No dia 31 de Outubro, a revista The Atlantic publicou um excelente artigo do jornalista científico Ed Yong denominado "How a Focus on Rich Educated People Skews Brain Studies". Segue a tradução que fiz desse texto, cuja versão original pode ser lida aqui. Aliás, este é o segundo artigo de Yong que traduzo para este blog. O primeiro pode ser lido aqui.
Em 1986, o psicólogo social David Sears alertou seus colegas que o hábito de estudar quase exclusivamente estudantes universitários estava produzindo um retrato estranho e distorcido da natureza humana. Ele não foi o primeiro a fazer essa crítica, nem o último: décadas mais tarde, outros psicólogos observaram que as ciências sociais tendiam a se focar em pessoas das sociedades WEIRD - isto é, das sociedades ocidentais, escolarizadas, industrializadas, ricas e democráticas [no original, WEIRD: western, educated, industrialized, rich and democratic]. Os resultados de tais estudos são frequentemente interpretados como sendo representativos da humanidade como um todo, ainda que seus participantes tenham sido retirados de uma "parcela particularmente pequena e incomum" do gênero humano.
As mesmas preocupações foram levantadas em praticamente todas as áreas da ciência que envolvem pessoas. Os geneticistas aprenderam mais sobre o DNA das pessoas da Europa e América do Norte do que do resto do mundo, onde existe uma maior diversidade genética. O chamado Human Microbiome Project (Projeto Mircrobioma Humano) se constituiu, de fato, como Urban-American Microbiome Project (Projeto Microbioma dos Norte-americanos Urbanos), já que seus participantes eram quase inteiramente de St. Louis e Houston, nos EUA.
A neurociência enfrenta os mesmos problemas. Quando os cientistas utilizam scanners para investigar a estrutura e o funcionamento do cérebro humano, esses cérebros costumam pertencer a pessoas ricas e escolarizadas. E a menos que os pesquisadores tomem medidas para corrigir esse viés, o que obtemos é uma compreensão do cérebro que é incompleta, distorcida e, bem, um pouco estranha.
Kaja LeWinn, da Universidade da Califórnia, em São Francisco, demonstrou isso re-analizando os dados de um grande estudo que escaneou 1162 crianças e jovens entre 3 e 18 anos para ver como seus cérebros mudavam à medida que cresciam. Os jovens vieram desproporcionalmente de famílias ricas e escolarizadas, então LeWinn ajustou os dados para ver como iria ficar se eles fossem mais representativos da população dos EUA. Isso é chamado de "ponderação", e é uma estratégia comum que os epidemiologistas usam para lidar com os desvios em suas amostras. Em um exemplo fácil de entender, se você acabou recrutando duas vezes mais meninos que meninas, você atribui às meninas duas vezes mais "peso" que os meninos.
Quando LeWinn ponderou seus dados para fatores como sexo, etnia e riqueza, os resultados pareceram muito diferentes dos originais. O cérebro como um todo se desenvolveu mais rápido do que se pensava antes, e algumas partes amadureceram mais precocemente do que outras.
Natalie Brito, da Universidade de Nova York, apontou que este estudo "demonstra claramente como nossa interpretação do desenvolvimento cerebral se altera com base em quem está representado dentro da amostra". Ela acrescenta que a maioria dos neurocientistas reconheceria ou concordaria que as amostras representativas são importantes, mas que há razões práticas pelas quais essas amostras são difíceis de obter. E um dos motivos mais óbvios é que os estudos de escaneamento cerebral são muito caros, e, por isso, a maioria deles é pequena e se baseia em "amostras de conveniência" - isto é, em quem é mais fácil de recrutar.
"A pesquisa com neuroimagem também é complexa e difícil de conduzir e, por conta disso, acredito que há uma tendência de se concentrar em seus aspectos tecnológicos", aponta Duke Han, da Universidade do Sul da Califórnia. Isso é sintomático de um problema no campo da neurociência sobre o qual já escrevi a respeito: uma tendência a se focar nas inovações tecnológicas que nos permitem estudar o cérebro e esquecer as pessoas cujos cérebros estão sendo estudados.
Talvez o próprio cérebro estimule esse lapso. Nós entendemos intuitivamente que nossos pensamentos e comportamentos variam consideravelmente de pessoa para pessoa. Mas quando se trata do pedaço de matéria cinzenta por trás desses comportamentos, é fácil esquecer essa variação. "Até certo ponto, eu acho que há uma entendimento de que um cérebro é um cérebro é um cérebro", diz LeWinn. "Isso é problemático. O cérebro de cada pessoa é moldado por suas experiências, e queremos capturar a diversidade das experiências das pessoas, mais do que de apenas alguns tipos".
Por exemplo, no estudo que ela reanalisou, cerca de 35% das crianças tinham pais com educação superior e cerca de 38% tinham pais que ganhavam mais de US$100 mil por ano. Se a amostra tivesse sido verdadeiramente representativa da população dos EUA, essas proporções seriam 11% e 26%, respectivamente. E a ponderação dos dados para dar conta destas distorções produziu uma imagem diferente do desenvolvimento do cérebro.
Os cérebros ficam maiores à medida que nos desenvolvemos, antes de encolher novamente durante a infância tardia. Nos dados não ponderados, os cérebros atingem o máximo do volume aos 6 anos de idade, em média, e o máximo da superfície em torno dos 12 anos. Mas nos dados ponderados, os cérebros atingiram esses marcos 10 meses e 29 meses antes, respectivamente. O padrão de desenvolvimento geral do cérebro também mudou. Nos dados não ponderados, três dos quatro lobos do cérebro atingem sua área máxima nas idades de 12 a 13 anos, com apenas o lobo parietal atingindo mais cedo o auge, em torno dos 10 anos de idade. Mas os dados ponderados revelaram ainda mais do processo de maturação, que acontece desde a parte de trás do cérebro até a parte da frente, e que ocorre dos 9 até os 11 anos de idade.
"Esses resultados jogam luz sobre uma questão que não tem recebido a devida atenção nas pesquisas com neuroimagem - a falta de diversidade dentre os participantes do estudo", diz Han. "A menos que essas questões sejam adequadamente abordadas, seria recomendável discutir com prudência as implicações de determinado estudo".
Jim Coan, da Universidade da Virgínia, aprendeu a mesma lição com seu próprio trabalho. Uma década atrás, ele colocou 16 mulheres em um scanner cerebral, comunicou que iria dar um choque elétrico nelas e olhou para as partes de seus cérebros que respondem às ameaças. Ele descobriu que essas áreas ficavam menos ativas se as mulheres segurassem a mão de um estranho, ainda menos ativas se segurassem a mão de seus companheiros e menos ativas ainda se elas estivessem em um relacionamento feliz. "Eu tive que levantar US$30 mil para fazer esse experimento e todos as participantes eram brancos, ricos e escolarizados. E, no entanto, nós pensamos: 'Aqui está a história', disse ele. "Quando você está sozinho, você é o maior responsável por responder à uma situação ameaçadora, então você tem mais reações à ameaça. Agora, se você está junto do seu parceiro romântico, que você confia, você reage de forma menos intensa porque você terceirizou a necessidade de resposta".
Anos mais tarde, o pesquisador recebeu mais recursos para realizar um estudo maior e mais representativo com a participação de pessoas mais diversas em termos socioeconômicos e raciais da comunidade local. "E os resultados mudaram", diz ele. Os parceiros românticos ainda reduziram a resposta da ameaça, mas a mão de um estranho não teve nenhum efeito. Por quê? Talvez isto ocorra porque, como ele demostrou em outro estudo, a riqueza do bairro em que você cresce afeta a maneira como seu cérebro pesa recompensas e ameaças. "Isso não deve surpreender ninguém", diz ele. "O contexto em que você se desenvolve molda a maneira como o seu cérebro funciona e provavelmente a forma como ele está estruturado".
Os neurocientistas estão cada vez mais frustrados com essa verdade evidente. Estudos com escaneamento cerebral estão ficando maiores e os pesquisadores estão se esforçando mais para recrutar amostras que sejam ao menos representativas da comunidade local - se não da América do Norte como um todo.
O Adolescente-Brain Cognitive Development study - o maior estudo do desenvolvimento do cérebro infantil nos Estados Unidos - talvez esteja fazendo o melhor trabalho possível. Ele está se esforçando para recrutar cerca de 11500 crianças com idades entre 9 e 10 anos com o objetivo de acompanhar o desenvolvimento cerebral delas nos próximos 10 anos. O plano é obter uma amostra verdadeiramente representativa e lidar com todas as pequenas distorções com a mesma abordagem de ponderação que LeWinn se utiliza. Isso tem muitas vantagens, diz Wes Thompson, da Universidade da Califórnia, em San Diego, que está envolvido no estudo. Você não somente pode ver o que acontece no cérebro médio norte-americano à medida que ele se desenvolve, mas também como diferentes subgrupos diferem deste padrão e como indivíduos diferem do seu subgrupo específico.
"Uma vez que os estudos mais amplos estão começando a acontecer, esse é o momento de pensar sobre o problema da amostragem", diz LeWinn. "Estamos finalmente fazendo estudos que são grandes o suficiente para obter amostras representativas".