quarta-feira, 28 de agosto de 2019

O Human Brain Project (HBP) e suas promessas

No dia 24 de Julho, a revista The Atlantic publicou um excelente artigo do jornalista científico Ed Yong denominado "The Human Brain Project Hasn’t Lived Up to Its Promise". Segue a tradução que fiz desse texto, cuja versão original pode ser lida aqui. Aliás, este é o terceiro artigo de Yong que traduzo para este blog - os demais podem ser lidos aqui e aqui.

No dia 22 de julho de 2009, o neurocientista Henry Markram entrou no palco da conferência TEDGlobal em Oxford, na Inglaterra, e disse ao público que ele iria simular o cérebro humano, com toda a sua complexidade, em um computador. Seus objetivos eram elevados: "Talvez seja para entender a percepção, compreender a realidade e talvez até entender a realidade física". Sua linha do tempo era ambiciosa: "Podemos fazê-lo dentro de 10 anos e, se conseguirmos, enviaremos para o TED, em 10 anos, um holograma para falar com você”. Se o meme do cérebro galáctico existisse naquele momento, teria sido um ótimo momento para invocá-lo.

Faz exatamente 10 anos. Ele não obteve sucesso.

Pode-se argumentar que a natureza dos pioneiros é mirar longe e falar muito, e que é grosseiro destacar qualquer previsão falha quando a ciência está tão cheia delas. (os escritores de ciência brincam que os medicamentos e as tecnologias inovadoras parecem estar sempre entre cinco e dez anos de distância) Mas vale a pena revisitar as alegações de Markram por duas razões. Em primeiro lugar, as apostas eram enormes: em 2013, a Comissão Européia concedeu à sua iniciativa - o Human Brain Project (HBP) - uma assombrosa quantia de 1 bilhão de euros (valendo cerca de 1,42 bilhão de dólares na época). Em segundo lugar, os esforços do HBP e a intensa reação negativa ao projeto expuseram importantes divisões na maneira como os neurocientistas pensam sobre o cérebro e como ele deve ser estudado.

O objetivo de Markram não era criar uma versão simplificada do cérebro, mas um fac-símile gloriosamente complexo, com os neurônios constituintes, a atividade elétrica que os percorre e até mesmo os genes ligando e desligando dentro deles. Desde o início, a crítica a essa abordagem era muito difundida e, para muitos outros neurocientistas, sua estratégia de baixo para cima [bottom-up strategy] parecia implausível no limite do absurdo. As complexidades do cérebro - como os neurônios se conectam e cooperam, como as memórias se formam, como as decisões são tomadas - são mais desconhecidas do que conhecidas, e não poderiam ser decifradas em detalhes suficientes em apenas uma década. Se já é difícil mapear e simular os 302 neurônios da lombriga C. elegans, imagine só os 86 bilhões de neurônios dentro de nossos crânios. "As pessoas pensaram que era irrealista e pouco razoável como objetivo", diz a neurocientista Grace Lindsay, que está escrevendo um livro sobre a modelagem do cérebro. 

E qual foi o objetivo? O HBP não estava tentando abordar qualquer questão de pesquisa em particular, ou testar uma hipótese específica sobre como o cérebro funciona. A simulação parecia um fim em si mesma - uma resposta da superengenharia para uma pergunta inexistente, uma ferramenta em busca de um uso. Quando o Blue Brain Project, um empreendimento relacionado que Markram fundou, lançou uma simulação de 30 mil neurônios de ratos em 2015 - apenas 0,15% do minúsculo cérebro do roedor -, os críticos apontaram para esta simulação como um enorme esforço que não revelou nada de novo. Mesmo que se pudesse fazer o mesmo com o cérebro humano, por que isso deveria ocorrer? "Agora você tem um cérebro em um computador e antes você tinha um cérebro em um crânio", diz Lindsay. "E daí?"

Markram explicou que, ao contrário do que disse no TED Talk [em 2009], ele nunca pretendeu que a simulação fizesse muita coisa. Ele não queria fazer uma inteligência artificial nem passar no teste de Turing. Em vez disso, ele concebeu seu projeto como um banco de testes experimental [experimental test bed] - uma maneira de os cientistas testarem suas hipóteses sem ter que cutucar a cabeça de um animal. “Isso seria incrivelmente valioso”, diz Lindsay, mas é baseado em lógica circular. Uma simulação pode permitir que os pesquisadores testem idéias sobre o cérebro, mas essas idéias já teriam que estar muito avançadas para se submeter à simulação. “Uma vez que a neurociência estivesse 'concluída', deveríamos ser capazes de fazer tal simulação, mas ter isso como um passo intermediário parece difícil.”

“Não é óbvio para mim o que a natureza de grande escala da simulação realizaria”, acrescenta Anne Churchland, do Cold Spring Harbor Laboratory. Sua equipe, por exemplo, simula redes de neurônios para estudar como os cérebros combinam informações visuais e auditivas. "Eu poderia implementar isso com centenas de milhares de neurônios, e não está claro o que eu obteria se tivesse 70 bilhões."

Em um artigo recente intitulado “O Caso Científico das Simulações Cerebrais”, vários cientistas do HBP argumentaram que grandes simulações “provavelmente serão indispensáveis ​​para aproximar as escalas entre o nível do neurônios e o nível dos sistemas no cérebro”. Em outras palavras: os cientistas podem olhar para o porcas e parafusos de como os neurônios funcionam, e eles podem estudar o comportamento de organismos inteiros, mas eles precisam de simulações para mostrar como o primeiro cria o segundo. Os autores do artigo fizeram uma comparação com as previsões do tempo, em que uma compreensão da física e da química na escala dos bairros nos permite prever com precisão a temperatura, as chuvas e o vento em todo o mundo.

A analogia não funciona, diz Adrienne Fairhall, neurocientista da Universidade de Washington, com formação em física. Sim, simulações em larga escala são úteis para entender o clima e as galáxias, mas “os sistemas planetários não dizem respeito a nada além de si mesmos”, diz ela. “Um cérebro é construído para ser sobre outras coisas.” Isto é: ele absorve informações do mundo e move corpos humanos e animais, que então influenciam esse mundo. Quanto nós realmente aprenderíamos com um cérebro desencorporado em um jarro virtual, que não está conectado a olhos, ouvidos ou membros? "Você poderia pegar um pedaço de tecido e analisar toda sua parte física, mas não chegaria ao que realmente importa", diz Fairhall. “Biologia é tipo de coisa que tem significado. Simular um tecido é factível, não faz nenhum sentido”.

O HBP, então, está em uma posição muito estranha, criticado por ser simultaneamente grandioso e estreito demais. Nenhum dos céticos com quem eu falei estava descartando a ideia de simular partes do cérebro, mas todos sentiam que tais esforços deveriam ser conduzidos por questões de pesquisa reais. Por exemplo, Xiao-Jing Wang, da Universidade de Nova York, construiu modelos que mostram como os neurônios, se conectados de uma certa maneira, podem manter a atividade elétrica mesmo se não estiverem sendo estimulados - a essência do que chamamos de memória de trabalho, ou a capacidade de manter pensamentos. Enquanto isso, Chris Eliasmith, da Universidade de Waterloo, construiu um modelo chamado Spaun, que usa um conjunto simplificado de 2,5 milhões de neurônios virtuais para realizar cálculos aritméticos simples e resolver problemas básicos de raciocínio.

Incontáveis projetos desse tipo poderiam ter sido financiados com o dinheiro canalizado para o HBP, o que explica muito do furor em torno do projeto. Em 2014, cerca de 800 neurocientistas escreveram uma carta aberta à Comissão Européia dizendo que “o HBP não é um projeto bem concebido ou implementado e que não é adequado para ser a peça central da neurociência européia.” Um ano depois, um comitê de mediação concordou com os críticos, pedindo ao HBP para reorientar seus esforços “para um número menor de atividades adequadamente priorizadas” e reestruturar sua estrutura administrativa pouco ortodoxa .

O HBP concordou. E efetivamente se redefiniu como um projeto de software que faz a curadoria de dados existentes sobre o cérebro, fornece ferramentas para pesquisar esses dados e desenvolve simuladores que permitirão a outros projetos construir seus próprios modelos. E com o grande bolo de financiamento previsto para expirar em 2023, o artigo recente da equipe parece um pedido por mais investimento. “O desenvolvimento de simuladores cerebrais de alta qualidade requer um comprometimento de recursos a longo prazo”, escreveram eles.

É notável, todavia, que as pessoas que eu entrei em contato tenham se esforçado para nomear uma grande contribuição que o HBP fez na última década. Isso não quer dizer que tais contribuições não existam. É mais que elas não viram um retorno proporcional ao orçamento empregado no projeto, ou talvez que o HBP ainda tenha que ganhar de volta a confiança de uma comunidade que foi alienada pela publicidade exagerada [no original: hype].

Markram parece irredutível. Em um artigo recente, ele e seu colega Xue Fan situaram firmemente as simulações cerebrais dentro não apenas do campo da neurociência, mas de todo o arco da filosofia ocidental e da civilização humana. E em um comunicado por e-mail, ele me disse: “A resistência política (não científica) ao projeto realmente nos desacelerou consideravelmente, mas não nos impediu nem o fará.” Ele apontou ainda para a o fato de 140 pessoas ainda trabalharem no Blue Brain Project, para um conjunto recente de publicações positivas de cinco revisores externos e também para sua "exponenciamente crescente" capacidade para "construir modelos biologicamente precisos de regiões do cérebro cada vez maiores".

Ele não aponta nenhum prazo, desta vez, mas não há escassez de outras pessoas prontas para fazer alegações extravagantes sobre o futuro da neurociência. Em 2014, participei da principal conferência do TED em Vancouver e assisti à palestra de abertura do fundador do MIT Media Lab, Nicholas Negroponte. Em suas palavras finais, ele afirmou que em 30 anos “vamos ingerir informações. Você vai engolir uma pílula e aprender inglês. Você vai engolir uma pílula e aprender Shakespeare. E isso se dará pela corrente sanguínea. E, uma vez na corrente sanguínea, basicamente ela vai para o cérebro, e quando ela souber que está no cérebro, nas diferentes partes, vai depositá-lo no lugar certo”.

Sobre o meu ombro esquerdo, uma voz abafada sussurrou: "Uau".
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