sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Humildade e insegurança são características de um bom terapeuta

Compartilho abaixo a tradução que fiz do interessante artigo Humility and self-doubt are hallmarks of a good therapist, publicado no site AEON no último dia 5 de Fevereiro pela professora e pesquisadora de psicologia clínica da Universidade de Oslo Helene Nissen-Lie. OBS: optei por traduzir self-doubt por insegurança em função da tradução literal, auto-dúvida (no sentido de dúvidas sobre a própria capacidade) não ser comumente utilizada em português. 

"O problema do mundo é que os tolos e fanáticos estão sempre seguros de si e as pessoas mais sábias cheias de dúvidas." Esse fenômeno - observado na década de 1930 pelo filósofo inglês Bertrand Russell - tem um nome técnico, o efeito Dunning-Krüger. Este efeito diz respeito à tendência de as pessoas com os piores desempenhos superestimarem a própria performance, enquanto aquelas com os melhores desempenhos subestimarem a si mesmas. O paradoxo de Dunning-Krüger foi encontrado em ambientes acadêmicos e empresariais, mas e no contexto da psicoterapia? É melhor ter um terapeuta confiante ou alguém com inseguranças?

Infelizmente, a auto-avaliação dos psicoterapeutas também é tendenciosa. Quando solicitados a classificar seus próprios desempenhos na psicoterapia, os terapeutas tendem a se superestimar. Além disso, como apontou um estudo, o excesso de confiança era mais típico daqueles terapeutas classificados como menos competentes por um avaliador independente. Em contraste, outros estudos descobriram que são os terapeutas que se avaliam mais negativamente que geralmente são considerados os mais competentes por especialistas independentes.

Inspirado por essas descobertas, um estudo alemão recente comparou as estimativas dos terapeutas sobre o progresso de seus clientes com a melhora real destes com a terapia. Os resultados fornecem a evidência mais convincente até o momento da humildade como uma virtude terapêutica. Quanto mais modesta ou conservadora a estimativa de um terapeuta sobre o progresso de seus clientes, mais os sintomas destes diminuíam e a qualidade de vida aumentava.


Tais achados ajudam a explicar o resultado de uma série de estudos de psicoterapia naturalista que meus colegas e eu conduzimos recentemente, nos quais avaliamos a contribuição de inúmeras variáveis ​​do terapeuta para os resultados da terapia. Uma descoberta em particular se destacou: os terapeutas com pontuações mais altas em insegurança profissional (por exemplo, aqueles que não tinham confiança de que poderiam ter efeitos benéficos sobre os clientes e se sentiam inseguros sobre a melhor maneira de lidar eficazmente com determinada pessoa) tendem a receber classificações mais positivas de seus clientes em termos da aliança terapêutica (isto é, da qualidade do relacionamento entre terapeuta e cliente) e dos resultados da terapia. Essa descoberta nos surpreendeu a princípio. Acreditávamos que menos - e não mais - insegurança seria algo benéfico para o cliente. No entanto, o resultado faz todo sentido à luz das pesquisas anteriores que mostraram os benefícios da humildade do terapeuta.

A disposição para ouvir o outro provavelmente é central para explicar por que a humildade é benéfica. Uma atitude humilde também pode ser necessária para que os terapeutas estejam abertos ao feedback sobre o progresso real de seus clientes, em vez de apenas supor que tudo está indo bem ou culpar o cliente pela falta de progresso. A humildade também pode dar aos terapeutas a disposição para se auto-corrigir quando necessário e motivá-los a se envolver em 'uma prática deliberada' (que visa melhorar suas habilidades com base no monitoramento cuidadoso do desempenho e no recebimento de feedback). Referindo-se a suas próprias descobertas, bem como a pesquisas sobre 'terapeutas mestres' (terapeutas considerados especialmente competentes por seus pares), Michael Helge Rønnestad, da Universidade de Oslo, e Thomas Skovholt, da Universidade de Minnesota - ambos especialistas no desenvolvimento de psicoterapeutas - sintetizaram assim em seu livro The Developing Practitioner: Growth and Stagnation of Therapists and Counsellors  (2013): 'A humildade parece ser uma característica dos experts [em psicoterapia] em muitos estudos'.

Outras evidências da importância da humildade para a psicoterapia vem de pesquisas sobre a "humildade cultural" dos terapeutas. Adotar uma abordagem culturalmente humilde significa buscar uma postura curiosa, sem julgamentos e sensível ao que a identidade cultural dos clientes significa para eles (no caso de etnia, religião, fé, orientação sexual ou identidade de gênero) e inseri-la no trabalho terapêutico. Há um crescente corpo de evidências ligando a humildade cultural à eficácia terapêutica, com clientes que veem seus terapeutas como mais humildes culturalmente tendendo a alcançar melhores resultados.

A humildade é um componente paradoxal da expertise? Na verdade, não: um expert (ou especialista) é, antes de tudo, alguém que continua aprendendo - e isso parece se aplicar tanto aos psicoterapeutas quanto a outras profissões. Como Joshua Hook, psicólogo da Universidade do Norte do Texas e co-autor de Cultural Humility (2017), e seus colegas afirmaram recentemente: “Por seu próprio valor, a humildade pode parecer o oposto da experiência, mas argumentamos que a humildade é fundamental [para se alcançar a excelência clínica]". Tomadas em conjunto, as crescentes evidências dos benefícios da humildade do terapeuta apoiam a observação do filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard, que escreveu em 1859 que "toda ajuda verdadeira começa com a humildade".

No entanto, a humildade do terapeuta por si só não é suficiente para que a terapia seja eficaz. Em nosso último estudo, avaliamos o quanto os terapeutas tratam a si mesmos de maneira gentil e com perdão em suas vidas pessoais (ou seja, relatam mais 'auto-aceitação' [self-affiliation]) e em suas percepções de si mesmos em termos profissionais. Previmos que o nível de auto-aceitação pessoal dos terapeutas aumentaria o efeito que a insegurança profissional tem sobre a mudança terapêutica. Nossa hipótese foi apoiada: os terapeutas que relataram mais inseguranças em seu trabalho aliviam mais o sofrimento do cliente se eles também relatam ser gentis consigo mesmos fora do trabalho (em contraste, os terapeutas que obtiveram pontuação baixa em insegurança e elevada em auto-aceitação contribuíram menos para a mudança).

Interpretamos esse achado de forma a sugerir que uma postura autocrítica benigna é benéfica para o terapeuta, mas que o autocuidado e o autoperdão sem a autocrítica reflexiva não são. A combinação de auto-aceitação e dúvida profissional parece abrir caminho para uma atitude aberta e auto-reflexiva que permite aos psicoterapeutas respeitar a complexidade de seu trabalho e, quando necessário, corrigir o curso terapêutico para ajudar os clientes de maneira mais eficaz.


O que tudo isso significa? Em uma época em que as pessoas tendem a pensar que o valor está baseado no quão confiantes elas são e que elas devem "vender" a si próprias em todas as situações, a descoberta de que a humildade do terapeuta é uma virtude subestimada e um ingrediente paradoxal da experiência pode ser um alívio. Certamente eu descobri que os achados sobre a importância da humildade tem ressonância com os terapeutas, muitos dos quais demonstram ceticismo com relação aos profissionais excessivamente confiantes no campo psicoterapêutico e em outros campos. Agora precisamos incorporar a mensagem de que a humildade é uma qualidade importante do terapeuta no treinamento e na supervisão. Parte disso envolverá uma mudança cultural, para que terapeutas qualificados possam agir como modelos de humildade para clientes e estudantes, sem medo de perder o respeito ou a autoridade.
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