Comumente diz-se que a depressão seria causada por um baixo nível de serotonina, mas o que afinal de contas causaria esse baixo nível de serotonina? Ainda não há uma resposta conclusiva para essa questão. Afirmar, nesse sentido que os transtornos mentais são causados por uma alteração para mais ou para menos no nível de certos neurotransmissores já se mostrou equivocado. A chamada Teoria do Desequilíbrio Químico, a despeito do que defende a indústria farmacêutica, é apenas um mito. O fato de indivíduos depressivos reagirem a remédios como a fluoxetina, que aumentam a produção de serotonina, não implica que é a baixa de serotonina que cause a depressão. Fazer tal afirmação seria como dizer que a dor de cabeça é causada por falta de aspirina ou que a timidez é causada por falta de cerveja. O fato de uma substância gerar certos efeitos não significa que é sua ausência que cause o problema. Outros fatores, desconhecidos, podem contribuir fortemente para a emergência de certas condições. Enfim, ainda há muito a ser descoberto sobre os mecanismos de ação das medicações psiquiátricas - e também, mais profundamente, sobre o funcionamento do cérebro humano. Só o que sabemos é que em sua curta história os psicofármacos representaram um significativo avanço para o tratamento dos transtornos mentais, mas ainda estão longe de serem pílulas mágicas. Os remédios ajudam sim, mas também geram uma série de prejuzos a curto e a longo prazo - e, de toda forma, não são uma panaceia para os problemas humanos. Intervir na química cerebral certamente pode ajudar em algumas situações; no entanto, como eu nunca me canso de repetir, nós somos muito mais do que nossos cérebros.