terça-feira, 19 de abril de 2022

Carl Hart em busca da felicidade: uma resenha do livro "Drogas para adultos"

Alguns anos após narrar sua trajetória de vida e tecer excelentes (e críticas) reflexões sobre a política de guerra às drogas no livro "Um preço muito alto", de 2014, Carl Hart volta essa temática no controverso "Drogas para adultos", lançado em 2021 nos Estados Unidos e, ao final deste mesmo ano no Brasil, pela editora Zahar. Para quem não o conhece Carl Hart é um neurocientista norte-americano, professor dos departamentos de psicologia e psiquiatria na conceituada Universidade Columbia, em Nova Iorque, e autor de uma já considerável obra sobre o tema do uso de drogas, que inclui os dois livros mencionados. Mas para além de suas credenciais acadêmicas é preciso ressaltar a honestidade e a coragem do neurocientista em expor sua história e visão sobre este tema espinhoso, algo que fica bastante claro em seu novo livro. Em "Drogas para adultos" o neurocientista retoma algumas das questões já tratadas em "Um preço muito alto", mas vai além, especialmente ao expor e discutir com franqueza seu próprio uso recreativo de drogas assim como o uso por "adultos responsáveis" de uma forma geral. O livro, aliás, tem início com uma sentença bombástica: "Sou um usuário não apologista de drogas. Usar drogas faz parte da minha busca pela felicidade, e elas funcionam. Sou uma pessoa mais feliz e melhor por causa delas". Na visão de Hart o uso de drogas (de todas as drogas) é um direito individual inalienável que os governos deveriam proteger - e não combater. E isto porque as drogas, para o autor, compõem o rol de atividades que os seres humanos recorrem (e tem o direito de recorrer) para se sentirem bem e buscarem a felicidade. Além disso, segundo ele, as drogas não causariam tantos prejuízos quanto como comumente se advoga: para a grande maioria dos casos o uso de drogas causaria pouco ou nenhum dano, sendo o uso responsável até mesmo benéfico para a saúde e o funcionamento humanos. O autor defende, nesse sentido, a importância dos usuários recreativos saírem do armário e admitirem publicamente o uso, de forma que gradualmente vá se quebrando a visão comumente disseminada do usuário de drogas como alguém desleixado e irresponsável. E Hart dá o exemplo e admite ser, ele próprio, usuário recreativo de inúmeras drogas, em especial de heroína, sua droga favorita. Por este breve resumo dá pra se ter uma ideia do caráter controverso deste livro, que se coloca na contramão de grande parte do discurso "comum" sobre drogas.

De minha parte, considero a obra importante e mesmo necessária, especialmente por descortinar os equívocos e hipocrisias envolvidos nas discussões e políticas sobre drogas. No entanto, embora eu não seja um especialista no assunto, entendo que o autor não dá a devida atenção a alguns tópicos - por exemplo, à questão da dependência. Embora os dados indicados por Hart apontem que a maioria dos usuários de drogas não se torna dependente, um percentual significativo destes (entre 10 e 30%) se tornará. Neste sentido, a diferenciação implícita estabelecida por ele entre usuários responsáveis e usuários "irresponsáveis" (que seriam os dependentes), se torna estranha para mim. Como diferenciar um do outro e, especialmente, como evitar que o usuário responsável se torne dependente? Não me parece que Hart tenha conseguido responder ou lidar com tais questões à contento. Mas é claro que concordo fortemente com ele que a saída para lidar seja com o uso recreativo seja com a dependência não é, definitivamente, a criminalização - que além de não diminuir o uso, o abuso e a dependência de drogas ainda contribui para a expansão da violência e da população carcerária, majoritariamente pobre e negra. Da mesma forma concordo 100% com a defesa da legalização de todas as drogas, na medida em que tal política provavelmente resolveria o gravíssimo problema do uso de drogas de má qualidade (isto é, drogas misturadas com outras substâncias), que geram uma série de problemas de saúde e mortes. E eu concordo ainda que as drogas podem gerar tanto efeitos negativos quanto positivos, a depender, é claro, de uma série de fatores como a dosagem, a via de administração e o "set e setting", conceitos que dizem respeito às características individuais e ao ambiente físico e social onde o uso ocorre - fatores esses que são muito mais determinantes para os efeitos subsequentes do que as substâncias em si. As drogas, no meu entendimento, não devem ser vistas nem como anjos e nem como demônios, mas apenas como algo que as pessoas usam e continuarão usando para variados fins. Como Carl Hart não vejo muito sentido em lutar contra esse impulso humano demasiado humano - como a "guerra às drogas" tem feito tragicamente há muitas décadas. Uma abordagem realista e pragmática, como a defendida pelo autor, me parece muito mais sensata e necessária...

Trecho do livro: "Minha jornada me mudou profundamente. Redescobri a Declaração de Independência e os nobres ideais que ela expressa. Ela garante a cada um de nós "certos direitos inalienáveis", entre eles os da "vida, liberdade e busca da felicidade", contanto que não violemos os direitos dos outros. Dito de maneira simples, tenho o direito de usar substâncias em minha busca pela felicidade. Usar ou não uma droga é uma decisão minha, não do governo. Além disso, meu consumo responsável de drogas não deveria ser submetido a punições por parte das autoridades. Essas ideias estão no centro de nossas noções de autonomia e liberdade pessoal. A abordagem punitivista atual para lidar com usuários de drogas recreativas é totalmente antiamericana".

Como complemento a esta resenha recomendo a leitura deste breve ensaio do Carl Hart: Conceber a dependência química como uma doença cerebral promove injustiça social
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