quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Alterando o cérebro para tratar a mente: uma breve história dos psicofármacos

A história da psiquiatria, definitivamente, não é uma bela e inspiradora história, daquelas que poderíamos contar a nossos filhos antes de dormir. Na verdade, a história desta especialidade médica, assim como de toda a medicina, se assemelha muito mais a uma história de terror, daquelas que contamos à noite, ao redor de uma fogueira. Isto porque esta é uma história de todas as tentativas, em grande parte mal-sucedidas - aos olhares atuais - , de se compreender e enfrentar problemas complexos com relação aos quais não se conheciam, e continuamos sem conhecer, as causas. Grande parte destas tentativas, feitas por pessoas muitíssimo bem intencionadas e cientificamente embasadas, são hoje encaradas como atrocidades, como erros históricos, como coisas que nunca deviam ter acontecido. Pense, por exemplo, nas internações forçadas, na terapia por choque insulínico, na piroterapia por infecção de malária ou na lobotomia - todas interveções amplamente utilizadas, com aval científico, no tratamento de doenças mentais. Hoje nós encaramos tais tratamentos com um misto de descrença e horror, no entanto eles foram tentativas, não totalmente mal-sucedidas (pois as alternativas disponíveis eram muito piores), de auxiliar as pessoas acometidas por enfermidades mentais. Por outro lado, a narrativa contemporânea, utilizada por inúmeros psiquiatras - inclusive pelo ex-presidente da Associação Psiquiátrica Americana (APA) Jeffrey Lieberman no livro Psiquiatria: uma história não contada - é que todo este passado de horrores e "trevas" na Psiquiatria teria chegado ao fim com o advento dos psicofármacos no início da década de 1950. A partir de então, e por conta desta "revolução", os "loucos" foram libertos dos manicômios e a psiquiatria teria ingressado na era de ouro do tratamento dos transtornos mentais. Como afirma Lieberman, com a revolução farmacológica "pela primeira vez em sua longa e famigerada história, a psiquiatria podia oferecer tratamentos científicos humanos e eficazes para quem sofre de doença mental". Mas a grande questão, irrespondível no momento, é se daqui a 50 ou 100 anos olharemos para trás e enxergaremos a era da psicofarmacologia na psiquiatra da mesma forma como atualmente enxergamos a terapia por choque insulínico. Difícil saber... no entanto, mais de 50 anos já se passaram desde o lançamento dos primeiros remédios psiquiátricos e apesar de uma considerável parcela dos psiquiatras e da população continuarem olhando de forma positiva para os psicofármacos, alguns críticos tem apontado, de forma embasada, para significativos limites em seus efeitos assim como para inumeros e graves prejuízos decorrentes do uso contínuo e de longo prazo de tais medicações. Tratarei melhor desta questão em um post futuro; por agora, voltarei meu olhar para o passado.

Até a década de 1950 as únicas drogas que eram utilizadas com pacientes psiquiátricos eram alguns narcóticos ou sedativos potentes como a morfina, o hidrato de cloral e o brometo de sódio, que tinham como única função "dopar" o sujeito, fazendo-o adormecer. Como afirma Jeffrey Lieberman "as primeiras drogas psiquiátricas não pretendiam ser curativas ou mesmo terapêuticas - elas eram instrumentos explícitos de tranquilização. Seus efeitos colaterais assustadores só eram considerados aceitáveis porque as alternativas - cura pela febre, terapia do coma, convulsões induzidas - eram ainda piores". As primeiras drogas psiquiátricas, voltadas especificamente para o tratamento sintomático dos transtornos mentais, surgiram somente na década de 1950. Em 1952 uma dupla de psiquiatras franceses administrou, pela primeira vez, a clorpromazina em pacientes psicóticos do Hospital Sainte-Anne, em Paris. Em pouco tempo o uso dessa substância se espalhou pelos manicômios da Europa. Considerado o primeiro psicofármaco da história, a clorpromazina foi lançada em 1954 nos Estados Unidos com o nome comercial de Thorazine. Esta medicação foi a primeira da classe dos antipsicóticos ou neurolépticos, remédios voltados tanto para a diminuição da atividade psicomotora quanto para a atenuação de alguns sintomas psicóticos, como os delírios e alucinações. Para muitos autores o lançamento desta droga foi revolucionária na medida em que teria contribuído decisivamente para o fim da era manicomial na psiquiatria. Segundo Lieberman, "assim como o antibiótico estreptomicina esvaziou os sanatórios de tuberculose e a vacina contra a poliomielite tornou obsoleto o pulmão de aço, a adoção generalizada da clorpromazina marcou o início do fim dos manicômios e dos alienistas" - no entanto, cabe apontar, que até os dias atuais, os manicômios (e mais profundamente a lógica manicomial de exclusão da loucura) não desapareceram por completo, infelizmente. Um ano depois, em 1955, ocorreu o lançamento do meprobamato. Sintetizada nos Estados Unidos pelo químico tcheco Frank Berger alguns anos antes, em 1947 (daí o entendimento de alguns de que este seria, de fato, o primeiro psicofármaco), esta substância deu origem à categoria dos tranquilizantes, benzodiazepínicos ou, como chamamos hoje mais comumente, ansiolíticos. Tais remédios são voltados para a diminuição da ansiedade e, portanto, tem a função de produzir calma sem, necessariamente, fazer o paciente dormir. Especificamente no caso do meprobamato, cujo nome comercial era Miltown, apesar dos fortes efeitos colaterais, o remédio foi um sucesso, tornando-se o primeiro psicofármaco popular da história. Segundo Lieberman, "em 1956, espantosas 36 milhões de receitas do tranquilizante haviam sido expedidas; em cada três receitas expedidas no Estados Unidos, uma era de meprobamato" - situação semelhante à do ansiolítico Rivotril, nome comercial do clonazepan, que é atualmente um dos remédios mais vendidos no Brasil e no mundo. Por fim, em 1957, foi lançado o primeiro medicamento antidepressivo da classe dos Inibidores da monoaminoxidase (IMAO), a iproniazida, comercializada com o nome de Marsilid. Retirada do mercado em poucos anos devido a alguns efeitos colaterais graves, esta substância foi originalmente criada para tratar a tuberculose. Ao administrarem a droga em alguns pacientes tuberculosos os médicos perceberam uma melhora no humor e até mesmo uma certa euforia - daí resolveram testar a substância para tratar a depressão. Como bem afirma o jornalista Robert Whitaker no magnífico livro Anatomia de uma epidemia, "foram essas três drogas [clorpromazina, meprobamato e iproniazida] que desencadearam a revolução farmacológica. No curto espaço de três anos (1954-1957) a psiquiatria ganhou novos medicamentos para acalmar os pacientes agitados e maníacos nos manicômios, para a ansiedade e para a depressão". E ele acrescenta: "mas nenhuma dessas drogas foi desenvolvida depois de os cientistas identificarem algum processo patológico ou anormalidade cerebral que pudesse causar esses sintomas. Elas provieram das pesquisas pós-Segunda Guerra Mundial para encontrar pílulas mágicas contra doenças infecciosas, quando os pesquisadores, durante esse processo, tropeçaram em compostos que afetavam o sistema nervoso central de maneiras desconhecidas". Enfim, os efeitos neurais/psíquicos de tais substâncias foram descobertos por acaso, durante  pesquisas voltadas para o desenvolvimento de terapêuticas para doenças infecciosas, como a tuberculose.

Neste mesmo momento e posteriormente muitas outras medicações, e até mesmo novas classes de medicações, foram desenvolvidas. Em 1955, por exemplo, foi patenteado o metilfenidato, nome comercial da Ritalina, uma substância psicoestimulante da classe das anfetaminas. Sintetizada em 1944 na Suiça essa substância foi lançada comercialmente somente uma década depois, sendo atualmente prescrita e indicada para tratar pessoas hiperativas, especialmente crianças. Em 1958, por sua vez, foi lançado o Trofanil, nome comercial da imipramina, que foi o primeiro antidepressivo tricíclico - classe de medicação assim denominada por ter sua estrutura molecular composta por três anéis de carbono. Segundo Lieberman, tal qual o Miltown, a imipramina foi um "sucesso mundial instantâneo", sendo adotada pelo psiquiatras da Europa e dos Estados Unidos. Posteriormente muitos outros antidepressivos tricíclicos foram lançados, todos cópias da imipramina - que, para o autor, é de fato o primeiro antidepressivo, não a iproniazida. Mais à frente, na decada de 1970, pesquisadores ligados à megaempresa farmacêutica Eli Lilly desenvolveram a fluoxetina, lançada quase duas décadas depois com o nome de Prozac, e que foi o primeiro antidepressivo da classe dos inibidores seletivos de recaptação de serotonina (SSRI). Após o seu lançamento nos Estados Unidos, em 1987, o Prozac tornou-se um megasucesso farmacêutico, talvez o maior da história - e a fluoxetina, com nomes comerciais diversos, continua sendo uma das medicações mais prescritas e vendidas no mundo. Desde então se multiplicaram os nomes e marcas de psicofármacos, muito embora as substâncias-base não tenham se alterado tanto assim. E também se multiplicaram os usos equivocados e banalizados de tais medicações. Como afirma o psiquiatra norte-americano Allen Frances, coordenador da força-tarefa que elaborou o DSM-IV, no maravilhoso e necessário livro Voltando ao normal "tornamo-nos uma sociedade devoradora de comprimidos, e, com muita frequência são as pessoas erradas que estão devorando os comprimidos errados, receitados pelos médicos também errados". Em sua visão, o uso criterioso dos psicofármacos representa uma "poderosa ferramenta na psiquiatria" e também uma "dádiva para pacientes auxiliados". No entanto, com muita frequência, tais medicações tem sido utilizadas de forma "promíscua" o que, em sua visão, aproxima a medicina atual das "práticas charlatanescas dos alquimistas medievais".

Discurso circular: o que causa o que?
Em resumo: na segunda metade do século XX foram desenvolvidas praticamentes todas as classes de medicações psiquiátricas que hoje os médicos dispõem para tratar pacientes com transtornos mentais. Sem dúvida alguma o desenvolvimento de tais medicações representou um enorme avanço no tratamento das psicopatologias - especialmente ao levarmos em conta os terríveis tratamentos que eram empregados anteriormente. De uma forma geral, todas estas medicações são utilizadas com o objetivo de causar alterações no cérebro para, com isso, provocar alterações na mente e no comportamento do sujeito. No fundo, a lógica é a mesma da lobotomia, que pretendia alterar o cérebro do sujeito com o objetivo de corrigir ou curar sua mente - daí a denominação de psico-cirurgia. As diferenças entre os dois tratamentos, por outro lado, são significativas. Enquanto na lobotomia o cérebro era estruturalmente danificado através de um procedimento terrívelmente invasivo e irreversível, com as medicações se pretende provocar alterações funcionais/químicas no cérebro - muito embora cientistas já tenham encontrado algumas alterações estruturais decorrentes do uso de certas medicações. Além disso, a lobotomia trazia riscos e efeitos colaterais muito mais severos. De toda forma, o objetivo das duas terapêuticas é o mesmo: alterar o cérebro para alterar a mente do sujeito e, por consequência, o seu comportamento. A questão, especificamente sobre os medicamentos, é que ainda são desconhecidos os detalhes de seus mecanismos de ação no cérebro. Em geral, os psiquiatras sabem (ou acreditam) que tais remédios funcionam e veem seus efeitos nos pacientes embora não saibam exatamente porquê ou como funcionam. Sobre a maioria dos psicofármacos sabe-se, por exemplo, que eles alteram o nível de certos neurotransmissores, como a serotonina e a dopamina; a questão, ainda sem resposta, é de que forma o nível de certos transmissores se relacionaria com certos sintomas mentais ou comportamentais. Comumente diz-se que a depressão seria causada por um baixo nível de serotonina, mas o que afinal de contas causaria esse baixo nível de serotonina? Ainda não há uma resposta conclusiva para essa questão. Afirmar, nesse sentido que os transtornos mentais são causados por uma alteração para mais ou para menos no nível de certos neurotransmissores já se mostrou equivocado. A chamada Teoria do Desequilíbrio Químico, a despeito do que defende a indústria farmacêutica, é apenas um mito. O fato de indivíduos depressivos reagirem a remédios como a fluoxetina, que aumentam a produção de serotonina, não implica que é a baixa de serotonina que cause a depressão. Fazer tal afirmação seria como dizer que a dor de cabeça é causada por falta de aspirina ou que a timidez é causada por falta de cerveja. O fato de uma substância gerar certos efeitos não significa que é sua ausência que cause o problema. Outros fatores, desconhecidos, podem contribuir fortemente para a emergência de certas condições. Enfim, ainda há muito a ser descoberto sobre os mecanismos de ação das medicações psiquiátricas - e também, mais profundamente, sobre o funcionamento do cérebro humano. Só o que sabemos é que em sua curta história os psicofármacos representaram um significativo avanço para o tratamento dos transtornos mentais, mas ainda estão longe de serem pílulas mágicas. Os remédios ajudam sim, mas também geram uma série de prejuzos a curto e a longo prazo - e, de toda forma, não são uma panaceia para os problemas humanos. Intervir na química cerebral certamente pode ajudar em algumas situações; no entanto, como eu nunca me canso de repetir, nós somos muito mais do que nossos cérebros.

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