sexta-feira, 14 de setembro de 2018

A mística cerebral

Compartilho abaixo a tradução que fiz do sensacional artigo The cerebral mystique, publicado pela revista eletrônica AEON no dia 8 de Maio de 2018. Seu autor é o professor de engenharia biológica, ciências cerebrais e cognitivas do Massachusetts Institute of Technology (MIT) Alan Jasanoff, que também é autor do livro The Biological Mind: How Brain, Body, and Environment Collaborate to Make Us Who We Are [A mente biológica: como cérebro, corpo e ambiente colaboram para nos fazer quem somos] (2018).

Mais de 2.000 anos atrás, o pai semi-mítico da medicina, Hipócrates de Kos, desafiou os espiritualistas de seu tempo com uma afirmação ousada sobre a natureza da mente humana. Em resposta às explicações sobrenaturais do fenômeno mental, Hipócrates insistiu que "de nenhum outro lugar, se não do cérebro, vem a alegria, o prazer, o riso, a recreação, a tristeza, a melancolia, o pessimismo e as lamentações". Na era moderna, as palavras de Hipócrates foram destiladas em um slogan pop-neurocientífico afinado com a lógica do Twitter: "Nós somos os nossos cérebros". Essa mensagem tem ressonância com as tendências recentes de culpar o cérebro pela criminalidade, de redefinir a doença mental como doença cerebral e, nos círculos tecnológicos futuristas, de imaginar o aprimoramento e a preservação das nossas vidas através do aprimoramento e da preservação dos nossos cérebros. Da criatividade à dependência de drogas, praticamente não existe um aspecto do comportamento humano ao qual não se tenha atribuído uma função cerebral. Para muitas pessoas atualmente, o cérebro parece ser o substituto contemporâneo da alma.

Mas deixando de lado o romance do público com o cérebro, a lição mais fundamental que a neurociência tem a nos ensinar é que o órgão de nossas mentes é uma entidade puramente física, incorporada conceitual e causalmente no mundo natural. Embora o cérebro seja necessário para quase tudo que fazemos, ele nunca trabalha sozinho. Em vez disso, sua função está inextricavelmente ligada ao corpo e ao ambiente ao seu redor. A interdependência desses fatores é mascarada, porém, por um fenômeno cultural que chamo de "mística cerebral" - uma disseminada idealização do cérebro e de sua singular importância que protege as concepções tradicionais sobre as diferenças entre mente e corpo, sobre o livre-arbítrio e sobre a natureza do próprio pensamento
 
A mística é expressa de múltiplas formas, variando desde representações onipresentes de cérebros sobrenaturais e ultra-sofisticados na ficção científica e na mídia popular até concepções mais sóbrias e cientificamente embasadas das funções cognitivas que enfatizam suas qualidades inorgânicas ou restringem os processos mentais a estruturas neurais. Essa idealização é quase que automaticamente adotada por leigos e cientistas (inclusive por mim mesmo!) e é compatível tanto com a visão de mundo materialista quanto com a espiritualista. A mística cerebral pode ajudar a aumentar o entusiasmo pela neurociência - uma consequência valiosa - mas ela limita drasticamente nossa capacidade de analisar o comportamento humano e de enfrentar problemas sociais importantes.

A difundida analogia do cérebro com um computador contribui de maneira poderosa para a mística cerebral, distanciando o cérebro do resto da biologia. O contraste entre o cérebro-máquina e a bagunça molhada e caótica [wet, chaotic mess] que temos no restante do nosso corpo estabelece uma distinção cérebro-corpo que se assemelha à histórica distinção mente-corpo estabelecida por filósofos antigos como René Descartes. Em consonância com as noções religiosas ocidentais de alma, Descartes postulou no século XVII que a mente é uma entidade etérea que interage com o corpo, mas que não se une a ele. Com seu axioma atemporal "penso, logo existo", Descartes colocou a mente em seu próprio universo, independente do mundo material. 


Na medida em que o cérebro se assemelha a uma máquina, podemos mais facilmente imaginá-lo sendo removido de nossas cabeças, preservado por toda a eternidade, clonado ou enviado para o espaço. O cérebro digital parece assim separável do corpo tanto em sua substância quanto em suas relações causais, de forma muita semelhante com o espírito desprendido de Descartes. Pode não ser por acaso que algumas das analogias inorgânicas mais influentes sobre o cérebro foram introduzidas por cientistas físicos que, em seus últimos anos de vida, abraçaram o problema da consciência da mesma forma que os idosos por vezes se aferram à religião. John von Neumann, o pioneiro da computação, foi o mais conhecido deles; ele escreveu o influente livro The computer and the brain [O Computador e o Cérebro] (1958) pouco antes de sua morte em 1957, inaugurando essa duradoura analogia no início da era digital.

Os cérebros são, sem dúvida alguma, semelhantes aos computadores - os computadores, afinal de contas, foram inventados para executar funções semelhantes às realizadas pelo cérebro -, mas os cérebros também são muito mais do que feixes de neurônios e impulsos elétricos pelos quais eles são famosos por propagar. A função de cada sinal neuroelétrico é liberar uma pequena inundação de substâncias químicas que ajudam a estimular ou inibir as células cerebrais, da mesma forma que substâncias químicas ativam ou inibem funções como a produção de glicose pelas células do fígado ou respostas imunes pelas células brancas do sangue. Mesmo os sinais elétricos do cérebro são produtos de substâncias químicas chamadas íons, que entram e saem das células, causando pequenas ondulações que podem se espalhar de forma independente dos neurônios. 

Igualmente distintas dos neurônios são as relativamente passivas células cerebrais denominadas glia (palavra que em grego significa cola), que existem em número semelhante ao de neurônios, mas não conduzem sinais elétricos da mesma maneira. Experimentos recentes com ratos demonstraram que manipular essas pouco carismáticas células pode produzir efeitos dramáticos no comportamento. Em um experimento, um grupo de pesquisa do Japão demonstrou que a estimulação direta da glia em uma região do cérebro chamada cerebelo pode causar uma resposta comportamental análoga às mudanças mais comumentes provocadas pela estimulação dos neurônios. Outro estudo notável mostrou que o transplante de células glias humanas para cérebros de camundongos aumentou o desempenho dos animais em testes de aprendizado, mais uma vez demonstrando a importância da glia na modelagem da função cerebral. As substâncias químicas e a cola são tão essenciais para o cérebro quanto a fiação e a eletricidade. Com esses elementos úmidos [moist elements] levados em conta, o cérebro começa a parecer muito mais uma parte orgânica do corpo do que a prótese idealizada que muitas pessoas imaginam. 

Estereótipos sobre a complexidade cerebral também contribuem para a mística do cérebro e sua distinção do corpo. Tornou-se um clichê se referir ao cérebro como "a coisa mais complexa no Universo conhecido". Esta ideia é inspirada pela descoberta de que os cérebros humanos contêm algo na ordem de 100.000.000.000 de neurônios, cada um dos quais com a capacidade de fazer cerca de 10.000 conexões (sinapses) com outros neurônios. A natureza assustadora de tais números oferece respaldo às pessoas que argumentam que a neurociência nunca decifrará a consciência, ou que o livre arbítrio se esconde, de alguma forma, entre as bilhões de células e conexões cerebrais.

Mas é improvável que o grande número de células no cérebro humano explique suas extraordinárias capacidades. Os fígados humanos têm aproximadamente o mesmo número de células que os cérebros, mas certamente não geram os mesmos resultados. Os próprios cérebros variam consideravelmente de tamanho - em cerca de 50% da massa e do número de células cerebrais. A remoção radical de metade do cérebro é às vezes utilizada como um tratamento para a epilepsia em crianças. Comentando sobre um coorte de mais de 50 pacientes submetidos a esse procedimento, uma equipe da Universidade Johns Hopkins, localizada em Baltimore, escreveu que eles ficaram "admirados com a evidente retenção de memória após a remoção de metade do cérebro e também com a conservação da personalidade e do senso de humor da criança". Claramente, nem todas as células cerebrais são sagradas. 


Caso se olhe para o reino animal, grandes variações no tamanho do cérebro não se correlacionam em absoluto com o  poder cognitivo aparente. Alguns dos animais mais perspicazes são os corvídeos - as gralhas e os corvos - que possuem cérebros com menos de 1% do tamanho do cérebro humano, mas que, ainda assim, realizam façanhas cognitivas comparáveis aos chimpanzés e gorilas. Estudos comportamentais demonstraram que essas aves podem criar e utilizar ferramentas e também reconhecer pessoas na rua, façanhas que até mesmo muitos primatas não são capazes de realizar. No interior de ordens específicas, animais com características semelhantes também exibem grandes diferenças no tamanho do cérebro. Dentre os roedores, por exemplo, podemos encontrar o cérebro da capivara, que possui 80 gramas e 1,6 bilhão de neurônios, e o também o cérebro do camundongo-pigmeu, que possui 0,3 gramas e, provavelmente, menos de 60 milhões de neurônios. Apesar da diferença de mais de 100 vezes no tamanho do cérebro, essas espécies vivem em habitats similares, exibem estilos de vida sociais semelhantes e não apresentam diferenças óbvias na inteligência. Embora a neurociência esteja apenas começando a estudar as funções cerebrais de animais pequenos, tais pontos de referência demonstram que é errado mistificar o cérebro em função de seu número total de componentes. 

Ao se enfatizar as qualidades maquinais do cérebro ou a sua incrível complexidade, isto acaba por distanciá-lo do restante do mundo biológico no que diz respeito aos seus componentes. Mas uma forma relacionada de distinção cérebro-corpo exagera a maneira pelo qual cérebro se destaca no que diz respeito à sua autonomia em relação ao corpo e ao meio ambiente. Este dualismo contribui para a mística cerebral ao engrandecer a reputação do cérebro identificando-o como um centro de controle, receptivo a informações corporais e ambientais, mas ainda assim no comando.


Contrariamente a essa ideia, nossos próprios cérebros são continuamente influenciados por uma grande quantidade de inputs sensoriais. O ambiente dispara muitos megabytes de dados sensoriais ao cérebro a cada segundo, informação suficiente para desativar muitos computadores. O cérebro não tem firewall contra esse tipo de "ataque". Estudos de imagem cerebrais mostram que mesmo estímulos sensoriais sutis influenciam certas regiões do cérebro, que vão desde regiões sensoriais de nível inferior [low-level], onde o input entra no cérebro, até partes do lobo frontal, área de nível superior [high-level] que é maior em humanos do que na maioria dos primatas.

Muitos desses estímulos parecem assumir o controle direto de nosso comportamento. Por exemplo, quando vemos ilustrações, suas características visuais geralmente parecem atrair nossos olhos e orientar nosso olhar em torno de padrões espaciais que são amplamente reproduzíveis de pessoa para pessoa. Se observarmos um rosto, nosso foco se move reflexivamente entre os olhos, o nariz e a boca, subconscientemente se focando em suas características-chave. Quando andamos pela rua, nossas mentes são similarmente manipuladas por estímulos do ambiente circundante - o barulho da buzina de um carro, o brilho de uma luz neon, o cheiro de uma pizza - cada um destes estímulos guiam nossos pensamentos e ações mesmo que nós não nos demos conta de nada do que está acontecendo.


Ainda mais abaixo do nosso radar [istoé, da nossa percepção consciente] estão as características ambientais que agem em uma escala de tempo mais lenta influenciando nosso humor e nossas emoções. Os baixos níveis sazonais de luz são famosos por sua correlação com a depressão, um fenômeno descrito pela primeira vez pelo médico sul-africano Norman Rosenthal logo após ele se mudar da ensolarada Joanesburgo para o cinza nordeste dos Estados Unidos na década de 1970. As cores em nosso entorno também nos afetam. Embora a ideia de que as cores tenham poder psíquico evoque o misticismo da Nova Era, experimentos cuidadosos repetidamente ligaram cores frias, como o azul e o verde, a respostas emocionais positivas, e tons quentes avermelhados a respostas negativas. Em um exemplo, os pesquisadores mostraram que os participantes tiveram um desempenho pior nos testes de QI marcados com a cor vermelha do que nos testes marcados com verde ou cinza; outro estudo descobriu que os sujeitos se saíram melhor em testes computadorizados de criatividade desenvolvidos em um fundo azul do que em um fundo vermelho. 

Sinais de dentro do corpo influenciam o comportamento tão poderosamente quanto as influências do meio ambiente, novamente usurpando o comando do cérebro e desafiando concepções idealizadas de sua supremacia. Um caminho particularmente poderoso para as interações recíprocas cérebro-corpo é o chamado eixo hipotálamo-pituitária-adrenal (HPA), nome dado a um conjunto de estruturas dentro e fora do cérebro que coordenam juntas a resposta de luta ou fuga. A ativação do eixo HPA é freqüentemente desencadeada por sinais cerebrais relacionados ao medo que levam à secreção de cortisol e adrenalina por uma glândula situada no topo dos rins. Esses hormônios, por sua vez, desencadeiam uma série de mudanças corporais que afetam a respiração, a frequência cardíaca, a acuidade sensorial e muitas outras variáveis, fornecendo feedback ao cérebro e fechando um circuito de interação mútua cérebro-corpo. Em alguns casos, o eixo HPA pode ser acionado de fora do cérebro, como na gravidez, quando um "surto" de cortisol tem origem na placenta. 

O eixo HPA fornece uma das rotas pelas quais nossos estados emocionais geralmente são conectados a mudanças corporais que se estendem para muito além do cérebro. O monitoramento de parâmetros fisiológicos observáveis ​​externamente, tais como a condutância da pele e a respiração, há muito apoia a ideia de que as emoções produzem respostas distintas, relacionadas às formas como elas são percebidas. Em um estudo de 2014, um grupo de pesquisadores liderado por Lauri Nummenmaa, da Universidade Aalto, na Finlândia, pediu aos participantes para descrever as sensações corporais que eles associavam a 14 emoções distintas. O resultado foi um impressionante conjunto de "mapas corporais" das emoções, revelando padrões variados de aumento e diminuição da sensibilidade associados a sentimentos como a raiva, o medo, a felicidade, a depressão, o amor e assim por diante. A habilidade dos sujeitos de relatar suas sensações enfatiza que as mudanças corporais são parte de como as emoções são experienciadas, e não apenas consequencias da atividade cerebral relacionada à emoção. 

Uma extraordinário achado feito nos últimos anos é o fato de que os micróbios que vivem nos intestinos também fazem parte da rede fisiológica que influencia nossas emoções. Alterar a população microbiana do intestino comendo alimentos ricos em bactérias [bacteria-rich foods] ou submetendo-se a um procedimento desconcertante denominado transplante fecal pode alterar características como a ansiedade e a agressividade. Um experimento-chave foi realizado com ratos, onde uma troca de micróbios intestinais entre uma linhagem de ratos normalmente tímida chamada BALB/c e uma linhagem mais extrovertida denominada NIH Swiss foi suficiente para inverter suas personalidades. Em pacientes humanos transplantados, os efeitos cognitivos e emocionais também são comuns. Alguns desses efeitos estão relacionados à correção da condição médica que levou à necessidade do transplante. Por exemplo, a insuficiência hepática ou renal provoca um acúmulo de toxinas como a amônia no sangue; isto, por sua vez, causa algumas dificuldades cognitivas que podem ser corrigidas pela substituição do órgão doente. No entanto, até mesmo procedimentos como a redução de estômago, que não curam propriamente uma doença, causam mudanças de personalidade em cerca de 50% dos pacientes.

Tais exemplos ilustram até que ponto o que acontece no cérebro é entrelaçado com o que acontece no corpo e no ambiente. Não há limite causal ou conceitual entre o cérebro e seu entorno. Alguns aspectos da mística cerebral - visões idealizadas do cérebro como algo inorgânico, hipercomplexo, autocontido e autônomo - falham quando analisamos mais de perto do que o cérebro é feito e como ele funciona. O envolvimento integrado entre cérebro, corpo e ambiente é precisamente o que faz com que ter uma mente biológica seja diferente de ter uma alma - e as implicações dessa diferença são tremendas. Mais importante ainda, a mística cerebral promove uma sensação enganosa de que o cérebro é o principal motor dos nossos pensamentos e ações. À medida que procuramos entender a conduta humana, a mística nos leva a pensar primeiro nas causas relacionadas ao cérebro e a prestar menos atenção a fatores fora de nossas cabeças. Isso nos leva a enfatizar demais o papel dos indivíduos e a subestimarmos o papel dos contextos em uma série de fenômenos culturais.

Na área da justiça criminal, por exemplo, alguns escritores sugerem que o cérebro do criminoso deveria ser culpado pelas transgressões. Este argumento frequentemente invoca o caso de Charles Whitman, que em 1966 cometeu um dos primeiros tiroteios em massa dos EUA, na Universidade do Texas. Nos meses que antecederam o crime, Whitman expôs seus problemas psicológicos [à profissionais do centro de saúde da universidade], e sua autópsia revelou que um grande tumor estava crescendo perto de uma parte do seu cérebro denominada amígdala, área relacionada ao processamento do estresse e à regulação das emoções. No entanto, ainda que os defensores da culpabilização do cérebro argumentem que o tumor cerebral de Whitman possa ter causado o crime, a realidade é que seu ato ocorreu num cenário com múltiplos fatores predisponentes: crescer com um pai violento, o recente divórcio de seus pais, reiteradas rejeições em sua carreira, abuso de substâncias, grande estatura física e acesso a armas de alta potência. Mesmo a alta temperatura no dia do crime - 37 graus Celsius - poderia ter contribuído para o comportamento agressivo de Whitman.

Culpar o cérebro pelo comportamento criminoso oferece uma possibilidade de escape dos antiquados princípios  da moralidade e da retribuição, mas certamente negligencia a extensa rede de influências que contribuem para qualquer situação. Na atual discussão sobre as causas da violência nos EUA, é mais importante do que nunca manter uma visão ampla de como múltiplos fatores trabalham juntos dentro e ao redor de cada indivíduo; problemas mentais, acesso a armas, influências da mídia e alienação social podem todos contribuir para o problema. Em outros contextos, nós ignoramos fatores semelhantes quando culpamos o cérebro pela dependência de drogas ou pelo mau comportamento do adolescente, ou ainda quando atribuimos apenas ao cérebro nossa criatividade e inteligência. Em cada caso, uma visão idealizada que simplesmente localiza boas e más qualidades pessoais no cérebro é surpreendentemente semelhante à certas perspectivas antiquadas que atribuíam a virtude e vício à alma metafísica. Uma visão contemporânea deve aceitar que qualquer ato de genialidade ou depravação surge de uma combinação de cérebro, corpo e ambiente trabalhando juntos.

A mística cerebral tem uma importância particular para a forma como nossa sociedade lida com o problema da doença mental. Isso em função do esforço generalizado de redefinir as doenças mentais como distúrbios cerebrais. Seus proponentes argumentam que tal redefinição posiciona os problemas psicológicos na mesma categoria que a gripe ou o câncer - doenças que não evocam o estigma social comumente associado aos transtornos psiquiátricos.  E de fato existem algumas evidências de que usar a linguagem dos distúrbios cerebrais contribui para a redução de barreiras para que os pacientes com problemas mentais procurem tratamento, um benefício importante. 

Em outros aspectos, no entanto, a reclassificação de doenças mentais como distúrbios cerebrais pode ser altamente problemática. Para os pacientes, atribuir problemas mentais a defeitos neurológicos intrínsecos implica em uma auto-estigmatização. Embora pessoas com "cérebros quebrados" não possam ser responsabilizadas moralmente ou instruídas a "simplesmente superar isso", a compreensão de que elas são irremediavelmente defeituosas pode ser igualmente prejudicial. Falhas biológicas podem ser mais difíceis de consertar do que lapsos morais, e pessoas com disfunção cerebral podem ser vistas como perigosas ou até mesmo como menos humanas. Essa atitude chegou a extremos com os nazistas, que assassinaram milhares de pacientes com problemas mentais como parte de seu programa de "eutanásia" durante a Segunda Guerra Mundial, mas persiste de formas mais sutis atualmente. Uma grande análise realizada em 2012 a respeito das mudanças de atitude com relação à doença mental constatou que não houve um aumento na aceitação social de pacientes com depressão ou esquizofrenia, apesar da crescente conscientização a respeito das contribuições neurobiológicas para tais condições.

Independentemente de suas implicações sociais, culpar o cérebro pelas doenças mentais pode ser cientificamente impreciso em muitos casos. Embora todos os problemas mentais envolvam o cérebro, os fatores causais subjacentes podem estar em outro lugar. No século XIX, a sífilis, doença bacteriana sexualmente transmissível, e a pelagra, doença relacionada à deficiência de vitamina B, estavam dentre as maiores causadoras de internação nos asilos para insanos na Europa e nos EUA. Um estudo mais recente estimou que cerca de 20% dos pacientes psiquiátricos têm alguma doença corporal que pode estar produzindo ou piorando sua condição mental; tais doenças incluem problemas cardíacos, pulmonares e endócrinos, que geram importantes efeitos cognitivos adversos. Pesquisas epidemiológicas descobriram correlações consideráveis ​​entre a incidência de doenças mentais e fatores como o pertencimento a uma minoria étnica, nascimento em uma determinada cidade e nascimento em certas épocas do ano. Embora estas correlações não tenham sido bem explicadas, elas enfatizam o provável papel dos fatores ambientais, para muito além do cérebro, no desenvolvimento dos problemas psiquiátricos. Nós devemos ser sensíveis a esses fatores se quisermos tratamentos e prevenções mais efetivas para os transtornos mentais. 

Em um nível ainda mais profundo, as convenções culturais circunscrevem a noção de doença mental. Há apenas 50 anos, a homossexualidade era classificada como uma patologia no manual oficial dos transtornos mentais da Associação Psiquiátrica Americana (APA). Na Rússia soviética, os dissidentes políticos algumas vezes eram internados com base em diagnósticos psiquiátricos que chocariam a maioria dos observadores atuais. No entanto, a preferência sexual ou a incapacidade de se curvar a uma autoridade na luta por uma causa virtuosa são ambos traços psicológicos para os quais eventualmente poderíamos encontrar certos correlatos biológicos. Isso não significa que a homossexualidade e a dissidência política sejam doenças cerebrais. É a sociedade, e não a neurobiologia, que define, no fim das contas, os limites da normalidade que determinam as categorias psiquiátricas [mental-health categories].

A mística cerebral exagera a contribuição do cérebro para o comportamento humano e, para alguns pesquisadores, também suscita visões notáveis ​​do papel do cérebro no futuro da própria humanidade. Nos círculos tecnofílicos, há cada vez mais falas a respeito da ideia de "hackear o cérebro" para melhorar a cognição humana. Essa noção evoca o tipo de intervenção sofisticada mas semi-subversiva que se pode fazer de um smartphone  ou de servidor do governo, mas a realidade geralmente é mais parecida com o tipo de "hacking" que se executaria com um facão [a expressão "to hack", em inglês significa, originalmente, "cortar"]
. Alguns dos mais antigos hacks cerebrais envolveram a destruição intencional de certas áreas do cérebro, atividade que se tornou famosa como parte do extinto procedimento da psicocirurgia que inspirou o romance de Ken Kesey, Um estranho no ninho (1962). O mais avançado dos atuais hacks cerebrais envolve o implante cirúrgico de eletrodos voltados para a estimulação direta ou para o registro do tecido cerebral. Essas intervenções podem restaurar certas funções básicas de pacientes com graves distúrbios de movimento ou paralisia - um feito incrivelmente impressionante, mas ainda assim muito distante dos aprimoramentos voltados para a expansão das habilidades normais. Essa distância não impediu empresários como Elon Musk ou a agência de defesa norte-americana DARPA de investir pesadamente em uma tecnologia que eles esperam um dia conecte, de forma rotineira, cérebros humanos saudáveis a computadores.

Mas este entusiasmo é em grande parte consequência de uma distinção artificial estabelecida entre o que acontece dentro e fora do cérebro. O filósofo Nick Bostrom, do Future of Humanity Institute, sediado em Oxford, afirma que "a maioria dos benefícios que você poderia se imaginar alcançando através de [implantes cerebrais] poderiam ser alcançados tendo os mesmos dispositivos instalados fora do seu corpo, por exemplo usando certas interfaces naturais como seus globos oculares, que podem projetar 100 milhões de bits por segundo diretamente no seu cérebro". Na verdade, a maioria de nós está familiarizada com o tipo de dispositivo voltado para o aprimoramento cognitivo que pode ser encontrado em nossas mesas, bolsos e bolsas, aumentando nossa capacidade de memorização e comunicação sem tocar em nenhum neurônio. É questionável se conectar dispositivos semelhantes a smartphones diretamente aos cérebros acrescentaria algo além de aborrecimento e distração. 

No campo da medicina, os esforços iniciais para restaurar a visão de pessoas cegas usando implantes cerebrais rapidamente cederam lugar a abordagens muito menos invasivas envolvendo próteses de retina, que alavancam a fisiologia natural do corpo de forma a proporcionar o processamento de informações visuais. Os implantes cocleares que restauram a audição de pacientes surdos baseiam-se na estratégia semelhante de serem conectados ao nervo auditivo no ouvido, em vez de ao próprio cérebro. Exceto nos pacientes mais debilitados, as próteses para restaurar ou melhorar o movimento também se beneficiam de interfaces com o corpo. Para dar aos amputados o controle sobre os membros artificiais mecanizados, uma técnica chamada "reinervação muscular direcionada" permite que os médicos conectem os nervos periféricos "frouxos" do membro original ausente a novos grupos musculares que, por sua vez, se comunicam com o dispositivo. Para melhorar a função motora em pessoas saudáveis, os exoesqueletos elétricos desenvolvidos por empresas como a Cyberdyne no Japão comunicam-se com o portador através de eletrodos instalados na superfície da pele, recebendo também informações do cérebro através de canais indiretos, mas progressivamente aprimorados. Em cada um desses exemplos, as interações naturais do cérebro com o corpo ajudam a pessoa a usar a prótese, potencializando, ao invés de negando, a continuidade entre o cérebro e o corpo. 

O caminho mais extremo da tecnologia futurista cerebral é a busca pela imortalidade através da preservação post-mortem dos cérebros humanos. Duas empresas atualmente se oferecem para extrair e preservar os cérebros dos "clientes" moribundos, que não desejam ir passivamente para a "outra vida". Os órgãos serão armazenados em nitrogênio líquido até que a tecnologia avance ao ponto (ainda distante) onde o cérebro possa ser restaurado para funcionar de alguma forma ou analisado em detalhes suficientes para "carregar" sua mente em um computador. Este empreendimento leva a mística cerebral ao seu desfecho lógico, abraçando totalmente a falácia de que a vida humana é redutível à função cerebral e de que o cérebro é apenas uma corporificação física da alma.

Embora a busca pela imortalidade por meio da preservação do cérebro cause pouco prejuízo para além das contas bancárias de algumas pessoas, esta busca também exemplifica por que a desmistificação do cérebro é tão importante. Quanto mais sentimos que nossos cérebros englobam nossa essência como indivíduos, e quanto mais acreditamos que os nossos pensamentos e ações emanam simplesmente do "pacote de carne" que temos em nossas cabeças, menos sensíveis seremos ao papel da sociedade e do ambiente ao nosso redor e menos nós faremos para cultivar nossa cultura compartilhada e nossos recursos - seja com relação ao comportamento criminoso, à criatividade, à doença mental ou a qualquer outro aspecto da vida humana. 


O cérebro é especial porque ele não nos remete a uma essência e também porque ele nos une ao ambiente de uma maneira que uma alma jamais faria. Se valorizamos nossas próprias experiências, nós devemos proteger e fortalecer os muitos fatores, internos e externos, que enriquecem as nossas vidas, de modo que o maior número possível de pessoas possa se beneficiar deles agora e no futuro. Nós precisamos reconhecer que somos muito mais do que nossos cérebros.
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