A falta de uma fundamentação sólida para a proposta materialista se torna mais evidente quando passamos a analisar sua relação com o avanço das investigações empíricas. De fato, passadas algumas décadas desde o início desse entusiasmo geral, podemos perguntar então se já temos pelo menos um esboço do que seria essa nova teoria neurocientífica da natureza humana. Apenas a título de ilustração, em uma recente coletânea de entrevistas com alguns dos mais destacados nomes nesta área – incluindo os principais expoentes do materialismo contemporâneo (por exemplo, Crick, Dennett e os Churchlands) –, descobrimos que, depois de 40 anos de pesquisas neurofisiológicas, não temos sequer um vislumbre de como resolver os problemas mais básicos acerca da consciência humana. No entanto, não faltam apostas e opiniões gerais muito vagas, na maior parte das vezes incompatíveis entre si. E quando eles são questionados se ainda vai demorar muito para que a promessa se realize, a resposta mais precisa que recebemos vem da própria Patricia Churchland: "Nós realmente não sabemos quanto tempo teremos que esperar".
Gostaria de explorar esse ponto mais a fundo. Enquanto o futuro sonhado de uma superteoria não chega, o que os materialistas têm a nos oferecer é uma linguagem metafórica, quase ficcional, mediante a qual atribuem ao cérebro ou a partes dele uma série de capacidades e realizações que antes eram atributos da pessoa humana como um todo. Surge, assim, a "surpreendente hipótese" (the astonishing hypothesis) de que somos apenas um pacote de neurônios ou o somatório do comportamento de neurônios e suas moléculas. Surgem, também, ideias como "o cérebro emocional", "o cérebro volitivo", "o cérebro executivo", "o cérebro crente", "o cérebro que modifica a si mesmo", etc. (...) Descobrimos então, não sem um certo espanto, que o auge do nosso progresso científico consiste na substituição da noção de sujeito pela de hemisfério ou área cerebral. Quem agora "conhece", "faz avaliações", "interpreta", "cria", "procura explicações" etc. não é mais uma pessoa, mas sim um pedaço de matéria (parte do cérebro). Acontece que a utilização dessas metáforas encantadas, tomadas como explicações reais dos fenômenos, produz o resultado oposto do que era prometido, a saber, uma explicação científica. Afinal, não devemos esquecer que analogias e metáforas só são válidas quando, ao lado das semelhanças detectadas, também as diferenças são ressaltadas. Caso essas últimas desapareçam, então a relação passa a ser de identidade e não mais de analogia. Como procurei argumentar anteriormente, a atribuição real de propriedades e capacidades psicológicas a objetos físicos é característica de um estágio bem primitivo da inteligência humana, a saber, o animismo, que todo materialista diz querer combater. E o que é pior, isso representa um retorno a uma metafísica muito menos crítica e ainda mais ingênua do que a que eles pretendem superar. Trata-se aqui, portanto, de pseudoexplicações, que de modo algum respondem às questões fundamentais, e cuja função é, mais uma vez, meramente retórica. (...)
Os materialistas contemporâneos, ao anunciarem suas ideias como uma grande novidade, repetem estratégias discursivas e formas de raciocínio muito semelhantes às de seus correligionários do passado, sem que tenham consciência disso. E mesmo que não haja uniformidade ou consenso entre eles sobre o que seja precisamente o cérebro, como nos mostra a historiografia recente da neurociência, é essa atitude geral em relação a ele – assim como a fragilidade dos argumentos e a falta de dados empíricos para apoiá-la – que tem sido repetida, e que eu quero aqui enfatizar. É como se todo o período de nossa história intelectual que vai da segunda metade do século XVIII até o fim do século XIX fosse colocado entre parêntesis, para que essa nova aurora materialista possa soar como algo realmente novo. Na verdade, porém, trata-se apenas de uma nova roupagem para velhas esperanças, que acabaram se convertendo em um artigo de fé. É este fenômeno cíclico, que aparece em nossa cultura nos últimos 300 anos, que estou chamando de "o eterno retorno do materialismo".
Cabe, contudo, perguntar: haveria um sentido nesse eterno retorno? Num primeiro momento, podemos entendê-lo apenas como uma ingenuidade teórico-conceitual, oriunda do desprezo ou desconhecimento em relação à própria história da ciência e da filosofia. Mas nossa tese é a de que ele revela uma significação mais profunda, que diz respeito a uma falta de atenção para os limites epistêmicos do ser humano. Ou seja, o que todos os materialistas estão tentando, pelo menos desde o século XVIII, é eliminar a autonomia da dimensão subjetiva da experiência humana, reduzindo-a ou reformulando-a em termos da dimensão objetiva das ciências naturais. Na linguagem da filosofia da mente contemporânea, trata-se de explicar a experiência de 1ª pessoa através do relato de 3ª pessoa, fato este que tem se revelado sistematicamente fracassado. Ora, a abstração do sujeito nas ciências naturais é apenas um recurso metodológico, útil para a elaboração de teorias físicas precisas, mas de forma alguma uma prova de sua não existência ou de sua irrelevância para a compreensão da natureza humana. É como se dois zoólogos, nadando em um lago infestado de crocodilos famintos, acreditassem que ao parar de falar de crocodilos estariam eliminando o perigo iminente de serem devorados por estes. E é exatamente essa tentativa dos materialistas de eliminar a autonomia da esfera subjetiva que tem se mostrado fracassada ao longo do tempo. Nesse sentido, o eterno retorno do materialismo representa um eterno esquecimento, por parte de cientistas e filósofos, dos limites do conhecimento humano, não exatamente de seu conteúdo empírico, mas sim de suas condições universais. Ora, a perspectiva do sujeito da experiência parece não poder ser eliminada ou traduzida em uma linguagem puramente objetiva, embora possa ser correlacionada a esta última. Nesse caso, de nada adiantaria o acúmulo de novos dados empíricos para resolver os impasses e os paradoxos do materialismo contemporâneo. Isso nos permite suspeitar que a nova visão da natureza humana que os materialistas querem alcançar talvez seja utópica e ilusória, já que os limites das condições de nosso conhecimento científico permanecem inalterados.
Para finalizar minha reflexão, gostaria de explorar a relação entre ciência contemporânea e a criação de ideologias. Em primeiro lugar, é importante reafirmar que o materialismo não é uma consequência lógica e inevitável das pesquisas científicas. Se assim fosse, não poderia haver cientistas antimaterialistas. De fato, porém, muitos cientistas, desde o século XIX, vêm apontando os impasses da perspectiva materialista e sua impossibilidade de solução. Além disso, muitos neurocientistas contemporâneos de grande prestígio são antimaterialistas. Em segundo lugar, a exaltação e/ou reprodução ingênua e irrefletida de um falso ideal de ciência acaba levando à criação de mitos, que obstruem a compreensão do que seja realmente a atividade científica e de como ela se desenvolveu historicamente. E é nesse contexto de uma assimilação acrítica da ciência contemporânea que corremos o risco de aceitar uma ideologia (cientificismo, materialismo científico) como se fosse um produto científico genuíno, e de participar de uma cruzada ideológica sem saber que se trata de uma. Ora,
se a ciência tem uma função primordial, ela consiste na promoção do exame crítico da realidade, mas não na criação de histórias fantásticas e mitos alienantes. E se não podemos encontrar respostas definitivas para certas perguntas que temos levantado sistematicamente ao longo dos tempos, isso talvez aponte para certos limites de nosso conhecimento, o que nos obriga a recordar permanentemente os obstáculos que persistem, para não corrermos o risco de cair em novas formas de dogmatismo. Sendo assim, se a metafísica dualista é um resquício de nossa ingenuidade teórica e de nossa ignorância epistêmica, por que deveríamos considerar menos ingênua uma corrente de pensamento que atribui propriedades mágicas ao cérebro, transformando-o assim em um novo fetiche? No discurso neurocientífico contemporâneo, parece realmente haver menos ciência do que normalmente se imagina.
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