sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Destruindo o cérebro para curar a mente: uma história ilustrada da psicocirurgia

A lobotomia é entendida atualmente como um procedimento terrível, antiético e desumano, que nunca deveria ter existido; no entanto, após ser criada, na década de 1930, a técnica foi quase imediatamente compreendida como o melhor e mais científico tratamento disponível para pessoas com graves transtornos mentais - tanto que seu criador foi agraciado, no ano de 1949, com o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia. As alternativas à lobotomia, na época, incluíam a terapia por choque insulínico, que consistia na indução do paciente ao coma pela aplicação de uma grande dosagem de insulina, e a piroterapia, também chamada de malarioterapia, que envolvia a inoculação do parasita da malária no paciente de forma a gerar terríveis febres - em ambos os casos acreditava-se que após o paciente se restabelecer, do coma e das febres, ocorreriam melhoras em seu estado mental e comportamental. Tais terapias podem parecer igualmente terríveis, mas também elas foram amplamente entendidas como "avanços" ao que existia anteriormente, tanto que o criador da malarioterapia, o médico-psiquiatra Julius Wagner von Jauregg (1857-1940) foi, do mesmo modo, agraciado com o Prêmio Nobel de Medicina, em 1927. Já a lobotomia, chamada inicialmente de leucotomia pré-frontal, foi desenvolvida pelo médico neuro-psiquiatra português Antônio Egas Moniz (1874-1955), sendo aplicada pela primeira vez em 1935, na cidade de Lisboa, em Portugal.

Dr. Fulton com a "lobotomizada" macaca Becky
O procedimento, que consistia na destruição de parte dos lobos frontais dos pacientes foi fortemente inspirado em  experimentos feitos com animais entre o final do século XIX e o início do século XX - com destaque para aquele realizado pelos pesquisadores norte-americanos Carlyle Jacobson e John Fulton, da Universidade de Yale, que danificaram os lobos pré-frontais de duas chimpanzés, Becky e Lucy, e puderam observar significativas mudanças de comportamento,  especialmente em Becky: antes agitada e agressiva, a macaca tornou-se quieta e pacífica, sem que, aparentemente, sua memória e inteligência fossem afetadas. Este experimento foi apresentado, juntamente com outros trabalhos semelhantes, no II Congresso Internacional de Neurologia, que ocorreu em Londres entre os dias 29 de Julho e 02 de Agosto de 1935. Moniz estava presente nesta apresentação e após ela ser finalizada conta-se que ele teria se levantado e questionado os pesquisadores, diante de todos os presentes, se o mesmo procedimento não poderia ser aplicado em humanos para tratar certas doenças mentais. Embora a mitologia criada em torno dessa cena sugira que a ideia da leucotomia tenha surgido neste preciso momento, ela já havia sido aventada por Moniz nos anos anteriores e conectava-se totalmente à sua concepção de "doença mental" como algo inteiramente orgânico, produto de uma rede cerebral danificada. A apresentação de Jacobson e Fulton serviu, assim, mais como confirmação de suas ideias do que como fonte de inspiração. De toda forma, o ponto central de seus questionamentos, que foi tomando corpo ao longo dos anos, era o seguinte:  se a mente é criação do cérebro, por que não intervir diretamente no cérebro para curar a mente?

Procedimento da leucotomia pré-frontal
De volta à Portugal, Moniz decidiu colocar em prática esta ideia e no dia 12 de Novembro de 1935, pouco mais de três meses após o famoso Congresso - e com a colaboração fundamental do neurocirurgião Pedro Almeida Lima -, realizou a primeira leucotomia, que passaria a ser chamada por ele também de "psicocirurgia" por se tratar de uma intervenção realizada no cérebro cujo objetivo era alterar a psiquê, isto é, a mente do paciente - uma "neurocirurgia", por outro lado, não tem e nunca teve esta pretensão, limitando-se a remover ou reparar as partes doentes do cérebro. Pois a primeira paciente (ou poderíamos dizer vítima?) foi a Sra. M, uma mulher de 63 anos profundamente deprimida, ansiosa e paranoica que, após ser anestesiada, teve dois pequenos furos feitos em seu crânio na parte superior, nos lados direito e esquerdo, e uma certa quantidade de álcool absoluto introduzida com uma injeção - a ideia era que essa substância "neurotóxica" destruísse as conexões celulares do lobo frontal. Posteriormente, Moniz optou por substituir a aplicação de álcool pela utilização de um instrumento chamado por ele de "leucótomo", que consistia de uma cânula com 11 centímetros de comprimento que era introduzida nos pequenos buracos feitos no crânio e movimentada de um lado para o outro, destruindo, assim, uma parte da substância branca do cérebro - não por acaso a expressão leuco-tomia significa, literalmente, "corte no branco", isto é, na substância branca. O procedimento foi oficialmente apresentado ao mundo através de uma monografia publicada por Moniz em 1936 com o título Tentatives opératoires dans le traitement de certaines psychoses [Tentativas operatórias no tratamento de certas psicoses]. Nesta monografia, além de descrever a nova técnica, Moniz apresentou uma avaliação dos primeiros 20 pacientes submetidos à cirurgia, observando que sete haviam se curado ou melhorado significativamente, sete haviam apresentado alguma melhora e seis permaneceram como estavam anteriormente. Estes dados foram interpretados, à época, como um sucesso retumbante do tratamento - a grande questão é que nenhum avaliação rigorosa e de longo prazo foi feita, o que teria demonstrado uma série de danosos efeitos colaterais da cirurgia. Além disso não fica claro em sua avaliação o que significa cura ou melhora significativa. Como questiona o famoso neurologista Oliver Sacks no livro Um antropólogo em marte, "o que se havia alcançado nunca foi a 'cura' é claro, mas um estado dócil, um estado de passividade tão (ou mais) distante da 'saúde' quanto os sintomas ativos originais, e (ao contrário deles) sem a possibilidade de ser resolvido ou revertido". De acordo com o psiquiatra Jeffrey Lieberman, autor do livro Psiquiatria: uma história não contada, esta "docilidade" obtida pela psicocirurgia se tornou facilmente perceptível nas instituições manicomiais de todo o mundo. "Durante séculos, o padrão da trilha sonora dos manicômios era composto por um barulho e uma agitação contínuos. Agora o ruído turbulento fôra substituído por um silêncio mais agradável", aponta o autor, ao que poderíamos questionar: agradável para quem, Dr. Lieberman?

Procedimento da lobotomia transorbital
Mais à frente, o procedimento criado por Moniz  foi aperfeiçoado, e banalizado, pelo neuropsiquiatra norte-americano Walter Freeman (1895-1972), sem dúvida alguma o principal responsável pela popularização da psicocirurgia nos Estados Unidos e no mundo - e também, alguns diriam, por seu posterior declínio. Inicialmente, Freeman, em parceria com seu colega James Watts (1904-1994), um habilidoso neurocirurgião da Universidade George Washington, se utilizou de uma técnica semelhante àquela empregada por Moniz em Portugal, realizando a primeira leucotomia nos Estados Unidos no dia 14 de setembro de 1936. Após realizá-la sem grandes modificações nos dez anos seguintes, Freeman acabou por desenvolver uma técnica própria, bem mais grotesca mas também menos invasiva, mais barata e mais rápida, chamada por ele de lobotomia transorbital - procedimento que Watts não viu com bons olhos e que acabou por selar o fim da produtiva parceria entre os dois pesquisadores. Nesta nova técnica, praticada pela primeira vez em 1946, um instrumento de metal pontiagudo semelhante a um picador de gelo era introduzido com a ajuda de um martelo logo acima da órbita ocular - daí o nome transorbital - e movimentado de um lado para o outro, destruindo, assim, partes do lobo frontal do cérebro - isto após o paciente ser submetido a uma série de aplicações de eletrochoque até perder a consciência, procedimento que servia ao mesmo tempo como anestésico e como parte do tratamento, misto de lobotomia e eletrochoque. Esta técnica, ao contrário daquela praticada por Moniz, poderia ser realizada sem assepsia e em qualquer lugar, e não exclusivamente em um hospital. E foi justamente o que fez Freeman, que circulou por todo os Estados Unidos realizando lobotomias a bordo de uma van batizada posteriormente de Lobotomóvel. Estima-se que Freeman tenha realizado, sozinho, 3500 das cerca de 40 mil lobotomias praticadas nos Estados Unidos.

Relato de paciente refratário ao tratamento com a psicocirurgia
No entanto, com a chegada dos anos 50 a psicocirurgia entraria em um rápido declínio, praticamente desaparecendo ao final desta década - o que é comumente atribuído à criação e disseminação de uma nova modalidade de tratamento biológico: os remédios psiquiátricos ou psicofármacos. No entanto, seria um tanto simplista atribuir o declínio da psicocirurgia exclusivamente à ascensão dos psicofármacos, pois certamente muitos outros fatores estiveram em jogo. Dentre eles é importante apontar que a psicocirurgia acumulou, ao longo do tempo, uma série de controvérsias. Na verdade, desde que foi inventada em 1935 a técnica sempre foi alvo de inúmeras críticas, tanto técnicas quanto éticas. Com relação aos aspectos técnicos, foram se acumulando na literatura médica relatos e descrições de inúmeras complicações pós-operatórias como hemorragias, infecções, alterações significativas no afeto e na personalidade e até mesmo mortes. Em seu início a psicocirurgia era realizada apenas em caráter excepcional - Moniz, por exemplo, só prescrevia e realizava a cirurgia quando todas as demais alternativas haviam falhado -, no entanto, com a banalização do procedimento realizada por Freeman, a cirurgia passou a ser realizada de forma cada vez menos criteriosa em um número cada vez maior de pessoas com os problemas mais variados e, com isso se multiplicaram relatos de problemas decorrentes de sua aplicação e também análises críticas ao procedimento. Com a entrega do Prêmio Nobel a Moniz, em 1949, a situação da psicocirurgia só piorou: mais e mais controvérsias e críticas foram se acumulando, especialmente em relação aos seus aspectos éticos. Hoje sabemos que o procedimento foi utilizado não somente como forma de tratamento mas também, em muitos manicômios, como mecanismo de "docilização" dos pacientes, como estratégia de punição para o "mau comportamento" e como método de estudo do cérebro, a despeito de todas as diretrizes éticas para a pesquisa com seres humanos existentes naquele momento. De toda forma, para além de um método visto atualmente como algo essencialmente negativo, a psicocirurgia foi uma tentativa, dentre outras, de lidar com o desafio da doença mental. Aos olhos atuais ela pode parecer estúpida e cruel, mas, como aponta João Lobo Antunes, neurocirurgião português e biógrafo de Moniz, "todo olhar para trás é inevitavelmente deformado pelos óculos do tempo que se vive".

Egas Moniz foi o segundo pesquisador a ganhar o Prêmio Nobel de Medicina por trabalhos relacionados à área da Psiquiatria, O primeiro foi  Julius Wagner-Jauregg (1857-1940), premiado em 1907 (na imagem ele está de paletó preto, à direita). Julius foi o criador da piroterapia por infecção de malária, um procedimento que consistia em infectar o paciente com malária de forma a gerar febres (daí o nome: piro = fogo). Na imagem um paciente recebe uma injeção com o parasita causador da malária.  Fonte da imagem: Science
Egas Moniz, criador da angiografia e da leucotomia pré-frontal. Recebeu o Prêmio Nobel de Medicina em 1949. Fonte: Crônicas Professor Ferrão

Nota portuguesa de dez mil escutos confeccionada, em 1989, em homenagem a Egas Moniz. Fonte: CMjornal
Imagem em perfil da primeira angiografia cerebral realizada no Brasil por Augusto Brandão Filho sob orientação de Egas Moniz, durante sua visita ao país, em 1928. O procedimento foi desenvolvido por Moniz anteriormente à criação da leucotomia e é utilizado até hoje. Fonte: Gusmão (2002)



http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0004-282X2002000200030
Walter Freeman realizando uma lobotomia transorbital no meio de várias pessoas.

Instrumentos utilizados por Walter Freeman na realização da lobotomia transorbital. Fonte: 4thwavenow



Walter Freeman e James Watts analisam uma imagem de Raio-X antes de uma operação psicocirúrgica. Fonte: Wikipedia
Ilustração do tipo antes/depois de um homem submetido à lobotomia. Afirma a legenda sobre o caso 123, antes da operação: "Perplexo, incapaz de resolver um simples problema". Dez dias após a operação:  "Ele não estava mais incomodado com suas obsessões e parecia bastante satisfeito consigo mesmo". O livro  Psychosurgery In The Treatment Of Mental Disorders And Intractable Pain, publicado por Freeman em 1950, está repleto de ilustrações e casos como esse.
Walter Freeman em seu "Lobotomóvel", utilizado nas viagens que fez pelos Estados Unidos realizando lobotomias. Fonte: Quacks & Hacks

Cena do filme Um estranho no ninho (One flew over the cuckoo's nest, EUA, 1975). Baseado no livro homônimo do escritor Ken Kesey e vencedor de inúmeros prêmios Oscar, este filme tornou-se um marco na luta antimanicomial ao expor o terror vivido por inúmeros pacientes em instituições asilares. Dentre os tratamentos retratados pelo filme - utilizados muitas vezes como punições por "mau comportamento" - estão o eletrochoque e a lobotomia. Embora tenha sido lançado num momento em que a lobotomia já não era mais praticada, ele trouxe à tona a desumanidade deste procedimento.

Cena do filme Nise - O coração da loucura (Brasil, 2016), que retrata o trabalho da renomada psiquiatra brasileira Nise da Silveira (1905-1999) à frente da "Seção de Terapêutica Ocupacional" no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Rio de Janeiro. Tendo iniciado seu trabalho neste local em 1944, Nise sempre se colocou frontalmente contra tratamentos psiquiátricos populares na época, como o eletrochoque e a lobotomia, defendendo a utilização da arte, em especial da pintura, como atividade terapêutica. Em 1952, ela fundou o Museu de Imagens do Inconsciente, espaço dedicado à exposição e ao estudo das obras produzidas pelos pacientes do hospital. Este museu encontra-se ativo até os dias atuais. Fonte da imagem: Academia Brasileira de Cinema

CENAS FORTES: video de Walter Freeman aplicando a lobotomia transorbital em uma paciente

Referências consultadas para a elaboração deste post:
Livro: Egas Moniz - Uma biografia - João Lobo Antunes (Civilização Brasileira, 2013)
Livro: Psiquiatria: uma história não-contada - Jeffrey Lieberman (Martins Fontes, 2016)
Livro: Um antropologo em marte - Oliver Sacks (Companhia das Letras, 1995)
Livro: Mente e cérebro - Lauren Slater (Ediouro, 2004)
Artigo: The early argument for prefrontal leucotomy - L.  Boettcher e S. Menacho
Artigo: Psychosurgery, ethics and media - J. Caruso e J. Sheehan
Comentários
2 Comentários

2 comentários:

A pensadora disse...

Foi muito bom saber o início dessa técnica tão polemica!
www.sramaia.blogspot.com

Psuchologia disse...

Muito bom post! A lobotomia foi inclusive questão de argumento na Guerra Fria. Os psiquiatras pavlovianos soviéticos, que se irradiaram também no ocidente, não pregavam lobotomia e já acusavam o procedimento na época de "burguês", "individualizador" etc.. Eles instauravam em âmbito institucional a tese de que o indivíduo é resultado "funcional" de diversas variáveis, também fisiológicas mas não só. Daí, na "unidade funcional" entre organismo e ambiente, a importância de não se restringir apenas ao âmbito individual. Isso causava inúmeras questões com a adaptação de Pavlov a Marx, mas, do "lado de lá" bradavam contra a crueldade e anulação do próprio indivíduo psicossocial da lobotomia.

Nos idos dos anos 40, o jovem Michel Foucault foi internado no Hospital de Sainte-Anne, e lá conheceu um certo Robert, homossexual, deprimido e de ideações suicidas. Para "evitar" o suicídio, lobotomizaram Robert. Ele nunca mais teve qualquer ideação prejudicial a si ou aos outros.

Foucault juntou tais experiências com outras, mais "humanizadas", e teve uma série de interrogações prévias para escrever sua História da Loucura.