Confesso que tive um enorme preconceito inicial com o livro "A fábrica dos cretinos digitais", e até comentei isso nas redes sociais, mas como o tema me interessa academicamente, eu decidi lê-lo mesmo com toda essa desconfiança. E eu me surpreendi muito positivamente - aliás, recomendo-o com entusiasmo, especialmente para pais de crianças e adolescentes. E o motivo é que para além do título e do subtítulo um tanto sensacionalistas e catastrofistas, este ótimo livro, escrito pelo neurocientista francês Michel Desmurget e lançado no Brasil em 2021, traz uma série impressionante de dados e de boas reflexões sobre o impacto negativo dos dispositivos digitais no desempenho escolar, no desenvolvimento cognitivo e na saúde física e mental das pessoas, especialmente das crianças e adolescentes. Mas o autor vai além e reflete de forma igualmente bem embasada sobre o fracasso das políticas de digitalização do sistema escolar em todo o mundo, que não apenas não foram efetivas como foram, em grande medida, prejudiciais. O livro foi originalmente publicado em 2019 - antes, portanto, da pandemia - mas todo este longo período de isolamento só comprovou muitas das teses do autor. Por sinal, uma das principais queixas que tenho recebido nos últimos anos, enquanto um psicólogo de uma universidade, diz respeito à dificuldade manifestada pelos estudantes de prestar atenção nas aulas online e de se concentrar no estudo individual mediado pelo computador ou pelo celular - e inúmeras pesquisas tem demonstrado tais dificuldades, relacionadas à terrível capacidade das telas de estimular a dispersão. A pandemia deixou igualmente clara a diferença qualitativa fundamental entre as aulas presenciais e virtuais assim como a falta que fazem os encontros presenciais, olho no olho. Este livro de Desmurget trata, no fim, da necessidade e da importância das interações "reais" entre as pessoas (isto é, das interações não mediadas ou interrompidas por telas), especialmente nas etapas iniciais do desenvolvimento humano, mas também na vida adulta. Como afirma o autor, "o cérebro humano se revela, pouco importa a idade, bem menos sensível a uma representação em vídeo do que a uma presença humana efetiva. É por essa razão, especialmente, que a potência pedagógica de um ser de carne e osso ultrapassa de modo tão irrevogável a da máquina". Enfim, ao contrário do que eu imaginava inicialmente, não se trata de uma obra tecnofóbica que pretende demonizar as novas e onipresentes tecnologias de comunicação, mas sim de uma embasada e detalhada análise dos inegáveis impactos negativos de tais tecnologias na vida e na saúde de cada um de nós e da população em geral.
Trecho do livro: "Todos esses dados sugerem expressivamente que um excesso de estímulos sensoriais durante a infância e adolescência age negativamente sobre o desenvolvimento cerebral. Excesso de imagens, sons e solicitações diversas parecem criar condições favoráveis ao surgimento de déficits de concentração, transtornos de aprendizagem, sintomas de hiperatividade e vícios. É sem dúvida tentador comparar esses achados com observações epidemiológicas que mostram um aumento nos diagnósticos de TDAH (e de prescrição de medicamentos associados) ao longo das duas últimas décadas. É também tentador lembrar que o consumo de telas recreativas está, além de seus efeitos anteriormente documentados sobre a concentração, associado de modo significativo ao risco de TDAH na criança e no adolescente".