quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Racismo sem fim: uma resenha do livro "Eu, Tibuba: bruxa negra de Salem"

Acabei de ler "Eu, Tituba: bruxa negra de Salem", da escritora francesa Maryse Condé (ed. Rosa dos tempos, 2020). E gostei muitíssimo. A obra reconstitui ficcionalmente a trajetória de Tituba, mulher negra escravizada, nascida na Ilha de Barbados e transportada posteriormente aos Estados Unidos, e que foi uma das mulheres julgadas como bruxas nos famosos julgamentos de Salem, ocorridos em 1692 - e que inspiraram o famoso filme Bruxas de Salem, que traz Tituba como uma das personagens secundárias. A ideia da autora foi dar voz à esta personagem marginalizada e esquecida pela história, narrando em primeira pessoa não apenas os acontecimentos de Salem mas também sua vida pregressa e subsequente, desde sua concepção (consequência de um estupro) até sua morte. O que achei mais interessante (e triste) no livro é a forma como a autora, negra, retrata o absurdo que foi a escravidão. Aliás, eu acho sempre chocante lembrar como até bem pouco tempo atrás alguns seres humanos se julgaram superiores ao ponto de se considerarem donos de outros seres humanos. "Eu, Tituba" narra em detalhes toda a humilhação e violência sofridas pela personagem e por outras pessoas escravizadas, expondo de forma terrivelmente dolorosa o racismo dominante naquele momento - e que infelizmente persiste na atualidade. Eu destacaria também a forma como a autora retrata as relações de Tituba com os mortos e com as plantas e os animais, relações estas que eram frequentemente encaradas pelos brancos como provas de sua atividade como bruxa. O livro trata ainda de muitos outros temas e questões, sempre de uma forma sensível e poética. Recomendo demais!

Trecho do livro: "Eu urrava, e, quanto mais eu urrava, mais eu tinha o desejo de urrar. De urrar meu sofrimento, minha revolta, minha raiva impotente. Que mundo era aquele que tinha feito de mim uma escravizada, uma órfã, uma pária? Que mundo era aquele que me separava dos meus? Que me obrigava a viver entre pessoas que não falavam a minha língua, que não compartilhavam minha religião, num país feio, nada agradável?"

Texto escrito originalmente para meu perfil pessoal no Instagram - me segue lá: @felipestephan
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