Nos últimos meses eu assisti e li três excelentes obras cujas narrativas se passam em momentos importantes da história da psiquiatria: 1) O baile das loucas (Amazon Prime, 2021): baseado em um romance homônimo da escritora francesa Victoria Mas (recém-lançado no Brasil pela editora Verus e que ainda não li) este filme belíssimo conta a história de Eugene, uma jovem que ouve e enxerga mortos e que, por conta disso, é internada por sua família na ala feminina do famoso hospital La Salpêtrière, onde é tratada pelo igualmente famoso médico-psiquiatra Jean-Martin Charcot. A história se passa no final do século XIX, mais especificamente em 1885, e retrata com realismo os terríveis e desumanos tratamentos psiquiátricos disponíveis naquele momento, além da forma absurda como as mulheres eram tratadas - não apenas no hospital, mas por toda a sociedade.
2) Dez dias num hospício (Ed, Fósforo, 2021): neste livro clássico de jornalismo investigativo, publicado originalmente em 1887, a escritora e jornalista norte-americana Elizabeth Cochran Seaman (mais conhecida pelo pseudônimo de Nellie Bly) relata o período de dez dias que passou no interior do assustador Hospício de Alienados de Blackwell's Island, em Nova Iorque. A partir de uma demanda do editor do jornal New York Word, Nellie Bly se fingiu de louca - enganando, assim, diversos psiquiatras novaiorquinos - e acabou por ser enviada ao referido hospício, onde presenciou, e relatou posteriormente, terríveis episódios de negligência e maus tratos promovidos por médicos e enfermeiras da instituição. Muitas décadas antes do famoso experimento de David Rosenhan, realizado nos anos 1970, Bly já havia demonstrado a fragilidade do processo de diagnóstico psiquiátrico e também a insensatez das instituições psiquiátricas, que não apenas recebiam - e supostamente tratavam - pessoas incômodas de todos os tipos, como produziam a própria loucura através de suas violentas técnicas de obediência e despersonalização. Um livro terrível e necessário - ainda hoje, infelizmente.
Trecho do livro: "Louca? Sim, louca; e à medida que observava a loucura dominar pouco a pouco aquela mente que parecia normal, eu amaldiçoava em silêncio os médicos, as enfermeiras, e todas as instituições públicas. Alguns dirão que ela já era louca antes de ser internada. Se de fato era, será que aquele era o local para o qual uma mulher convalescente deveria ser mandada, para tomar banho gelado, ser impedida de se agasalhar e receber comida horrível?"
3) Uma tristeza infinita (Companhia das Letras, 2021): neste romance sensacional do escritor e tradutor gaúcho Antônio Xerxenesky acompanhamos o jovem psiquiatra francês Nicolas no período em que atuou em um hospital psiquiátrico situado em uma pequena e isolada cidade na Suiça, onde ele passa a morar com a esposa Anna, uma jornalista científica muito interessada no campo da física. A história, que se passa no início da década de 1950 (no período pós-guerra, portanto), retrata as angústias e melancolias do protagonista, ferrenho defensor da psicanálise como forma de tratamento dos transtornos mentais, ao se deparar com os limites e impossibilidades de sua atuação - e de sua abordagem. Nicolas deseja sincera e verdadeiramente ajudar seus pacientes, muitos deles profundamente afetados e traumatizados pela guerra, mas a grande maioria não parece se beneficiar muito do tratamento pela fala - e muito menos se curar, como Nicolas almeja. Acontece que justamente neste momento alguns psiquiatras europeus começaram a se utilizar da substância RP-4560, posteriormente batizada de clorpromazina, para tratar os transtornos psicóticos - dando início, assim, à era da psicofarmacologia da psiquiatria. Com isso, Nicolas se vê tentado a utilizar tal substância em seus pacientes, embora não acredite que "um medicamento sintético possa curar as aflições da mente", como bem afirma o narrador. A temática central do romance diz respeito, portanto, à questão da natureza do sofrimento mental e das formas criadas pela humanidade, de aliviá-lo e, quem sabe, curá-lo. Se você se interessa por essa temática indico fortemente esse livro, assim como o filme e o livro indicados anteriormente.
Trecho do livro: "De repente, todos aqueles físicos reunidos em Genebra, tão preocupados com quarks e neutrinos, começaram a falar de cérebros, neurônios e hormônios. Pelo jeito, uma fórmula misteriosa, conhecida por uma sigla de duas letras e quatro números, tinha transformado os loucos mais desvairados em pessoas sãs, os maníacos mais agressivos em cordeiros tranquilos, os incuráveis em pessoas curadas. Sim, a notícia percorria a comunidade científica com uma velocidade não tão menor que a da luz. E os ouvidos de Anna se aguçaram e ela perguntou o nome da fórmula misteriosa (...) RP-4560, uma substância usada para diminuir casos de choque durante uma cirurgia em grande escala, pensada para tranquilizar pacientes antes de um procedimento invasivo, talvez uma parente da adrenalina, talvez um anti-histamínico, ninguém sabia ao certo como chamar aquela poção mágica. Tudo o que sabiam é que sim, funcionava. Os mecanismos é que não eram compreendidos e, como qualquer ciência avançada demais, diziam, a substância era indistinguível da magia. Mas a loucura era tratada, como a pneumonia ao receber uma injeção de penicilina".
OBS: Após publicar este post descobri que existem dois filmes baseados no livro "Dez dias num hospício". O primeiro, lançado em 2019 recebeu no Brasil o título "Fuga do hospício: a história de Nellie Bly" e conta com a talentosa atriz Christina Ricci no papel principal. Já o segundo, lançado em 2015, se chama "10 days in a madhouse: the Nellie Bly story". Pelo que pude pesquisar, estes filmes não estão disponíveis em nenhum serviço de streaming brasileiro. O jeito, pra assisti-los, será recorrer a plataformas "alternativas".