O curso de medicina é, disparado, o mais concorrido no Sisu - como era, anteriormente, em todos os vestibulares. É o curso mais desejado, não só no Brasil como em todo o mundo. Isto se deve, sem dúvida, a muitos fatores - como a tradição, o status, o mercado de trabalho, etc - mas eu gostaria de destacar um fator em especial: a visão extremamente idealizada da profissão médica disseminada pela mídia. Os médicos normalmente são retratados nos noticiários, novelas, séries e filmes como super-heróis, como pessoas poderosas, destemidas e infalíveis que, na batalha diária entre a vida e a morte, normalmente derrotam a morte e salvam vidas. Isto não deixa de ser verdade, claro - e longe de mim pretender falar da "realidade" da profissão médica, haja vista que em todas as profissões coexistem diversas realidades muito distintas entre si - mas certamente existe um lado B da profissão, um aspecto mais trágico e menos glamouroso, que raramente é retratado pela mídia. Pois este ano foram lançadas no Brasil duas obras que expõem algumas das feridas da profissão médica - especialmente do ramo da cirurgia - e que acabam por expor também os dilemas e limites dos sistemas de saúde.
A primeira obra que gostaria de indicar e comentar é o aclamado livro Sem causar mal: histórias de vida, morte e neurocirurgia, escrito pelo neurocirurgião inglês Henry Marsh, um dos mais conceituados e experientes profissionais desta especialidade cirúrgica na Inglaterra. O livro tem início com uma frase maravilhosamente trágica do médico René Leriche (1879-1955) segundo o qual "todo cirurgião traz dentro de si um pequeno cemitério, onde, de tempos em tempos, ele vai orar. É um lugar de amargura e arrependimentos, onde ele deve procurar uma explicação para os seus fracassos". A frase se encaixa perfeitamente à proposta do livro que é justamente escancarar o cemitério que Marsh carrega dentro de si e que inclui inúmeros erros e arrependimentos. Como se estivesse em um confessionário (ou em um divã), March expõe com muita sensibilidade todas as dores, mas também algumas delícias, de ser um neurocirurgião. De fato não se trata de um trabalho fácil; pelo contrário, não consigo imaginar tarefa mais desafiadora do que operar um órgão tão sensível e complexo como o cérebro humano, "o misterioso substrato de todo pensamento e sensação, de tudo o que é importante na vida humana" como ele próprio define. O grande problema das cirurgias no cérebro segundo Marsh é que "mesmo se houver um pequeno acidente, as consequências podem ser catastróficas". E o que não faltam no livro são histórias de pequenos acidentes com consequências catastróficas. Em uma cirurgia cerebral, qualquer erro, por mais ínfimo que seja, pode deixar a pessoa cega, paralizada ou até mesmo matá-la - o que se contrapõe diretamente ao Juramento de Hipócrates segundo o qual o médico deve, em primeiro lugar, "não causar mal" (daí o título do livro). Certamente os pacientes, em grande parte vítimas de terríveis tumores, precisam confiar no médico e acreditar que ele é um super-herói infalível, mas de fato ele é humano e como tal, está sujeito a erros. Marsh, nesse sentido, admite que errou muito ao longo de suas mais de três décadas como neurocirurgião. Como afirma em certo momento, "eu trouxe a felicidade a muitos pacientes com operações bem-sucedidas, mas houve também muitos fracassos terríveis. E a vida dos cirurgiões é pontuada por períodos de desespero profundo". Na mesma direção, o autor aponta que "cirurgiões tem dificuldade de admitir erros, tanto para si quanto para os outros, e há toda sorte de maneiras com as quais eles disfarçam seus erros e tentam colocar a culpa em outros fatores". Marsh, agora já no fim de sua carreira, já não quer mais agir desta forma e prefere encarar de frente os erros do passado que ainda lhe assombram. Seu livro talvez seja, neste sentido, uma tentativa de expiação destes fracassos - uma bela e sensível tentativa, eu acrescentaria. Um dos melhores livros do ano!
Já a segunda obra sobre a qual gostaria de trazer algumas reflexões é o filme Sob pressão, nova produção do diretor Andrucha Waddington (o mesmo dos maravilhosos Eu, tu, eles e Casa de Areia). O filme acompanha um dia no trabalho de uma equipe médica de um hospital público situado em uma favela do Rio de Janeiro. A equipe da chamada Unidade Vermelha, setor de emergência do hospital, é chefiada pelo cirurgião Evandro (vivido com intensidade pelo ator Júlio Andrade) e inclui também um anestesista, uma médica novata e mais dois residentes. O filme tem início com Evandro saindo momentaneamente do hospital para tomar seu café da manhã após uma longa noite de trabalho quando um tiroteio começa do outro lado do morro. Instantes depois chega uma ambulância trazendo dois sujeitos gravemente feridos na troca de tiros: um é policial e o outro é bandido. Junto com a ambulância chega também no hospital o capitão da PM, que pressiona fortemente o médico para que ele trate o policial e deixe o bandido morrer (agora você já sabe a inspiração para a polêmica enquete do Programa da Fátima Bernardes). Tal pressão deixa Evandro furioso. Ali dentro do hospital, vocifera o médico, quem manda é ele; é ele quem faz as escolhas; é ele quem decide que será tratado primeiro e quem terá de esperar - pois de fato as condições do hospital são tão precárias, tanto em termos de equipamento quanto de pessoal, que não há como cuidar de todos ao mesmo tempo. E no meio desta confusão chega ao hospital mais um sujeito baleado, desta vez um garoto filho de um poderoso dono de jornal. Tudo ao mesmo tempo e agora. No restante do filme os médicos correm de um lado para o outro, brigam entre si e fazem cirurgias complexas na mais completa precariedade, enfim, "se viram nos 30" com quase nada - e tudo isso sob uma imensa pressão dos pacientes, dos familiares, dos policiais, dos traficantes, da administração do hospital, etc. É tanta pressão e precariedade que eu passei o filme todo me perguntando: como eles aguentam esta rotina de guerra dia após dia, meu deus? Enfim, esqueça aquelas séries norte-americanas de hospital - como Grey's Anatomy, House ou E.R. - nas quais médicos esbeltos, cheirosos e descansados trabalham junto a equipes numerosas em locais assépticos e equipados. Na realidade infernal exposta em Sob pressão - que retrata de forma bastante fiel o trabalho de muitos médicos no Brasil - não há beleza, glamour ou status. Há trabalho duro, escolhas difíceis, noites insones e muita, mas muita pressão.
A primeira obra que gostaria de indicar e comentar é o aclamado livro Sem causar mal: histórias de vida, morte e neurocirurgia, escrito pelo neurocirurgião inglês Henry Marsh, um dos mais conceituados e experientes profissionais desta especialidade cirúrgica na Inglaterra. O livro tem início com uma frase maravilhosamente trágica do médico René Leriche (1879-1955) segundo o qual "todo cirurgião traz dentro de si um pequeno cemitério, onde, de tempos em tempos, ele vai orar. É um lugar de amargura e arrependimentos, onde ele deve procurar uma explicação para os seus fracassos". A frase se encaixa perfeitamente à proposta do livro que é justamente escancarar o cemitério que Marsh carrega dentro de si e que inclui inúmeros erros e arrependimentos. Como se estivesse em um confessionário (ou em um divã), March expõe com muita sensibilidade todas as dores, mas também algumas delícias, de ser um neurocirurgião. De fato não se trata de um trabalho fácil; pelo contrário, não consigo imaginar tarefa mais desafiadora do que operar um órgão tão sensível e complexo como o cérebro humano, "o misterioso substrato de todo pensamento e sensação, de tudo o que é importante na vida humana" como ele próprio define. O grande problema das cirurgias no cérebro segundo Marsh é que "mesmo se houver um pequeno acidente, as consequências podem ser catastróficas". E o que não faltam no livro são histórias de pequenos acidentes com consequências catastróficas. Em uma cirurgia cerebral, qualquer erro, por mais ínfimo que seja, pode deixar a pessoa cega, paralizada ou até mesmo matá-la - o que se contrapõe diretamente ao Juramento de Hipócrates segundo o qual o médico deve, em primeiro lugar, "não causar mal" (daí o título do livro). Certamente os pacientes, em grande parte vítimas de terríveis tumores, precisam confiar no médico e acreditar que ele é um super-herói infalível, mas de fato ele é humano e como tal, está sujeito a erros. Marsh, nesse sentido, admite que errou muito ao longo de suas mais de três décadas como neurocirurgião. Como afirma em certo momento, "eu trouxe a felicidade a muitos pacientes com operações bem-sucedidas, mas houve também muitos fracassos terríveis. E a vida dos cirurgiões é pontuada por períodos de desespero profundo". Na mesma direção, o autor aponta que "cirurgiões tem dificuldade de admitir erros, tanto para si quanto para os outros, e há toda sorte de maneiras com as quais eles disfarçam seus erros e tentam colocar a culpa em outros fatores". Marsh, agora já no fim de sua carreira, já não quer mais agir desta forma e prefere encarar de frente os erros do passado que ainda lhe assombram. Seu livro talvez seja, neste sentido, uma tentativa de expiação destes fracassos - uma bela e sensível tentativa, eu acrescentaria. Um dos melhores livros do ano!