quarta-feira, 22 de maio de 2019

Os (outros) animais tem consciência?

O que será que Nina esta pensando?
Às vezes me pego olhando para a minha cachorrinha, Nina, e pensando: o que será que se passa na mente dela? O interessante deste questionamento é que eu - e provavelmente todos os donos de cachorro - temos a mais absoluta convicção de que os cachorros tem uma mente - e portanto, uma consciência de si e do mundo; provavelmente uma consciência diferente daquela de um ser humano adulto mas ainda sim uma consciência; alguma consciência. Mas será que temos razão? Será que de fato os cachorros e os outros animais não-humanos possuem uma consciência ou algum grau de consciência? Para responder a esta questão precisamos, em primeiro lugar, definir o que afinal de contas é essa tal consciência. Pois no livro O mistério da consciência, o famoso neurocientista português Antônio Damásio apresenta uma definição simples mas interessante: consciência é "a percepção que um organismo tem de si mesmo e do que o cerca". Segundo o autor trata-se de um fenômeno privado, isto é, que somente a própria pessoa tem acesso, e que faz parte de outro processo privado que denominamos mente. A consciência é, assim, uma característica ou um ingrediente da mente - o que significa dizer que a mente pode, eventualmente, ocorrer sem consciência. Na maior parte do tempo, a mente está (ou estaria) consciente. Se não fosse assim, a vida cotidiana se tornaria impossível: seríamos apenas zumbis que vagam pelo mundo. No entanto existem situações em que mente e consciência não se "encontram". Isto acontece, por exemplo, quando estamos dormindo e sonhando: nestes momentos certamente há uma mente que sonha mas não há propriamente uma consciência. O mesmo ocorre nos casos de sonambulismo e em algumas estranhas síndromes causadas por lesões cerebrais - várias descritas por Damásio em seu livro. Em todos esses casos, as pessoas continuam com uma mente mas perdem ou diminuem a consciência de si e/ou do mundo.

Cachorro-robô atual
Mas voltemos aos animais não-humanos. Eles possuem - seguindo a definição de Damásio - alguma percepção de si mesmos e do mundo? Com relação aos cachorros eu tenho convicção de que a resposta é afirmativa, mas como eu posso ter certeza disso? E a resposta é que eu não posso e nunca terei esta certeza. Como apontei na análise que fiz do filme A chegada, não temos como saber nem mesmo se os outros seres humanos possuem uma mente e são conscientes. Como estes processos dizem respeito a experiências privadas e subjetivas, que só eu tenho acesso, eu só posso dizer com certeza que eu próprio possuo uma mente consciente. É claro que acreditamos e precisamos acreditar que as outras pessoas também possuem mentes e consciências - de outra forma, nenhuma relação humana seria possível - mas de fato nunca saberemos. Só o que podemos fazer é pressupor que há uma mente consciente com base no comportamento da pessoa - e também dos outros animais. Quando observo minha cachorrinha, por exemplo, percebo que ela reage à forma como eu me comporto e também ao meu tom de voz: quando eu chego em casa ela se excita e corre pela sala; quando eu saio de casa ela se retrai e, por vezes, chora;  quando eu faço carinho ela se contorce e vira as patas para cima; quando eu falo com um tom de voz agudo ela balança o rabo; se eu passo a falar com um tom de voz grave ela para de balançar o rabo e se afasta. E todas estas reações me fazem pensar - e acreditar - que ela de fato possui uma mente consciente, que a permite perceber o mundo ao seu redor (que me inclui), se diferenciar deste mundo (e de mim) e reagir a ele. Mas vamos supor que no futuro inventem um cachorro-robô com aparência, movimentos e reações totalmente indistinguíveis de um cachorro real. Neste caso, baseado apenas em seu comportamento, eu poderia muito facilmente me deixar convencer de que este "animal" também possui uma mente consciente. No entanto, as reações do cachorro-robô foram totalmente programadas por seus criadores, não restando qualquer espaço para a subjetividade. Se eu estaria enganado neste caso, o que me faz crer que eu não estou enganado quando pressuponho mente e consciência em um cachorro real?

Como é ser um cachorro-morcego?
Em um clássico artigo de filosofia da mente, denominado Como é ser um morcego? (que já apresentei e analisei em outro post), o filósofo Thomas Nagel aponta para a impossibilidade de compreendermos como é ser um morcego. Seu argumento é que podemos estudar o corpo e o sistema nervoso deste animal com grande profundidade mas jamais entenderemos sua experiência subjetiva - e também a de todos os outros animais, incluídos aí todos os demais seres humanos que não nós próprios. O máximo que podemos fazer é 1) pressupor que todos os animais, dos mais simples aos mais complexos, possuem algum grau de consciência; 2) tentar imaginar como esses outros seres percebem e sentem o mundo e 3) agir com base nessas pressuposições e imaginações. De fato nunca teremos completa certeza de que tais entendimentos são verdadeiros, mas a ação humana com base na hipótese da existência de subjetividade em todos animais será, sem dúvida alguma, muito mais ética e responsável do que se imaginarmos que somente nós próprios possuímos mentes e consciências. Como afirma Eric Matthews no livro Mente: conceitos-chave em filosofia, "os animais, sejam eles capazes de raciocinar ou não, certamente possuem mentes no sentido de possuir sensações de dor e prazer e não parece existir nenhuma razão para acreditar que causar dor aos animais, ou seja, infligir-lhes crueldade, seja moralmente mais justificável do que infligi-la aos seres humanos". Na contramão de certas visões antigas - como aquela disseminada pelo filósofo renascentista René Descartes, que entendia que apenas os seres humanos possuíam alma, sendo os demais animais apenas máquinas desalmadas - esta compreensão enfatiza que todos os animais, inclusive os seres humanos, possuem determinadas características em comum - como a mente e a consciência. O que nos diferencia é apenas uma questão de grau e não de qualidade ou natureza - afinal de contas, somos todos animais.

PÓS-ESCRITO (23/05/19): Em 2012, um grupo de cientistas de diferentes áreas reunidos na Universidade de Cambridge, na Inglaterra, lançou uma espécie de manifesto que ficou conhecido como Declaração de Cambridge sobre a Consciência. Este documento - cuja tradução pode ser lida aqui - defende que apesar das dificuldades fundamentais na pesquisa sobre a consciência (com destaque para a "inabilidade dos animais não humanos, e até mesmo dos humanos, em comunicar clara e prontamente os seus estados internos") já seria possível dizer, naquele momento, que os animais não humanos de fato possuem uma consciência. Para embasair esta ideia os pesquisadores apresentam, em quatro tópicos, uma série de evidências, e concluem: "A ausência de um neocórtex não parece impedir que um organismo experimente estados afetivos. Evidências convergentes indicam que animais não humanos têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência juntamente como a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos".

PÓS-ESCRITO (17/06/19): No recém-lançado livro A vida secreta dos animais, o engenheiro florestal alemão Peter Wohlleben - mesmo autor do best-seller A vida secreta das árvores - faz algumas considerações bem afinadas com as que eu fiz acima. Logo na introdução, por exemplo, ele afirma: "Talvez soe descabido dizer que um porco sente as mesmas coisas que o ser humano, mas é pouco provável que ele sinta menos dor do que nós ao se ferir. 'Opa, isso nunca foi comprovado!", talvez exclamem os cientistas. É verdade, e o fato é que nunca haverá provas cabais. Para ser mais preciso, não consigo provar nem sequer que você tem sensações iguais às minhas. Ninguém é capaz de olhar para dentro de outra pessoa e provar, por exemplo, que uma picada de agulha provoca a mesma sensação em todos os 7 bilhões de seres humanos no planeta, mas todos sabemos expressar o que sentimos, e, considerando, as informações compartilhadas, são grandes as chances de termos sensações iguais". Em outro momento o autor questiona: "A ciência já afirmou tantas vezes que os animais não tem sentimentos que essa visão acabou se tornando a mais difundida, mas não seria melhor acreditar que eles tem sentimentos e passar a evitar que sofram sem necessidade?". Na visão do autor, jamais teremos completa certeza de que os animais possuem emoções e sentimentos mas porque não dar a eles o benefício da dúvida e simplesmente acreditarmos nisso? Agir com base nesta pressuposição certamente favorecerá um tratamento mais digno a todos os animais não-humanos. Por fim, no pósfacio, ao comentar sobre as evidências científicas indiretas que apontam para processos cognitivos nos outros animais, Wohlleben afirma: "As descobertas atuais da ciência na verdade não tem surpreendido os verdadeiros amantes dos animais; apenas tem dado mais segurança para confiar em nossos próprios sentimentos em relação a eles". E acrescenta: "quando vejo pessoas negando com veemência que os animais tem sentimentos, fico com a sensação de que isto acontece um pouco por medo de que o homem possa perder sua posição especial. Ou, pior ainda, por medo de que fique mais difícil explorar os animais. Toda vez que alguém fosse comer carne ou usar qualquer produto de couro teria uma crise moral que o impediria de ir adiante. Quando pensamos que os porcos são animais sensíveis, que transmitem conhecimento a seus descendentes e depois os ajudam a parir, que atendem pelo nome e se reconhecem no espelho, trememos só de lembrar que, apenas na União Europeia, cerca de 250 milhões de suínos são abatidos todos os ano".

PÓS-ESCRITO (09/07/2019):  No livro Alex e eu: como a relação de amor entre uma cientista e um papagaio revelou os segredos da inteligência animal, a pesquisadora norte-americana Irene Pepperberg narra a sua longa relação com o famoso papagaio-cinzento Alex, falecido em 2007 aos 31 anos de idade. Na conclusão do livro a autora apresenta uma série de descobertas sobre a inteligência de aves que ela e seu grupo fizeram a partir dos inúmeros experimentos realizados com o falante Alex e tece também algumas considerações sobre a consciência dos animais não-humanos. Afirma Pepperberg: "O que essas e outras coisas que Alex fez me ensinaram? Ensinaram que ele tinha um grau de consciência que nem mesmo os behavioristas radicais poderiam negar. Será que eu posso provar isso tal como provei que Alex era capaz de marcar objetos e aprender conceitos? Não, não posso. Embora a linguagem já não seja amplamente tida como requisito para o pensamento (...) é necessária para provar que outro indivíduo é consciente. A linguagem nos permite explorar o funcionamento da mente de outro indivíduo como nenhum outro instrumento permite. Se eu tivesse perguntado a Alex 'Por que você mastigou o projeto de financiamento quando estávamos na Purdue?" ou "O que estava pensando quando mastigou os slides que deixei sobre minha mesa lá na Northwestern?", e ele tivesse respondido "Ora, eu só estava me divertindo" ou "Eu sabia que você ficaria irritadíssima com aquilo", então eu teria vislumbrado a consciência dele. Mas Alex não usava a linguagem da maneira como eu e você usamos. Sendo assim, não posso provar que ele tinha um grau de consciência. Mas a forma como se comportava era certamente sugestiva". E ela conclui, de forma brilhante: "Alex me ensinou a acreditar que seu pequeno cérebro de pássaro era de alguma maneira consciente, ou seja, capaz de intencionalidade. Extrapolando, posso dizer que Alex me ensinou que o mundo em que vivemos é povoado de criaturas pensantes e conscientes. Não humanamente pensantes. Não humanamente conscientes. Mas nem por isso são autônomos sem mente que vagam como zumbis".
Comentários
2 Comentários

2 comentários:

Gilberto disse...

Oi, vc escreveu, "No entanto, as reações do cachorro-robô foram totalmente programadas por seus criadores, não restando qualquer espaço para a subjetividade".

Só comentando, um programa pode ter subjetiidades sim. Nem tudo em AI é pré-progamado, pois há sistemas que aprendem sozinhos, evoluem sozinhos para situações que os programadores não tinham a menor idéia de que isso iria acontecer.

Mas é legal a sua preocupação com o bem estar dos animais.

Felipe Stephan Lisboa disse...

Prezado Gilberto, o fato de um programa de computador ter uma certa autonomia não significa que ele tem uma subjetividade. São coisas muito diferentes. Subjetividade implica em mente e consciência e programas criados por humanos não possuem tais atributos. Discuti mais profundamente sobre isso na análise que fiz do filme Ex Machina. Veja no link: https://psicologiadospsicologos.blogspot.com/2017/06/ex-machina-e-o-teste-de-turing.html