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Episódio The entire history of you |
Pois bem, mas como será possível criar falsas memórias? De acordo com a literatura sobre o assunto, tais memórias podem se originar basicamente de duas maneiras: de forma espontânea e de forma implantada ou sugerida. No primeiro caso, as falsas memórias são criadas naturalmente no processo de recordação e esquecimento. Funciona mais ou menos assim: você vive determinada situação; o tempo passa e você se esquece dos detalhes - você continua se lembrando do que aconteceu mas não tanto de como aconteceu; ao relembrar a situação ou contá-la para outra pessoa, você preenche as lacunas de sua lembrança com elementos e detalhes que não ocorreram de fato (ou que ocorreram de forma diferente) e ao imaginar estes novos detalhes você acaba por incorporá-los na memória; e a cada vez que você relembra ou narra esta situação, sua memória vai eliminando, acrescentando ou distorcendo cada um de seus elementos. Todo este processo, cabe apontar, acontece o tempo todo com todas as pessoas em todos os lugares. Ninguém está imune. Já no caso das falsas memórias implantadas ou sugeridas, a criação ocorre em função da influência, proposital ou não, de terceiros. Um bom exemplo disso pode ser visto no filme A caça - que já analisei anteriormente - no qual um psicólogo, por meio de perguntas tentenciosas, induz uma garotinha de 5 anos a criar uma falsa lembrança de abuso sexual. Um outro exemplo, mais recente, pode ser encontrado no filme Otherlife, atualmente disponível no Netflix, que retrata uma empresa que oferece a seus clientes a possibilidade de viver, ilusoriamente, experiências intensas em lugares magníficos através da utilização de um "software biológico", que consiste de uma substância que é colocada nos olhos das pessoas. A ideia desta tecnologia é criar novas (e falsas) memórias através da vivência virtual de tais situações. Como afirma uma das sócias da empresa Otherlife no filme, "criamos experiências que são difíceis de distinguir do que é real. Para o cérebro, fantasia e realidade são, quimicamente, a mesma coisa". Nestes dois casos - no primeiro de forma realista e no segundo de forma ficcional - vemos como uma memória pode ser criada através de influências e/ou interferências externas.
Em geral, tanto no caso das falsas memórias espontâneas quanto no caso das falsas memórias implantadas ou sugeridas, a imaginação tem um papel fundamental. Ao imaginarmos determinada cena que não ocorreu, seja por "iniciativa" própria ou induzidos por outra pessoa, acabamos por empalidecer ainda mais a já pálida distinção entre imaginação e memória - afinal, a memória nada mais é do que a imaginação de eventos do passado, ao passo que a imaginação nada mais é do que a criação de "imagens mentais" a partir de elementos advindos da memória (para imaginarmos um elefante rosa, por exemplo, precisamos ter memórias tanto da forma de um elefante quanto da cor rosa... jamais conseguiremos imaginar algo totalmente novo, sem que tenhamos memórias de seus elementos). Nas crianças, em especial, a distinção entre memória e imaginação é ainda mais pálida do que nos adultos - e não é por outro motivo que elas são muito mais susceptíveis à criação de falsas memórias. E este fato também explica porque muitas das falsas memórias mais vívidas e intensas dos adultos se referem a eventos alegadamente ocorridos na infância. Aliás, grande parte dos experimentos mais clássicos de "implantação de memórias" foram conduzidos de forma a criar falsas memórias de eventos infantis. Pense, por exemplo, no clássico experimento da pesquisadora Elizabeth Loftus, que conseguiu implantar em uma significativa parcela dos participantes da pesquisa (25%) a memória de que eles se perderam no shopping quando eram crianças. Neste caso, a memória foi "implantada" por meio de falsos relatos de parentes, que teriam descrito em detalhes esta situação inventada, gerando no participante uma imaginação da cena e, posteriormente, uma falsa memória. Outros experimentos igualmente criativos conseguiram implantar falsas memórias variadas, como a de que o partipante, quando criança, viajou de balão, se afogou e foi regatado por um salva-vidas ou presenciou uma posseção demoníaca. Em comum, todos estes experimentos se utilizaram de metodologias que tinham como objetivo criar nos participantes a imaginação de eventos que não ocorreram. Afinal, como bem sabem os pesquisadores, da imaginação para as falsas memórias é só um pulo.
Enfim, com esta breve discussão sobre a "ilusão da memória", gostaria de apontar para a natureza construtiva de nossas lembranças, isto é, para o fato - já amplamente comprovado por meio de experimentos na área da psicologia cognitiva - de que nossas memórias não são exatas como gostaríamos que elas fossem. Frequentemente nos esquecemos e distorcemos coisas que aconteceram e nos lembramos de coisas que não aconteceram... e não há nada que possamos fazer para evitar. Na verdade, o máximo que podemos fazer é aceitar a imperfeição de nossa memória e compreender, tal qual o protagonista do filme Ela, que "o passado é apenas uma história que contamos a nós mesmos". Muito embora todos estejamos, como o Agente K., "à procura de algo real", diferenciar realidade de fantasia, no caso das nossas memórias, não é algo nada simples.
Sugestão de video: A ficção da memória - Palestra da psicóloga Elizabeth Loftus