domingo, 12 de novembro de 2017

Anatomia de uma imagem: uma reflexão sobre os usos e abusos das imagens cerebrais

"Normal" versus "Negligência extrema""
Foi através de um grupo de estudo que participo, o GENE - Grupo de Estudos em Neurociência e Educação, que fiquei sabendo de uma reportagem publicada no portal BOL no último dia 4 de Novembro denominada "Imagens de dois cérebros infantis mostram a diferença que o amor dos pais faz". A reportagem começa afirmando que duas tomografias divulgadas pelo Texas Children's Hospital (veja imagem ao lado) "deixam clara a diferença que o amor dos pais ou cuidadores faz no desenvolvimento dos bebês. O cérebro da direita, que é menor e tem estruturas mais obscuras, pertence a um bebê que viveu quase toda a vida com uma família abusiva. Já o da esquerda, visivelmente maior, vive com uma família amorosa e feliz". Mais à frente, a reportagem traz um depoimento do professor Bruce Perry, chefe de psiquiatria do referido hospital, para quem "estas imagens mostram o impacto negativo que a negligência e os maus-tratos têm no desenvolvimento do cérebro do bebê e criança. Este cérebro da direita é bem menor do que a média esperada para esta idade e tem ventrículos aumentados e atrofia cortical. Essencialmente, isso significa que o bebê da direita vai sofrer com atrasos no desenvolvimento e problemas de memória". Eu não tenho dúvidas de que o amor e o cuidado dos pais, especialmente na primeira infância, são fundamentais para a saúde e o bem-estar das crianças. Também não tenho dúvidas de que a negligência e os maus tratos podem afetar negativamente o desenvolvimento cerebral e cognitivo delas. Por outro lado, eu tenho muitas dúvidas com relação a esta reportagem e, especialmente, com relação a esta imagem.

Comecemos pela reportagem. A primeira grande dúvida é: quem é o(a) repórter? Não encontrei em nenhum lugar o nome de quem escreveu esta matéria. E isto é muito perigoso, afinal de contas, nenhuma pessoa física está se responsabilizando por seu conteúdo - apenas a pessoa jurídica do portal. Minha intuição é que a matéria não foi escrita por um jornalista - ou então por um jornalista muito ruim ou muito apressado. Afinal de contas, a matéria comete uma série de erros jornalísticos primários. Em primeiro lugar, quando a matéria aponta para "duas tomografias divulgadas" ela não responde três questões básicas: 1) Quando foram divulgadas? 2) Quem divulgou? e 3) Aonde podemos encontrar esta divulgação? Com relação à primeira questão, de fato não há qualquer indicação da data em que as tomografias foram divulgadas. Pois eu pesquisei e descobri a resposta: elas foram divulgadas em um trabalho apresentado no Encontro Anual da Sociedade de Neurociência dos Estados Unidos no ano de 1997. Sim, queridos leitores, a reportagem apresenta como uma grande novidade os resultados preliminares de um trabalho apresentado 20 anos atrás. Com relação à segunda questão (quem divulgou?) a reportagem cita o nome do professor Bruce Perry, mas não deixa claro qual o papel dele nesta pesquisa. Pois bem, no referido trabalho podemos observar que ele é o primeiro autor do paper, escrito conjuntamente com o neurologista Ronnie Pollard - que sequer é mencionado pela reportagem. Na verdade, eu aposto que o "repórter" não leu o trabalho original, tendo se baseado no máximo em outras reportagens sobre o tema - escritas provavelmente por repórteres que também não leram o trabalho original. Finalmente, com relação à última questão (aonde podemos encontrar esta divulgação?), a matéria se limita a dizer que foi escrita "com informações do Daily Mail". E você, por acaso, sabe o que é o Daily Mail? Simplesmente um dos jornais menos confiáveis do mundo - tanto que o Wikipedia baniu a utilização de matérias do jornal como fonte para seus verbetes. Os editores da Wikipedia justificaram esta atitude em função da "reputação do jornal de verificação insuficiente de fatos, sensacionalismo e produção acelerada". Pois foi justamente nesta fonte que se baseou o "repórter" do BOL para escrever sua matéria. 

Passemos agora para a imagem em si. Como disse anteriormente, a imagem com as duas tomografias foi publicada originalmente em um trabalho apresentado em 1997 - denominado Altered brain development following global neglectin early childhood, que poderíamos traduzir por "Desevolvimento cerebral alterado subsequente à negligência global na primeira infância". Pois bem, neste trabalho, os já referidos autores pretenderam estudar o desenvolvimento cerebral de crianças negligenciadas na primeira infância. Para tanto, analisaram três medidas de crescimento cerebral (altura, peso e circunferência fronto-occiptal) em um conjunto de 122 crianças negligenciadas - recrutadas através do Serviço de Proteção à Criança e de outras agências de acompanhamento de crianças abusadas e negligenciadas. Estas 122 crianças foram avaliadas e, posteriormente, classificadas em quatro grupos: 1) Negligência Global (40); 2) Negligência Global com exposição pré-natal a drogas (18); 3) Negligência Caótica (36) e 4) Negligência Caótica com exposição pré-natal a drogas (28) - no paper eles explicam a diferença entre os dois tipos de negligência, mas para simplificar é possível dizer o seguinte: a Negligência Global é mais severa que a Negligência Caótica. Importante ressaltar que das 122 crianças, 43 foram avaliadas com equipamentos de neuroimagem (Ressonância Magnética e Tomografia Computadorizada) ao passo que as demais foram avaliadas de forma mais simplificada, através da medição da circunferência do crânio. Uma possível falha do estudo é que eles não avaliaram, para fins de comparação, crianças não-negligenciadas. Eles apenas compararam as medidas das crianças negligenciadas com os parâmetros médios utilizados pelos pediatras em seus consultórios. No caso dos exames de neuroimagem, um grupo de neuro-radiologistas analisou as imagens e as classificou como normais ou anormais tendo em vista os parâmetros definidos pelos pediatras.

E quais foram os resultados desta pesquisa? Bom, os pesquisadores encontraram, no caso das medições simples, "dramáticas diferenças" na circunferência fronto-occiptal das crianças "globalmente negligenciadas" quando comparadas com os parâmetros pediátricos - nenhuma diferença significativa foi encontrada no caso daquelas "caoticamente negligenciadas". Já no caso dos exames de imagem, os neuro-radiologistas classificaram 3 das 26 imagens referentes a crianças com negligência caótica como anormais (11,5%) assim como 11 das 17 imagens referentes a crianças com negligência global (64,7%). Os especialistas também apontaram para um aumento nos ventrículos e para uma atrofia no córtex em uma significativa parcela das crianças globalmente negligenciadas. Poucas anormalidades em áreas específicas do cérebro foram observadas. De uma forma resumida, estes dados apontam para a seguinte conclusão: foram encontradas significativas diferenças na estrutura cerebral de crianças "fortemente" negligenciadas quando comparadas com o esperado para crianças das mesmas idades - o mesmo não ocorrendo com crianças "medianamente" negligenciadas. Importante ressaltar que nada é dito sobre o funcionamento do cérebro, já que o estudo se focou apenas em seus aspectos estruturais. Mas um dado que não pode passar despercebido é que um número significativo das imagens cerebrais de crianças negligenciadas foi considerado normal pelos especialistas - das 43 imagens, 26 foram avaliadas como sendo normais, o que equivale a cerca de 60%. Certamente, dentre as crianças fortemente negligenciadas, esse percentual cai para 35%, mas mesmo nesse grupo mais vulnerável é possível observar que algumas crianças se enquadram dentro dos parâmetros esperados. Isto não significa, cabe observar, que elas não foram afetadas pela negligência, mas que se o foram, isto não gerou mudanças na estrutura cerebral detectáveis pela metodologia utilizada. Mas e a famosa imagem? Pois bem, ela aparece no final do estudo e é apresentada como algo que ilustra toda a discussão sobre o impacto da negligência. Sobre ela é dito o seguinte - e eles se referem à imagem no plural por se tratar, na verdade, de duas imagens: "Estas imagens ilustram o impacto negativo da negligência no cérebro em desenvolvimento. Na tomografia da esquerda está a imagem de uma criança saudável de três anos de idade com um tamanho de cabeça médio. Já a imagem à direita  vem de uma criança com três anos de idade que sofreu severa negligência com privação sensorial. O cérebro desta criança é significativamente menor que a média e possui um desenvolvimento anormal do córtex". 

Nada mais é dito sobre a imagem. Não ficamos sabendo, por exemplo, quais são as histórias de vida destas duas crianças cujas imagens cerebrais foram escolhidas para ilustrar o estudo. Só o que sabemos é que uma delas possui um tamanho de cabeça dentro da média assim como um cérebro "normal" - e que imagino que não tenha sido negligenciada, embora isto não esteja dito - e que a outra possui uma cabeça menor assim como um cérebro "anormal", devido às negligências. Mas que negligências foram essas? O texto fala apenas em negligência com privação sensorial, mas não discorre de forma mais aprofundada sobre como isto ocorreu. O que me parece que os autores fizeram foi contrapor a imagem cerebral de uma "criança média" - imagem esta que provavelmente não foi feita por eles, já que no referido estudo não foram avaliadas crianças não-negligenciadas - com a imagem cerebral de uma criança que passou por uma experiência extrema de negligência. Certamente, das 43 crianças que foram escaneadas, muitas tinham um cérebro maior e mais próximo da média, mas para gerar um impacto visual eles provavelmente escolheram expor o menor cérebro. Alguns podem estar se perguntando: mas qual o problema disso? Se a intenção dos autores é chamar a atenção para o importante tema da negligência infantil, qual o problema em distorcer um pouco as coisas? Bom, minha crítica não diz respeito diretamente aos autores. Eles estavam apenas apresentando os resultados preliminares de uma pesquisa em um congresso e decidiram apresentar uma imagem que ilustra o problema - e ela realmente ilustra o problema. Minha crítica está na forma como essa imagem foi utilizada ao longo dos anos. A reportagem do BOL, por exemplo, desvinculou-a completamente do trabalho original e a apresentou como se fosse representativa de todos os casos de negligência - quando se trata apenas de uma comparação entre o tamanho de dois cérebros individuais. E dois cérebros não representam todos os cérebros do mundo, pois existe uma enorme variação no tamanho e na estrutura cerebral entre as pessoas - e também inúmeras formas e níveis de negligência. Algumas crianças negligenciadas têm uma diminuição no tamanho total do cérebro, mas outras se desenvolvem normalmente. Não há uma regra única que valha para todos os casos. Cada pessoa é única e cada cérebro se desenvolve de uma maneira. E isto ocorre devido à neuroplasticidade, que pode ainda permitir às crianças negligenciadas superar um momento inicial de abandono e violência e desenvolver suas funções cerebrais e cognitivas de forma semelhante, ainda que não igual, às outras crianças. Enfim, a imagem dos dois cérebros, dependendo da forma como é interpretada, pode levar à entendimentos díspares. Se por um lado pode ser lida como um alerta sobre a importância do cuidado e do afeto nos momentos iniciais da criança, por outro lado ela pode levar à uma visão determinista de que se houver uma negligência nos primeiros anos, ocorrerão danos permanentes na estrutura cerebral, que jamais poderão ser superados. De fato, em alguns casos, a recuperação é difícil e lenta, mas existem muitos casos de superação, que não podem ser desconsiderados. Cada caso é um caso.

Observação: em uma interessante reportagem publicada pelo jornal The Guardian (denominada "É errado a neurociência definir as políticas de proteção à criança e aos primeiros anos?"), a colunista Zoe Williams escreve o seguinte sobre a famosa imagem: "Val Gillies, pesquisador em política social da Universidade de South Bank, afirma sobre os scans: 'Essa ilustração do cérebro é de um trabalho apresentado por Bruce Perry. Não há detalhes sobre a história de vida das crianças. Nós não sabemos o que significa 'normal'. Não sabemos o que significa 'negligência extrema'. Nem sequer temos uma escala de tamanho na imagem. Ela tem um impacto poderoso, mas eu nunca vi outra imagem como essa. Quando as pessoas dizem: 'Eu vi uma imagem cerebral mostrando o que negligencia faz ao cérebro' é dessa imagem que elas estão falando". De imediato é possível observar inúmeros erros na imagem: sem detalhes sobre o estudo de caso, exceto pelo fato de que "negligência extrema" significava viver em um orfanato romeno [PS: isto não está claro no trabalho original], poderíamos estar lidando com qualquer coisa, desde os efeitos da desnutrição até a deficiência. Mas mesmo sem o drama da imagem, o uso dessas populações extremas é enganador. Sue White, professora de serviço social da Universidade de Birmingham, explica: 'Se você tem médicos trabalhando com crianças sintomáticas, obviamente traumatizadas, olhando para seus marcadores neurobiológicos para ver o que está acontecendo, esta é uma área legítima de estudo. Eles estão tentando desenvolver tratamentos para elas. Mas não existe uma população de pessoas 'normais' com as quais esses mesmos exames podem ser feitos. Você não pode simplesmente retirar um conjunto de crianças do ensino fundamental e colocá-las em um scanner cerebral. Pois existe um grupo de militantes do bem-estar da infância que, penso eu, por razões muito bem intencionadas, aproveitaram os resultados desses casos extremos para dizer: 'Precisamos de muito investimento nos primeiros anos porque olhe o que acontece nos cérebros das crianças se elas são criadas com privações'. O fato é que a maioria das crianças não é comparável".
divulgadas pelo Texas Children's Hospital, nos Estados Unidos, ... - Veja mais em https://noticias.bol.uol.com.br/ultimas-noticias/ciencia/2017/11/04/imagens-de-dois-cerebros-infantis-mostram-a-diferenca-que-o-amor-dos-pais-faz.htm?cmpid=copiaecola
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