À uma primeira vista, esta proposta de aproximar os dois campos parece interessante e mesmo pertinente - afinal, o que haveria de errado em tentar juntar dois pontos de vista antagônicos em prol de uma visão mais ampla do cérebro e da psiquê humana? Pode até ser. No entanto, alguns questionamentos se fazem necessários: será mesmo possível aproximar ou até mesmo fundir as duas visões? Conectar psicanálise e neurociências não será uma tarefa impossível como tentar unir as perspectivas políticas de esquerda e de direita ou teologias distintas como a budista e a católica? Mas para além da questão de se tal aproximação/união é possível, a grande questão na minha opinião é como isto seria possível. Na prática (e mesmo na teoria), como funcionaria a neuropsicanálise? Mark Solms não parece ter uma resposta muito convincente para esta questão. Segundo ele, as neurociências podem contribuir com a psicanálise ao fornecer os métodos científicos de investigação que esta não possui. Com isto algumas das teorias psicanalíticas poderiam ser testadas através de experimentos realizados por neurocientistas. Como afirmou em uma entrevista, "na psicanálise o problema é que ela é subjetiva demais. Não há controle científico. Não há objetividade. Não há teste de hipóteses. Não há forma de falsear hipóteses. Isso também é perigoso. Leva a especulação sem verificação. Trazendo os dois juntos corrige o que há de errado nos dois campos". Cabe apontar, que para Solms não só as neurociências poderiam hipoteticamente confirmar alguns pontos da teoria psicanalítica como já o teriam feito. Segundo ele, a existência de uma "cognição inconsciente", base da teoria psicanalítica, já teria sido comprovada pela neurociência contemporânea. Será mesmo? Não creio. Na minha visão e de outros autores, o inconsciente cerebral disseminado pelas neurociências contemporâneas não é igual ao inconsciente freudiano. Em comum, essas duas noções de inconsciente possuem apenas a ideia de que existem atividades mentais ou cerebrais que funcionam sem que tenhamos consciência. No entanto, o inconsciente disseminado por Freud é, nas palavras da historiadora e psicanalista Elisabeth Roudinesco, "um inconsciente psíquico, dinâmico e afetivo, organizado em diversas instâncias (o eu, o isso e o supereu)", ao passo que o inconsciente cerebral diz respeito, basicamente, aos mecanismos automáticos do funcionamento neural. Enfim, tratam-se de visões muito distintas - o que significa dizer que as neurociências não teriam como comprovar o inconsciente freudiano. Isto pra não falar do restante da teoria psicanalítica. Será mesmo que as neurociências teriam como comprovar ou refutar o Complexo de Édipo, os estágios de desenvolvimento psicossexuais, o funcionamento tripartite da mente ou ainda conceitos como recalque, catexia ou pulsão? Não creio.
Como já disse em outro post, psicanálise e neurociências são áreas muito diferentes e possuem objetivos e métodos muito distintos. Acreditar que as neurociências teriam a capacidade de confirmar ou refutar a teoria freudiana, além de colocar muita expectativa nesta área do conhecimento, ainda estabelece uma hierarquia entre as duas áreas - a neurociência, no caso, estaria no topo e seria ela a dar a última palavra sobre a psicanálise. E é esta ideia que leva o psicanalista Jorge Forbes a dizer que "a neuropsicanálise é um cavalo de Tróia que porta um projeto reducionista no ventre". Segundo ele, ao sugerir uma hierarquia entre os dois campos, Solms estaria supervalorizando uma visão biológica e, portanto, reducionista da mente. Outro problema desta "junção ecumênica", nas palavras de Forbes, é que ela tenta unir "paradigmas incompatíveis". Dizer nesse sentido que a psicanálise tem o mesmo objeto de estudos que as neurociências - o cérebro - não é correto. Embora a mente certamente esteja ligada ao cérebro - nem mesmo Freud negava isso - o ponto de vista da psicanálise é puramente mental ou psíquico. Mesmo que o conhecimento neurológico tenha sido importante em um período inicial da carreira de Freud, a psicanálise acabou por trilhar um caminho distinto e distante das ciências do cérebro - segundo Forbes, este "corte epistemológico" foi concretizado com a publicação do livro Interpretação dos sonhos, em 1900. E tudo isto significa que tentar juntar as duas áreas seria um desafio fadado ao fracasso - seguindo a ideia de "junção ecumênica", seria como tentar fundir ou integrar duas religiões muito diferentes entre si. Um meio termo, diferente da pretensão de juntar os dois conhecimentos, seria "simplesmente" colocar neurociências e psicanálise para dialogar. As pesquisadoras Monah Winograd e Nathalia Sisson defendem, nesse sentido, que "para garantir a possibilidade e a integridade de uma cooperação entre as duas áreas, deve-se, antes de qualquer outro passo, definir uma relação de respeito mútuo entre a psicanálise e as neurociências". A grande questão é que para concretizar este objetivo de cooperação não seria necessário criar uma nova área de conhecimento. Se a proposta é o diálogo e não a fusão porque propor, então, algo como uma neuropsicanálise? Acho que isso nem Freud explica.
Sugestões de leitura:
- (Artigo) Roberto Calazans, Dayane Pena e Marcioni Brito. Neuropsicanálise: um projeto abandonado por Freud. Mental. 2012.
- (Artigo) Estevão Guerra e José Ignácio Xavier. Perspectivas sobre o projeto de constituição da neuropsicanálise: um olhar crítico. Ciência e Cognição. 2008
- (Artigo) Marcia Davidovich e Monah Winograd. Psicanálise e neurociências: um mapa dos debates. Psicologia em estudo. 2010.
- (Artigo) Yusaku Soussumi. O que é neuro-psicanálise. Ciência e cultura. 2004.
- (Artigo) Mark Solms. Freud está de volta. Mente e cérebro. 2004.
- (Artigo) Jorge Forbes. Complexo de Cientista. Caderno Mais! Folha de São Paulo. 2004.
- (Livro) Karen Kaplan-Solms e Mark Solms. O que é neuro-psicanálise: a real e difícil articulação entre a neurociência e a psicanálise. Terceira margem. 2004.