quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

O cérebro cria a a realidade? Uma resenha crítica do livro O verdadeiro criador de tudo

Li há alguns meses "O verdadeiro criador de tudo: como o cérebro humano esculpiu o universo como nós o conhecemos", novo livro do neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, professor e pesquisador na Universidade de Duke, nos Estados Unidos. Minha avaliação da obra é que ela começa muito bem e se perde completamente da metade em diante. Quando discorre sobre a abordagem distribuída do cérebro - oposta à localizacionista, prevalente na neurociência contemporânea - e também sobre a interessante Teoria do Cérebro Relativístico, Nicolelis se sai muitíssimo bem e traz contribuições relevantes para o entendimento do cérebro humano - muito embora ele já tenha apresentado tais visões em duas obras anteriores: "Muito além do nosso eu" e "O cérebro relativístico", escrito em parceria com o matemático Ronald Cicurel. Gosto especialmente de sua visão do cérebro como um sistema integrado, dinâmico e complexo que não pode e jamais poderá ser simulado ou reproduzido digitalmente - questão que já discuti anteriormente no post Em busca da imortalidade da mente, no qual cito, inclusive, os argumentos de Nicolelis para a impossibilidade de um upload mental. Na visão do neurocientista o cérebro, sendo um "computador orgânico", funciona de forma completamente distinta de um "computador digital", possuindo propriedades (como a plasticidade) que nunca poderiam ser simuladas por algoritmos digitais, concepção que simplesmente coloca por terra alguns dos estranhos sonhos dos chamados transhumanistas. Por outro lado, quando resolve apresentar sua visão cerebrocêntrica - também chamada de "cosmologia centrada no cérebro" - Nicolelis acaba por se perder. Na visão do neurocientista o cérebro humano está no centro do universo na medida em que ele próprio cria o universo. Sem dúvida, para existirem reflexões e estudos sobre o universo é necessário que existam humanos (com seus cérebros), mas daí dizer que o universo existe apenas na medida em que é concebido pelo cérebro humano - e pior: que o cérebro é o "verdadeiro criador de TUDO"  - trata-se, sem dúvida, uma extrapolação desmedida. Com tais afirmações, ainda que não pretenda, Nicolelis acaba por se vincular a uma perspectiva idealista, segundo a qual o mundo só existe enquanto construção mental - ou, no caso de Nicolelis, cerebral. Da metade do livro em diante o neurocientista, utilizando seu equivocado e frágil conceito de brainet - que seria uma espécie de sincronia entre os cérebros humanos - fala um pouco de tudo e se perde ainda mais. Em sua ânsia de explicar o universo, o mundo e até mesmo as sociedades através de sua teoria neurocientifica, Nicolelis acaba por se tornar vítima da própria ambição. Nos últimos capítulos Nicolelis chega ao cúmulo de pretender explicar as guerras e os genocídios pelo conceito de brainet - que, na verdade, poderia ser chamado de humanet, na medida em que aponta para relações e sincronias entre humanos e não entre cérebros isolados. Como Antonio Damásio em seu último livro A estranha ordem das coisas, Nicolelis pretende explicar o social pelo biológico, proposta extremamente equivocada - e, em última instância, reducionista. Enfim, um livro que começa muito bem e termina muito mal.

Comentários
1 Comentários

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bem visto por você e concordo plenamente! Começa muito bem e termina muito mal! Já na escolha do título começa a atrair a atenção para se querer ler o livro e a medida que avançamos vamos discordando do autor!