A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) publicou hoje, em sua página no Facebook, esta pequena nota, transcrita na íntegra abaixo:
"A personagem Carminha, vivenciada pela atriz Adriana Esteves na novela Avenida Brasil, da TV Globo, tem mostrado constantes situações de humor, enquanto Nina (Débora Falabella) tenta continuar com o plano de vingança. Embora a situação seja de ficção, muitas pessoas encontram a raiva como um desejo supremo de satisfazer uma vontade interior. É bom lembrar que em sinais de descontrole visitar um especialista pode evitar que um pequeno problema emocional se torne uma tragédia" (confira aqui):
Então quer dizer que os psiquiatras agora tratam raiva também? Eu não sabia que raiva tinha virado transtorno. Eu pensava que era uma coisa da vida. Ruim, certamente, mas parte da vida, assim como a tristeza, a inveja e o rancor. Devo estar enganado. Ironias à parte, gostaria de destacar que esta nota é muito representativa daquilo que o psiquiatra Octavio Serpa Jr. (fonte) chama de processo de patologização no normal, em curso no mundo contemporâneo. Este processo é facilmente constatável ao se observar a evolução dos principais “manuais de doenças”, utilizados internacionalmente na medicina e na área “psi”: o CID (Classificação Internacional de Doenças) e o DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais), o primeiro já na décima versão (CID-10), caminhando para a décima primeira, enquanto o segundo na quarta (DSM-IV), caminhando para a quinta. Ao analisar o movimento de uma versão para a seguinte e da primeira versão para a última, como fez Serpa Jr, podemos verificar um aumento considerável no número de doenças e transtornos catalogados. As próximas versões destes manuais provavelmente ampliarão ainda mais o número e a amplitude daquilo que “cientificamente” é considerado patológico.

Neste sentido, vários autores apontam que pouco se tem refletido, especialmente na formação na área da saúde, sobre a diferença entre normal e patológico ou entre saúde e doença. Identificamos, como Serpa Jr, a falta “de uma sólida discussão conceitual e prática acerca da fronteira entre o normal e o patológico”. Observa-se que, para muitos profissionais, doenças físicas e – o mais problemático – transtornos mentais, são considerados entidades objetivas, dotadas de vida própria e dispostas a quem quiser enxergar. Parecem desconsiderar as determinações sociais, políticas e econômicas – vide o forte lobby da gigante indústria farmacêutica sobre os médicos e outros profissionais da área da saúde e sobre a sociedade de uma forma geral – que contribuem para as atuais definições de normal e patológico. E ainda, afirma Serpa Jr., “na medida em que é flutuante esta demarcação, o debate acerca do normal e do patológico se atualiza constantemente, exigindo daqueles que militam na Clínica um esforço permanente de reflexão”. Porque se não refletirmos profunda e constantemente, corremos o risco de confundir emoções da vida, como a raiva e a tristeza, com transtornos mentais passíveis de serem tratados com medicamentos.