Dando continuidade à discussão introduzida no post anterior, compartilho abaixo a tradução que fiz do ensaio Are ‘you’ just inside your skin or is your smartphone part of you? publicado no dia 26 de Fevereiro de 2018 no site AEON pela Karina Vold, pesquisadora do Leverhulme Centre for the Future of Intelligence da Universidade de Cambridge.
Em novembro de 2017, um homem armado entrou em uma igreja em Sutherland Springs, no Texas, e matou 26 pessoas, ferindo outras 20. Ele fugiu em seu carro, com policiais e moradores no seu encalço, antes de perder o controle do veículo e cair em uma vala. Quando a polícia chegou ao carro, ele já estava morto. Esse episódio já seria terrível o suficiente sem sua conclusão perturbadora: no decorrer de suas investigações, o FBI supostamente pressionou o dedo do atirador no recurso de reconhecimento de impressão digital de seu iPhone para tentar desbloqueá-lo. Independentemente de quem foi afetado, é inquietante pensar na polícia usando um cadáver para invadir a vida digital de uma pessoa após sua morte.
A maioria das constituições democráticas nos protege de violações indesejadas em nosso cérebro e corpo. Elas também consagram nosso direito à liberdade de pensamento e privacidade mental. É por isso que drogas neuroquímicas que interferem no funcionamento cognitivo não podem ser administradas contra a vontade de uma pessoa, a menos que haja uma justificativa médica clara. Da mesma forma, de acordo com o entendimento acadêmico, os responsáveis pela aplicação das leis não podem obrigar alguém a fazer um teste de detector de mentiras, porque isso seria uma invasão de privacidade e uma violação do direito de permanecer em silêncio.
Mas na atual era de tecnologia onipresente, os filósofos estão começando a se perguntar se a anatomia biológica realmente captura a totalidade de quem somos. Dado o papel que desempenham em nossas vidas, nossos dispositivos merecem as mesmas proteções que nossos cérebros e corpos?
Afinal de contas, seu smartphone é muito mais do que um telefone. Ele pode contar uma história mais íntima sobre você do que seu melhor amigo. Nenhum outro dispositivo na história, nem mesmo o seu cérebro, contém a qualidade ou a quantidade de informações contidas no seu smartphone: ele 'sabe' com quem você fala, quando fala, o que você disse, onde você esteve, suas compras, fotos, dados biométricos, até mesmo suas anotações para você mesmo - e ele faz tudo isso já há alguns anos.
Em 2014, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos usou essa observação para justificar a decisão de que a polícia deve obter um mandado antes de vasculhar nossos smartphones. Esses dispositivos "são agora uma parte tão arraigada da vida cotidiana que um visitante de Marte poderia concluir que eles são uma característica fundamental da anatomia humana", observou o presidente do tribunal John Roberts em sua decisão.
O presidente do tribunal provavelmente não estava se utilizando de um argumento metafísico - mas os filósofos Andy Clark e David Chalmers o fizeram quando argumentaram em 'The Extended Mind' (1998) que a tecnologia é, na verdade, parte de nós. De acordo com a ciência cognitiva tradicional, 'pensar' é um processo de manipulação de símbolos ou computação neural, que é executado pelo cérebro. Clark e Chalmers aceitam amplamente essa teoria computacional da mente, mas afirmam que certos dispositivos podem se integrar perfeitamente à maneira como pensamos. Objetos como smartphones ou blocos de notas são muitas vezes tão funcionalmente essenciais para nossa cognição quanto as sinapses disparando em nossas cabeças. Eles aumentam e estendem nossas mentes ao ampliar nosso poder cognitivo e libertar nossos recursos internos.
Se aceita, a tese da mente estendida [extended mind] ameaça algumas suposições culturais arraigadas sobre a natureza inviolável dos nossos pensamentos, que estão no cerne da maioria das normas legais e sociais. Como a Suprema Corte dos Estados Unidos declarou em 1942: "a liberdade de pensamento é absoluta por sua própria natureza; mesmo o governo mais tirânico não tem o poder de controlar o funcionamento interno da mente". Essa visão tem sua origem em pensadores como John Locke e René Descartes, que argumentaram que a alma humana está presa em um corpo físico, mas que nossos pensamentos existem em um mundo imaterial, inacessível a outras pessoas. A vida interior de uma pessoa, portanto, precisa ser protegida apenas quando é externalizada, por exemplo, por meio da fala. Muitos pesquisadores da ciência cognitiva ainda estão apegados a essa concepção cartesiana - com a diferença de que, atualmente, entendem o domínio privado do pensamento como algo relacionado à atividade cerebral.
As instituições jurídicas atuais, contudo, estão lutando contra esse conceito estreito da mente. Estão tentando entender como a tecnologia está mudando o que significa ser humano e criar novos limites normativos para lidar com esta realidade. O juiz Roberts pode não conhecer a ideia da mente extendida, mas ela corrobora sua irônica observação de que os smartphones se tornaram parte de nosso corpo. Se nossas mentes agora incluem nossos telefones, então somos essencialmente ciborgues: parte-biologia e parte-tecnologia. Levando-se em conta como nossos smartphones assumiram o que antes eram funções de nossos cérebros - lembrar datas, números de telefone, endereços - talvez os dados que eles contêm devam ser tratados da mesma forma que as informações que temos em nossas cabeças. Portanto, se a lei visa proteger a privacidade mental, seus limites precisariam ser estendidos para garantir à nossa anatomia ciborgue as mesmas proteções que nossos cérebros.
Essa linha de raciocínio leva a algumas conclusões potencialmente radicais. Alguns filósofos argumentaram que, quando morremos, nossos dispositivos digitais devem ser tratados como restos mortais: se seu smartphone faz parte de quem você é, então talvez ele deva ser tratado mais como um cadáver do que como um objeto qualquer. Da mesma forma, pode-se argumentar que danificar o smartphone de alguém deveria ser entendido como uma forma "estendida" de agressão, isto é, como algo equivalente a um golpe na cabeça ao invés de simplesmente um dano à uma propriedade. Se suas memórias são apagadas porque alguém o atacou com um porrete, o tribunal não teria problemas em caracterizar o episódio como um incidente violento. Da mesma forma, se alguém quebrar seu smartphone e limpar seu conteúdo, talvez o agressor deva ser punido como ele seria se tivesse causado um traumatismo craniano.
A tese da mente estendida também desafia o papel da lei na proteção tanto dos conteúdos quanto das formas de pensamento - isto é, no resguardo do que e como pensamos a partir de influências indevidas. A legislação impede a interferência não consensual em nossa neuroquímica (por exemplo, por meio de drogas), porque isso interfere no conteúdo de nossa mente. Mas se a cognição engloba dispositivos, então, sem dúvida, eles deveriam estar sujeitos às mesmas proibições. Talvez algumas das técnicas que os anunciantes se utilizam para capturar nossa atenção online, de modo a influenciar nossa tomada de decisão ou manipular resultados de pesquisa, devam contar como intrusões em nosso processo cognitivo. De maneira semelhante, em locais onde a lei protege as formas de pensamento, pode ser necessário garantir o acesso a ferramentas como smartphones - da mesma forma como a liberdade de expressão protege o direito das pessoas não somente para escrever ou falar, mas também para utilizar computadores e disseminar discursos pela internet.
Os tribunais ainda estão longe de chegar a essas decisões. Além dos casos de atiradores em massa que estão nas manchetes, há milhares de casos a cada ano no qual as autoridades policiais tentam obter acesso a dispositivos criptografados. Embora a Quinta Emenda da Constituição dos Estados Unidos proteja o direito dos indivíduos de permanecerem calados (e, portanto, de não fornecerem suas senhas), juízes em diversos estados decidiram que a polícia pode forçar o indivíduo a fornecer suas impressões digitais para desbloquear o telefone (Com o novo recurso de reconhecimento facial do iPhone X, a polícia pode fazer a pessoa simplesmente olhar para o telefone). Essas decisões refletem o conceito tradicional de que os direitos e liberdades de um indivíduo vão até o limite de sua pele.
No entanto, o conceito de direitos e liberdades pessoais que norteia nossas instituições jurídicas está desatualizado. Ele foi construído com base no modelo de um indivíduo livre que desfruta de uma vida interior intocável. Agora, porém, nossos pensamentos podem ser invadidos antes mesmo de serem desenvolvidos - e de certa forma, talvez isso não seja nada novo. O físico, vencedor do Prêmio Nobel, Richard Feynman costumava dizer que pensava com seu caderno. Sem uma caneta e um lápis, muitas reflexões e análises complexas nunca teriam sido possíveis. Se a visão da mente estendida estiver certa, então mesmo tecnologias simples como essas mereceriam reconhecimento e proteção como partes do kit de ferramentas essencial da mente.