sábado, 19 de setembro de 2020

A mente não está presa no cérebro e se estende para muito além dele

Compartilho abaixo a tradução que fiz do artigo The mind isn’t locked in the brain but extends far beyond it, publicado no site AEON no dia 7 de Julho de 2016 pelo filósofo e escritor Keith Frankish.

Onde está sua mente? Onde seu pensamento ocorre? Onde estão suas ideias? René Descartes pensava que a mente era uma alma imaterial, alojada na glândula pineal perto do centro do cérebro. Hoje em dia, pelo contrário, tendemos a identificar a mente com o cérebro. Sabemos que os processos mentais dependem dos processos cerebrais e que diferentes regiões cerebrais são responsáveis ​​por diferentes funções. No entanto, ainda concordamos com Descartes em uma coisa: ainda pensamos na mente como sendo (em uma expressão cunhada pelo filósofo da mente Andy Clark) limitada pelo cérebro [brainbound], isto é, como algo trancado na cabeça e que se comunica com o corpo e com o mundo, mas que se mantém separada destes. E isso pode estar muito errado. Eu não estou sugerindo que a mente não seja física ou duvidando que o cérebro seja central para sua existência; mas pode ser que (como Clark e outros argumentam) a mente se estenda para além do cérebro.

Para começar, há fortes motivos para se pensar que muitos processos mentais são essencialmente corporificadosA visão da mente como limitada ao cérebro [brainbound] retrata o cérebro como um poderoso executivo, planejando cada aspecto do comportamento e enviando instruções detalhadas aos músculos. Mas, como o trabalho em robótica demonstrou, existem maneiras mais eficientes de fazer as coisas, que a natureza quase certamente emprega. Os robôs mais biologicamente realistas já concebidos executam padrões básicos de movimento natural em virtude de sua dinâmica passiva, sem o uso de motores e comandos. O controle inteligente é alcançado através do monitoramento e da melhoria contínuos desses processos corporais, dividindo a tarefa de controle entre o cérebro e o corpo. De forma semelhante, ao invés de coletar passivamente informações para construir um modelo interno detalhado do mundo externo, é mais eficiente para o sistema de controle continuar ativamente sondando o mundo (para "usar o mundo como seu próprio modelo", aponta o roboticista Rodney Brooks), coletando apenas informações suficientes a cada momento para avançar na tarefa em questão. Essa estratégia depende essencialmente da atividade corporal.

Além de incorporados, os processos mentais também podem ser estendidos, de forma a incorporarem artefatos externos. Clark e seu colega David Chalmers, ambos filósofos da mente, propõem o que desde então ficou conhecido como Princípio da Paridade, que diz que se um artefato externo desempenha uma função que consideraríamos mental se ocorresse dentro da cabeça, então o artefato é (temporariamente) uma parte genuína da mente do usuário. Para ilustrar isso, Clark e Chalmers descrevem duas pessoas, cada uma tentando descobrir onde várias peças se encaixam em um quebra-cabeça. Uma delas faz isso em sua cabeça, formando e girando imagens mentais das peças, enquanto a outra pressiona um botão para girar as peças em uma tela. Como o primeiro processo é entendido como mental, o segundo também deveria ser, argumentam Clark e Chalmers. O que importa é o que o objeto faz, não onde ele está localizado. (Compare com uma máquina de diálise portátil, que se torna parte do sistema excretor de uma pessoa). A lógica é a mesma daquela usada para identificar a mente com o cérebro - e não com a alma; a mente é tudo o que executa funções mentais.

A linguagem é um meio particularmente poderoso de extensão e aprimoramento, servindo, nas palavras de Clark, como um andaime que permite ao cérebro biológico realizar coisas que ele não poderia fazer por conta própria. Os símbolos linguísticos fornecem novos focos de atenção, permitindo-nos registrar características do mundo que de outro modo não conseguiríamos fazer, e também fornecem sentenças estruturadas que revelam relações lógicas e semânticas, permitindo-nos desenvolver novos e mais abstratos procedimentos de raciocínio. Com uma caneta ou um notebook, podemos construir esquemas aprofundados de pensamento e raciocínio que nunca poderíamos conceber somente com nossos cérebros. Ao escrever, não estamos simplesmente registrando nossos pensamentos, mas construindo nossos pensamentos. (Como o físico Richard Feynman observou certa vez: 'Eu de fato fiz o trabalho no papel.').

Clark e Chalmers propõem que os 
estados mentais
, como as ideias, também podem ser localizados externamente. Eles imaginam um personagem, Otto, que tem a Doença de Alzheimer e usa um caderno para registrar as informações de que precisa para orientar suas atividades diárias. Quando precisa se lembrar de um endereço, Otto consulta seu caderno ao invés de sua memória biológica - e Clark e Chalmers sugerem que o caderno literalmente contém sua ideia sobre o endereço. O caderno funciona como uma memória externa (tal qual um pen drive) conectada ao resto da mente de Otto por meio de uma relação perceptiva. Clark e Chalmers enfatizam que esta conexão deve ser suficientemente forte para que o caderno tenha este status: Otto deve carregar o caderno constantemente consigo, deve poder acessar seu conteúdo facilmente e deve confiar no que está escrito nele (desta maneira, os conteúdos dos livros guardados nas prateleiras da casa de Otto não podem ser entendidos como ideias de sua mente). 
Claro, as ideias armazenadas no caderno de Otto não são conscientes (até que Otto as consulte), mas nem o são as ideias armazenadas em nossos cérebros até que as convoquemos à mente.

Como observa o filósofo da mente Daniel Dennett, muitos idosos estão na posição de Otto, contando com uma série de dicas espalhadas pela casa para orientá-los em suas rotinas diárias, lembrando-os do que fazer, quando e como. À medida que suas memórias falham, eles transferem esse trabalho para o ambiente externo, e retirá-los de suas casas, como Dennett afirma no livro Tipos de mentes (1996), "é literalmente separá-los de grandes partes de suas mentes - [algo] potencialmente tão devastador como sofrer uma cirurgia cerebral".

Você talvez esteja se perguntando por que devemos pensar em mentes 
que se extendem para corpos e artefatos, ao invés de meramente dizer que as mentes interagem com eles. Isso faz alguma diferença? Uma resposta possível é que, nos casos descritos, cérebro, corpo e mundo não estão agindo como sistemas interativos separados, mas como um único sistema acoplado, fortemente entrelaçado por complexas relações de feedback, e que precisamos olhar para o todo a fim de compreender como o processo se desenrola (é importante notar, também, que o próprio cérebro é uma coleção de subsistemas acoplados).

Naturalmente, pensamos que estamos situados em nossas cabeças. Mas isso é por causa de como nossos sistemas perceptivos modelam o mundo e nossa localização nele (refletindo a localização de nossos olhos e ouvidos), mas não porque nossos cérebros estejam lá. Imagine (se não for muito assustador) ter seu cérebro vivo removido temporariamente do crânio, mantendo-se as conexões nervosas intactas, de forma que você possa segurá-lo e olhá-lo. Você [isto é, o seu "eu] ainda pareceria estar em sua cabeça, embora seu cérebro estivesse em suas mãos.

Se a mente não é limitada pelo cérebro ou pela pele, até onde ela vai? Qual é seu limite? A resposta curta é que não existe um limite - pelo menos não um limite estável. A mente se expande e se encolhe. Às vezes (no pensamento silencioso, por exemplo) a atividade mental está confinada ao cérebro, mas frequentemente ela se espalha pelo corpo e pelo mundo externo. A mente é uma coisa escorregadia, que não pode ser contida.

Comentários
1 Comentários

Um comentário:

A pensadora disse...

Isso que chamo de um texto cabeça.

www.sramaia.blogspot.com