O que nos torna humanos? O que nos diferencia dos outros animais e o que nos diferenciaria de eventuais máquinas pensantes? Com relação aos animais, Aristóteles afirmava que o ser humano é o único "animal político", querendo com isso dizer que somente nós temos a capacidade de pensar e agir racionalmente em prol do bem comum. Já para Descartes a grande diferença é que o homem seria o único dotado de alma. Os outros animais, para o filósofo, não passariam de máquinas desalmadas e, portanto, irracionais. A dor expressa por um cachorro, por exemplo, nada mais seria do que uma espécie de defeito na máquina. Após Darwin, o entendimento sobre o que nos diferencia dos outros animais se alterou consideravelmente, pois passou-se a entender tais diferenças como sendo de grau e não mais de qualidade ou natureza. O cérebro e, como consequência, a mente humana, da mesma forma que todo o nosso corpo, seriam, nesse sentido, frutos da evolução por seleção natural. E isto significa que nossas características mais peculiares também podem ser encontradas, em alguma medida, nos outros animais - e é esta proximidade que, de alguma forma, justifica e, por outro lado, torna problemática a utilização de animais para fins científicos. Nossa linguagem, por exemplo, nos faz realmente únicos, mas isto não significa que estejamos totalmente sozinhos neste quesito. Outros animais, como cachorros, golfinhos e macacos, também possuem sistemas de comunicação - menos elaborados que o nosso, certamente, mas que lhes permitem atingir determinados fins. Da mesma forma, me parece consensual ou pelo menos majoritário entre os cientistas contemporâneos o entendimento de que outros animais possuem emoções, memórias e inteligência, embora em menor complexidade do que nos seres humanos.
quarta-feira, 30 de novembro de 2016
O que nos torna humanos? Reflexões a partir da série "Humans" (SEM SPOILERS)
terça-feira, 29 de novembro de 2016
"O experimento de Milgram" e a psicologia social no cinema
Experimentos do campo da psicologia social já foram retratados algumas vezes no cinema. A clássica experiência da "prisão de Stanford" - que colocou 24 voluntários em uma prisão simulada dentro da Universidade de Stanford, sendo doze caracterizados como prisioneiros e doze como guardas - inspirou pelo menos três filmes: o alemão A experiência (no original Das experiment, 2001), a fraca versão norte-americana Detenção (no original The experiment, 2010) e, mais recentemente, o também norte-americano O experimento de aprisionamento de Stanford (no original The Stanford Prison Experiment, 2015). Embora todos estes filmes sejam inspirados no experimento original realizado em Agosto de 1971 pelo psicólogo Phillip Zimbardo, somente o último pretende-se fiel aos acontecimentos. Os dois primeiros extrapolam os fatos reais tentando imaginar o que teria acontecido se o experimento de aprisionamento tivesse durado mais do que seis dias, como de fato durou (o experimento real teve de ser interrompido antes do prazo previsto de duas semanas devido à alguns episódios de violência entre presos e guardas). Existem ainda outros filmes que retratam experiências relevantes para o campo da psicologia social, ainda que não tenham sido conduzidas propriamente por psicólogos. Um deles é o documentário Olhos azuis (no original Blue eyed, 1996), que retrata a impactante intervenção sobre racismo e preconceito conduzida pela socióloga Jane Elliot. O outro é assustador filme alemão A onda (no original Des welle, 2008), que ficcionaliza um experimento real sobre o nazismo realizado pelo professor de história Ron Jones em uma escola da cidade de Palo Alto, nos EUA.
Pois a mais recente produção a retratar uma experiência do campo da psicologia social é o filme Experimentos (no original Experimenter, 2015). Escrito e dirigido por Michael Almereyda, o filme retrata a vida e o trabalho do famoso psicólogo social Stanley Milgram, com destaque para o controverso experimento sobre obediência à autoridade conduzido por ele na década de 1960. O título original do filme, Experimenter, seria melhor traduzido por Experimentador, mas a distribuidora brasileira preferiu intitulá-lo de Experimentos, sugerindo, desta forma, que o filme não trata apenas de um experimento mas de vários - e de fato, inúmeros experimentos conduzidos por Milgram ao longo de sua carreira, assim como por colegas como Solomon Asch, são retratados. De uma forma geral, o filme é péssimo: o roteiro é muito mal construído, a estratégia de colocar Milgram falando para a câmera é terrível e não parece ter outro propósito além de mastigar o conteúdo para o público, os atores principais (que incluem Peter Sarsgaard como Milgram e Winona Ryder como sua esposa Sasha), apesar de bons em outras produções, aqui não conseguem empolgar e os cenários em geral são absolutamente toscos - isto para não falar da nada sutil propaganda da Coca-Cola presente em diversas cenas. Certamente, grande parte desses problemas se devem ao baixo orçamento do filme, mas isto de forma alguma justifica as terríveis escolhas do roteiro e direção. Ainda assim, apesar de tudo isso, o filme vale a pena ser visto - por um simples motivo: os experimentos que ele retrata, com bastante fidelidade, são fascinantes e deviam ser mais conhecidos pela população. Retratá-los em um filme certamente contribui para que isto aconteça.
Pois bem, imagino que você já tenha ouvido falar do controverso experimento de Milgram sobre obediência à autoridade. Se não for o caso - e mesmo se for - gostaria de explicar brevemente como ele foi conduzido, o que no filme é retratado com maiores detalhes. Em primeiro lugar, um "experimentador", vestido com um jaleco, conduzia dois sujeitos, supostamente voluntários, para uma sala e explicava para eles como iria funcionar o experimento. Ele lhes dizia, enganosamente, que se tratava de uma investigação sobre a influência da punição sobre o aprendizado e que um deles iria atuar como "professor" e o outro como "aluno". O "aluno" (L na imagem) ficaria atrás de uma parede, incomunicável com o "professor" (T), respondendo determinadas questões de múltipla escolha através de um painel. A cada erro cometido, o professor deveria aplicar um choque no aluno, sendo uma voltagem mais alta a cada erro. A grande sacada/sacanagem do experimento é que o "aluno" era um ator contratado por Milgram que, de fato, não recebia choque algum, apenas fingia recebê-lo. Desta forma, na medida em que as punições iam sendo aplicadas, o aluno/ator dava alguns gritos, demonstrando que não estava bem e que queria sair logo dali - o que era ouvido pelo "professor". Em alguns momentos, o aluno ficava quieto, parecendo ter desmaiado ou morrido. Comumente, o "professor" demonstrava preocupação e desconforto para o "experimentador" (E), que ficava logo atrás. No entanto, o experimentador era instruído a falar simplesmente: "você deve continuar" ou então "você não tem escolha". E grande parte das pessoas, cerca de 65%, continuou até o fim, até a mais alta voltagem ser supostamente aplicada no aluno. Poucos, muito menos do que imaginava e mesmo desejava Milgram, resistiram à autoridade do experimentador e ao fato deste se colocar como responsável por tudo o que acontecesse com o "aluno".
Milgram, que nasceu em 1933, era filho de pai húngaro e mãe romena, ambos judeus, que imigraram da Europa para os Estados Unidos fugindo do nazismo em ascenção e se estabeleceram em Nova Iorque. Sua história familiar foi decisiva para a criação deste experimento. A grande questão que intrigava Milgram era como o ser humano foi (e é) capaz de contribuir diretamente com atos atrozes e desumanos, como foi o caso do Holocausto. Olhando para a câmera, Milgram afirma no filme: "é isso o que está por trás dos experimentos de obediência. O pressentimento de que eu estava perseguindo o que mais me incomodava. Como seres humanos civilizados participam de desumanos atos de destruição? Como o genocídio foi implementado tão sistematicamente, de forma tão eficiente? E como os autores destes assassinatos conseguiram viver com suas consciências?". Outra questão que perseguia Milgram era: é possível não obedecer à autoridade? É possível resistir? Embora grande parte das pessoas continuasse o experimento, apesar do desconforto de estarem supostamente causando dor a outro ser humano, alguns resistiram. No filme é retratada a situação de um engenheiro elétrico holandês, que já sentira a dor de um choque e, por isso, se recusa a continuar. O experimentador, como de praxe, afirma que ele não tem escolha, ao que o sujeito rebate: "Por que eu não tenho escolha? Eu vim aqui por vontade própria. Pensei que poderia ajudar em um projeto de pesquisa. Mas se tiver que ferir alguém, se eu estivesse no lugar dele... Não, não posso continuar. Provavelmente já fui longe demais. Sinto muito". Ele resistiu, em grande medida, porque sentiu empatia com o "aluno" - e ele o sentiu porque já experimentou como é levar choques, o que não é o caso de muitos. Enfim, não é nada simples resistir. É muito mais fácil ceder à autoridade, abrindo mão da própria responsabilidade, e continuar causando dor a uma outra pessoa. É muito mais "normal" e esperado, agir como Adolf Eichmann, funcionário do sistema nazista, que teria dito durante seu julgamento - em uma tentativa de justificar suas ações - que "eu nunca fiz nada grande ou pequeno sem instruções expressas de meus superiores" (tal julgamento é tema do maravilhoso filme Hannah Arendt). Esta "banalidade do mal", segundo expressão de Arendt, parece ser, infelizmente, a norma. No entanto, como conclui Milgram no filme, dirigindo-se diretamente ao público, "você poderia dizer que somos marionetes. Mas eu acredito que somos marionetes com percepção, com consciência. Às vezes, podemos ver os cordões e, talvez, a nossa consciência seja o primeiro passo para nossa libertação". Que somos profundamente influenciados pelo contexto e pelas circunstâncias, disto não há dúvida - a psicologia social já demonstrou isto de inúmeras formas ao longo dos anos. A grande questão, ainda não resolvida, é se (e como) podemos resistir e agir autonomamente.
Pois bem, imagino que você já tenha ouvido falar do controverso experimento de Milgram sobre obediência à autoridade. Se não for o caso - e mesmo se for - gostaria de explicar brevemente como ele foi conduzido, o que no filme é retratado com maiores detalhes. Em primeiro lugar, um "experimentador", vestido com um jaleco, conduzia dois sujeitos, supostamente voluntários, para uma sala e explicava para eles como iria funcionar o experimento. Ele lhes dizia, enganosamente, que se tratava de uma investigação sobre a influência da punição sobre o aprendizado e que um deles iria atuar como "professor" e o outro como "aluno". O "aluno" (L na imagem) ficaria atrás de uma parede, incomunicável com o "professor" (T), respondendo determinadas questões de múltipla escolha através de um painel. A cada erro cometido, o professor deveria aplicar um choque no aluno, sendo uma voltagem mais alta a cada erro. A grande sacada/sacanagem do experimento é que o "aluno" era um ator contratado por Milgram que, de fato, não recebia choque algum, apenas fingia recebê-lo. Desta forma, na medida em que as punições iam sendo aplicadas, o aluno/ator dava alguns gritos, demonstrando que não estava bem e que queria sair logo dali - o que era ouvido pelo "professor". Em alguns momentos, o aluno ficava quieto, parecendo ter desmaiado ou morrido. Comumente, o "professor" demonstrava preocupação e desconforto para o "experimentador" (E), que ficava logo atrás. No entanto, o experimentador era instruído a falar simplesmente: "você deve continuar" ou então "você não tem escolha". E grande parte das pessoas, cerca de 65%, continuou até o fim, até a mais alta voltagem ser supostamente aplicada no aluno. Poucos, muito menos do que imaginava e mesmo desejava Milgram, resistiram à autoridade do experimentador e ao fato deste se colocar como responsável por tudo o que acontecesse com o "aluno".
Stanley Milgram (1933-1984) |
quarta-feira, 23 de novembro de 2016
Medicina sem glamour: reflexões sobre o livro "Sem causar mal" e o filme "Sob pressão"
O curso de medicina é, disparado, o mais concorrido no Sisu - como era, anteriormente, em todos os vestibulares. É o curso mais desejado, não só no Brasil como em todo o mundo. Isto se deve, sem dúvida, a muitos fatores - como a tradição, o status, o mercado de trabalho, etc - mas eu gostaria de destacar um fator em especial: a visão extremamente idealizada da profissão médica disseminada pela mídia. Os médicos normalmente são retratados nos noticiários, novelas, séries e filmes como super-heróis, como pessoas poderosas, destemidas e infalíveis que, na batalha diária entre a vida e a morte, normalmente derrotam a morte e salvam vidas. Isto não deixa de ser verdade, claro - e longe de mim pretender falar da "realidade" da profissão médica, haja vista que em todas as profissões coexistem diversas realidades muito distintas entre si - mas certamente existe um lado B da profissão, um aspecto mais trágico e menos glamouroso, que raramente é retratado pela mídia. Pois este ano foram lançadas no Brasil duas obras que expõem algumas das feridas da profissão médica - especialmente do ramo da cirurgia - e que acabam por expor também os dilemas e limites dos sistemas de saúde.
A primeira obra que gostaria de indicar e comentar é o aclamado livro Sem causar mal: histórias de vida, morte e neurocirurgia, escrito pelo neurocirurgião inglês Henry Marsh, um dos mais conceituados e experientes profissionais desta especialidade cirúrgica na Inglaterra. O livro tem início com uma frase maravilhosamente trágica do médico René Leriche (1879-1955) segundo o qual "todo cirurgião traz dentro de si um pequeno cemitério, onde, de tempos em tempos, ele vai orar. É um lugar de amargura e arrependimentos, onde ele deve procurar uma explicação para os seus fracassos". A frase se encaixa perfeitamente à proposta do livro que é justamente escancarar o cemitério que Marsh carrega dentro de si e que inclui inúmeros erros e arrependimentos. Como se estivesse em um confessionário (ou em um divã), March expõe com muita sensibilidade todas as dores, mas também algumas delícias, de ser um neurocirurgião. De fato não se trata de um trabalho fácil; pelo contrário, não consigo imaginar tarefa mais desafiadora do que operar um órgão tão sensível e complexo como o cérebro humano, "o misterioso substrato de todo pensamento e sensação, de tudo o que é importante na vida humana" como ele próprio define. O grande problema das cirurgias no cérebro segundo Marsh é que "mesmo se houver um pequeno acidente, as consequências podem ser catastróficas". E o que não faltam no livro são histórias de pequenos acidentes com consequências catastróficas. Em uma cirurgia cerebral, qualquer erro, por mais ínfimo que seja, pode deixar a pessoa cega, paralizada ou até mesmo matá-la - o que se contrapõe diretamente ao Juramento de Hipócrates segundo o qual o médico deve, em primeiro lugar, "não causar mal" (daí o título do livro). Certamente os pacientes, em grande parte vítimas de terríveis tumores, precisam confiar no médico e acreditar que ele é um super-herói infalível, mas de fato ele é humano e como tal, está sujeito a erros. Marsh, nesse sentido, admite que errou muito ao longo de suas mais de três décadas como neurocirurgião. Como afirma em certo momento, "eu trouxe a felicidade a muitos pacientes com operações bem-sucedidas, mas houve também muitos fracassos terríveis. E a vida dos cirurgiões é pontuada por períodos de desespero profundo". Na mesma direção, o autor aponta que "cirurgiões tem dificuldade de admitir erros, tanto para si quanto para os outros, e há toda sorte de maneiras com as quais eles disfarçam seus erros e tentam colocar a culpa em outros fatores". Marsh, agora já no fim de sua carreira, já não quer mais agir desta forma e prefere encarar de frente os erros do passado que ainda lhe assombram. Seu livro talvez seja, neste sentido, uma tentativa de expiação destes fracassos - uma bela e sensível tentativa, eu acrescentaria. Um dos melhores livros do ano!
Já a segunda obra sobre a qual gostaria de trazer algumas reflexões é o filme Sob pressão, nova produção do diretor Andrucha Waddington (o mesmo dos maravilhosos Eu, tu, eles e Casa de Areia). O filme acompanha um dia no trabalho de uma equipe médica de um hospital público situado em uma favela do Rio de Janeiro. A equipe da chamada Unidade Vermelha, setor de emergência do hospital, é chefiada pelo cirurgião Evandro (vivido com intensidade pelo ator Júlio Andrade) e inclui também um anestesista, uma médica novata e mais dois residentes. O filme tem início com Evandro saindo momentaneamente do hospital para tomar seu café da manhã após uma longa noite de trabalho quando um tiroteio começa do outro lado do morro. Instantes depois chega uma ambulância trazendo dois sujeitos gravemente feridos na troca de tiros: um é policial e o outro é bandido. Junto com a ambulância chega também no hospital o capitão da PM, que pressiona fortemente o médico para que ele trate o policial e deixe o bandido morrer (agora você já sabe a inspiração para a polêmica enquete do Programa da Fátima Bernardes). Tal pressão deixa Evandro furioso. Ali dentro do hospital, vocifera o médico, quem manda é ele; é ele quem faz as escolhas; é ele quem decide que será tratado primeiro e quem terá de esperar - pois de fato as condições do hospital são tão precárias, tanto em termos de equipamento quanto de pessoal, que não há como cuidar de todos ao mesmo tempo. E no meio desta confusão chega ao hospital mais um sujeito baleado, desta vez um garoto filho de um poderoso dono de jornal. Tudo ao mesmo tempo e agora. No restante do filme os médicos correm de um lado para o outro, brigam entre si e fazem cirurgias complexas na mais completa precariedade, enfim, "se viram nos 30" com quase nada - e tudo isso sob uma imensa pressão dos pacientes, dos familiares, dos policiais, dos traficantes, da administração do hospital, etc. É tanta pressão e precariedade que eu passei o filme todo me perguntando: como eles aguentam esta rotina de guerra dia após dia, meu deus? Enfim, esqueça aquelas séries norte-americanas de hospital - como Grey's Anatomy, House ou E.R. - nas quais médicos esbeltos, cheirosos e descansados trabalham junto a equipes numerosas em locais assépticos e equipados. Na realidade infernal exposta em Sob pressão - que retrata de forma bastante fiel o trabalho de muitos médicos no Brasil - não há beleza, glamour ou status. Há trabalho duro, escolhas difíceis, noites insones e muita, mas muita pressão.
A primeira obra que gostaria de indicar e comentar é o aclamado livro Sem causar mal: histórias de vida, morte e neurocirurgia, escrito pelo neurocirurgião inglês Henry Marsh, um dos mais conceituados e experientes profissionais desta especialidade cirúrgica na Inglaterra. O livro tem início com uma frase maravilhosamente trágica do médico René Leriche (1879-1955) segundo o qual "todo cirurgião traz dentro de si um pequeno cemitério, onde, de tempos em tempos, ele vai orar. É um lugar de amargura e arrependimentos, onde ele deve procurar uma explicação para os seus fracassos". A frase se encaixa perfeitamente à proposta do livro que é justamente escancarar o cemitério que Marsh carrega dentro de si e que inclui inúmeros erros e arrependimentos. Como se estivesse em um confessionário (ou em um divã), March expõe com muita sensibilidade todas as dores, mas também algumas delícias, de ser um neurocirurgião. De fato não se trata de um trabalho fácil; pelo contrário, não consigo imaginar tarefa mais desafiadora do que operar um órgão tão sensível e complexo como o cérebro humano, "o misterioso substrato de todo pensamento e sensação, de tudo o que é importante na vida humana" como ele próprio define. O grande problema das cirurgias no cérebro segundo Marsh é que "mesmo se houver um pequeno acidente, as consequências podem ser catastróficas". E o que não faltam no livro são histórias de pequenos acidentes com consequências catastróficas. Em uma cirurgia cerebral, qualquer erro, por mais ínfimo que seja, pode deixar a pessoa cega, paralizada ou até mesmo matá-la - o que se contrapõe diretamente ao Juramento de Hipócrates segundo o qual o médico deve, em primeiro lugar, "não causar mal" (daí o título do livro). Certamente os pacientes, em grande parte vítimas de terríveis tumores, precisam confiar no médico e acreditar que ele é um super-herói infalível, mas de fato ele é humano e como tal, está sujeito a erros. Marsh, nesse sentido, admite que errou muito ao longo de suas mais de três décadas como neurocirurgião. Como afirma em certo momento, "eu trouxe a felicidade a muitos pacientes com operações bem-sucedidas, mas houve também muitos fracassos terríveis. E a vida dos cirurgiões é pontuada por períodos de desespero profundo". Na mesma direção, o autor aponta que "cirurgiões tem dificuldade de admitir erros, tanto para si quanto para os outros, e há toda sorte de maneiras com as quais eles disfarçam seus erros e tentam colocar a culpa em outros fatores". Marsh, agora já no fim de sua carreira, já não quer mais agir desta forma e prefere encarar de frente os erros do passado que ainda lhe assombram. Seu livro talvez seja, neste sentido, uma tentativa de expiação destes fracassos - uma bela e sensível tentativa, eu acrescentaria. Um dos melhores livros do ano!
segunda-feira, 21 de novembro de 2016
Doutor Estranho: a mente entre a matéria e o espírito
O filme Doutor Estranho, nova produção da Marvel, conta a história do competente e arrogante neurocirurgião Stephen Strange - ou melhor, Doutor Stephen Strange, como ele sempre afirma - que sofre um terrível acidente de carro e tem os nervos de suas mãos, essenciais para seu ofício, gravemente lesionados. Desesperado e ansioso para voltar a trabalhar, Strange recorre a todos os procedimentos possíveis na medicina ocidental: passa por diversas cirurgias, faz fisioterapia e toma medicações. Tudo em vão. Até que certo dia ele fica sabendo de um sujeito, chamado Jonathan Pangborn, que teria se recuperado completamente de uma séria e debilitante lesão medular. Strange decide procurá-lo e este lhe afirma que sua cura teria sido ocasionada por uma "intervenção" realizada em um local denominado Kamar-Taj. E como não tinha mais nada a perder, pois já havia perdido sua principal fonte de subsistência e realização pessoal, isto é, seu trabalho, Strange vende todos os seus bens e viaja até a cidade de Katmandu no Nepal em busca deste local misterioso - que acaba encontrando depois de um tempo. E descobre que trata-se de um templo sagrado onde vivem um grupo de monges dedicados a proteger o universo das forças do mal. Mas logo que adentra o templo, Strange ainda não sabe de nada disso e pensa que se trata de uma espécie de clínica onde espera receber algum tipo de tratamento experimental para seu problema. No entanto, assim que encontra a Anciã descobre que o tal "tratamento" não é nada daquilo que ele imaginou. O primeiro diálogo entre eles, que reproduzo integralmente abaixo, é bastante interessante e ilustrativo de uma discussão que farei em seguida sobre a natureza da mente.
Anciã: Você passou por muitos procedimentos. Sete, certo?
Strange: Sim.... E você curou um homem chamado Pangborn? Ele era paralítico.
- De certo modo.
Strange: Sim.... E você curou um homem chamado Pangborn? Ele era paralítico.
- De certo modo.
- Ajudou-o a andar de novo.
- Sim.
- Como corrigiu uma fratura completa na [vértebra] C7 e C8?
- Como corrigiu uma fratura completa na [vértebra] C7 e C8?
- Eu não corrigi. Ele não conseguia andar. Convenci-o que conseguia.
- Você não está dizendo que era psicossomático, não é?
- Quando você reconecta um nervo cortado, quem o cura é você ou o corpo?
- As células.
- E elas são programadas para se juntarem de maneira muito específica.
- E elas são programadas para se juntarem de maneira muito específica.
- Isso mesmo.
- E se eu dissesse que seu corpo poderia ser convencido a se ligar de todas as formas possíveis.
- E se eu dissesse que seu corpo poderia ser convencido a se ligar de todas as formas possíveis.
- Você está falando de regeneração celular. Isso é tecnologia médica de ponta. Por isso trabalha aqui, sem uma junta governamental? Digo... quão experimental é seu tratamento?
- Um pouco.
- Então descobriu um modo de reprogramar as células nervosas para se curarem?
- Não, Sr. Strange. Sei como reorientar o espírito para uma melhor cura corporal. (...)
- [Irritado] Eu gastei o meu último centavo para vir aqui. Uma passagem só de ida e está falando de cura através de fé?
- [Você] é um homem que olha o mundo por uma fechadura...e passou a vida tentando expandir essa fechadura.Ver mais, saber mais. E agora, sabendo que pode fazê-lo, de maneiras que não pode imaginar... você rejeita a possibilidade?
- Estou rejeitando pois não creio em historinhas sobre chakras, energia ou poder da fé. Não existe essa coisa de espírito! Somos feitos de matéria, nada mais. Você só é uma partícula minúscula e temporária em um universo indiferente.
Logo após Strange dizer isso, a anciã lhe dá um forte empurrão que faz com que sua alma saia de seu corpo e o veja de cima. Em seguida a alma de Strange faz uma alucinante e psicodélica viagem para outros mundos e universos incrivelmente surreais - as imagens desta primeira "viagem" são fantásticas! E logo após ele voltar ao seu corpo, embasbacado com a experiência, a Anciã lhe explica que "na raiz da existência, mente e matéria se encontram" e que "os pensamentos moldam a realidade". A partir deste momento Strange adere sem mais questionamentos à filosofia de sua, agora, mestre. Pois bem, o que acho muito interessante neste primeiro diálogo entre a Anciã e Strange é que ele traz à tona um "conflito" ao mesmo tempo antigo e atual sobre a natureza da mente. Em um pólo deste conflito nós temos os materialistas ou fisicalistas, para quem tudo o que existe - inclusive a mente - é puramente material ou físico. A mente é o cérebro, afirmam. Para os adeptos desta corrente monista, majoritária no campo científico contemporâneo, não existe alma ou espírito assim como não existem anjos, deuses ou demônios. No outro pólo deste "conflito" nós temos os anti-materialistas ou pós-materialistas, para quem a realidade - incluindo a mente - não se reduz à matéria. A mente não é o cérebro, afirmam. Para os adeptos desta corrente dualista (que inclui os espiritualistas), embora a mente se relacione com cérebro e dependa dele de alguma maneira, "ela" não pode ser reduzida a "ele". Mente e cérebro seriam substâncias ou propriedades distintas. Certamente, entre estas duas posições extremas é possível encontrar muitas outras visões intermediárias sobre a natureza da mente, mas para os propósitos deste post tal divisão, ainda que artificial, é suficiente.
Finalmente, reforçando ainda mais o primeiro motivo, está o fato de que existe um significativo número de cientistas anti ou pós-materialistas e até mesmo espiritualistas - e isto não faz deles cientistas piores ou menores necessariamente. Um marco bastante significativo da existência de um movimento anti-materialista no âmago do mundo científico foi a publicação em 2014 do Manifesto por uma ciência pós-materialista, assinado por mais de cem cientistas de diversas áreas do conhecimento de todo o mundo. Neste importante documento (traduzido aqui), os cientistas criticam de forma veemente a forma dogmática com que a crença no "materialismo científico" tem sido defendida por muitos cientistas. Segundo eles, "este sistema de crença prega que a mente nada mais é que fruto da atividade cerebral e que nossos pensamentos não podem ter qualquer efeito sobre nossos cérebros e corpos, nossas ações e nosso mundo físico". Em contraponto a esta visão, os cientistas pós-materialistas defendem que "a mente representa um aspecto da realidade tão primordial quanto o mundo físico" e que "há uma profunda inter-conectividade entre a mente e mundo físico". Alertam ainda que o pós-materialismo não exclui a matéria, mas também não se limita a ela. Enfim, o que este manifesto aponta e defende é que o materialismo não é a única forma de se enxergar o mundo, de se conceber a mente ou de se fazer ciência. É apenas uma narrativa possível, dentre muitas outras. Diferentes visões, inclusive as anti-materialistas devem ter espaço e serem levadas em consideração e não simplesmente descartadas como sendo anti-científicas. E tudo isto significa que tanto a visão materialista defendida inicialmente pelo Doutor Strange quando a visão anti-materialista e espiritualista defendida pela Anciã podem coexistir, sem que uma necessariamente se sobreponha ou anule a outra. Tais visões não passariam, neste sentido, de diferentes atos de fé.
Kaecilius: Diga-me, Mestre...
Strange: Olhe, meu nome é Doutor Stephen Strange.
- É um doutor? Um médico, um cientista. Você entende as leis do Universo. Tudo envelhece. Tudo morre. No final, nosso Sol se extingue. Nosso Universo esfria e perece. Mas a Dimensão Negra é um lugar além do tempo... Este mundo não tem de morrer, Doutor. Ele pode tomar seu lugar junto a tantos outros. Como parte de um todo. Um todo grandioso e belo. Podemos todos viver para sempre
- Sério? O que você ganha com essa utopia de Nova Era?
- O mesmo que você e todo mundo. Vida. Vida eterna. As pessoas pensam em termos de bem e mal, mas na verdade o tempo que é nosso inimigo real. O tempo mata tudo.
- E as pessoas que você matou?
- Não são nada. Ciscos momentâneos em um Universo indiferente. Sim, você entende. Você entende o que estamos fazendo. O mundo não é o que deveria ser. A humanidade anseia pela vida eterna. Um mundo além do tempo, pois o tempo nos escraviza. O tempo é um insulto. A morte é um insulto. Doutor, Não queremos governar este mundo. Queremos salvá-lo e entregá-lo a Dormammu que é o ápice de toda evolução. A razão principal por existirmos. A Maga Suprema defende a existência. O que levou você a Kamar-Taj, Doutor? Esclarecimento? Poder? Você foi para ser curado, assim como todos nós. Kamar-Taj é um lugar que acolhe os problemáticos. Todos fomos com a promessa de cura, mas, ao invés disso, a Anciã nos deu truques baratos. A magia de verdade ela guarda para si mesma. Já se perguntou como ela pôde viver tanto?
- Não. Vi os rituais no Livro de Cagliostro.
- Então você sabe. O ritual me deu o poder para derrubar a Anciã e destruir os Sanctums dela. Para que venha a Dimensão Negra. Pois o que a Anciã esconde, Dormammu compartilha. A vida eterna. Ele não é o destruidor de mundos, Doutor. Ele é o salvador.
- E as pessoas que você matou?
- Não são nada. Ciscos momentâneos em um Universo indiferente. Sim, você entende. Você entende o que estamos fazendo. O mundo não é o que deveria ser. A humanidade anseia pela vida eterna. Um mundo além do tempo, pois o tempo nos escraviza. O tempo é um insulto. A morte é um insulto. Doutor, Não queremos governar este mundo. Queremos salvá-lo e entregá-lo a Dormammu que é o ápice de toda evolução. A razão principal por existirmos. A Maga Suprema defende a existência. O que levou você a Kamar-Taj, Doutor? Esclarecimento? Poder? Você foi para ser curado, assim como todos nós. Kamar-Taj é um lugar que acolhe os problemáticos. Todos fomos com a promessa de cura, mas, ao invés disso, a Anciã nos deu truques baratos. A magia de verdade ela guarda para si mesma. Já se perguntou como ela pôde viver tanto?
- Não. Vi os rituais no Livro de Cagliostro.
- Então você sabe. O ritual me deu o poder para derrubar a Anciã e destruir os Sanctums dela. Para que venha a Dimensão Negra. Pois o que a Anciã esconde, Dormammu compartilha. A vida eterna. Ele não é o destruidor de mundos, Doutor. Ele é o salvador.
Do outro lado, temos a "mocinha" da história, a Anciã, que é uma forte defensora da mortalidade, embora ela própria seja imortal. Segundo ela é "a morte é que dá sentido à vida". Se não morrêssemos, jamais nos preocuparíamos em dar significado e valor à nossa existência. É a inevitabilidade de nossa finitude que faz com que busquemos preencher os nossos dias da melhor forma possível. O que acho bastante interessante no filme é que ele inverte a lógica tradicional ao colocar como vilão um sujeito que defende a imortalidade e como "mocinha" uma mulher que embora seja tão espiritualista como o vilão, defende a importância da morte para a vida.
quinta-feira, 17 de novembro de 2016
O que os filmes e séries nos ensinam sobre a memória e o esquecimento?
1ª Lição: Existem diversos tipos de memória e de esquecimento. Há muitas décadas psicólogos cognitivos e neurocientistas defendem a ideia de que os seres humanos possuem diversos tipos de memória assim como diversos tipos de esquecimento ou amnésia. Uma divisão básica é aquela que diz respeito à duração da memória. Os psicólogos falam, neste sentido, em memórias de trabalho ou sensoriais, que são aquelas que duram apenas alguns poucos segundos, em memórias de curto prazo, que permanecem por horas e dias, e também em memórias de longo prazo, que se mantém por décadas. Falam também em memória implícita ou não-declarativa, que se refere à "lembrança" de atividades automatizadas como andar de bicicleta ou escovar os dentes, e em memória explícita ou declarativa, que diz respeito à lembrança de fatos e eventos específicos (memória episódica) assim como de palavras e conceitos (memória semântica). Da mesma forma, os psicólogos postulam - e diversos casos clínicos comprovam - a existência de pelo menos três tipos de amnésia. A chamada amnésia anterógrada diz respeito à incapacidade de adquirir novas informações após um trauma ou lesão. Neste caso, são as memórias de curto prazo que são afetadas, mas não as de longo prazo. No caso da chamada amnésia retrógrada, acontece o oposto: as memórias de curto prazo permanecem intactas e o sujeito consegue adquirir novas informações, mas as memórias mais antigas, anteriores ao momento da lesão, se desfazem. Finalmente, existiria uma amnésia global, em que tanto as memórias de curto quanto as de longo prazo ficariam comprometidas - isto acontece, por exemplo, com pessoas em estágio avançado da Doença de Alzheimer.
Título original de Apagados: Embers |
Mas e quanto aos filmes? Pois bem, existem inúmeras obras cinematográficas que retratam situações de esquecimento e com isso reiteram a compreensão de que existem diversas formas de esquecer. Pense, por exemplo, no fascinante Amnésia (2000), no divertido Como se fosse a primeira vez (2004) ou então no assustador Apagados (2016) - e eu não poderia me esquecer da simpática personagem Dory de Procurando Nemo (2003) e Procurando Dory (2016). Em todos estes casos, os personagem possuem amnésia anterógrada, o que significa que não conseguem reter novas informações. No caso de Amnésia e Como se fosse a primeira vez, a patologia é desencadeada por um trauma - no primeiro devido a uma lesão decorrente de um assalto e no segundo devido a um acidente de carro. Já no caso de Apagados, que retrata um mundo pós-apocalíptico no qual uma infecção teria acabado com a capacidade de memorização dos seres humanos, trata-se efetivamente de uma amnésia global, já que os personagens não retém memórias recentes e também não se lembram de nada do seu passado - e nem de quem são, o que é ainda mais assustador. Na verdade, se observarmos com atenção, o que a infecção teria causado aos humanos seria uma perda da memória explícita, já que os personagens se lembram, por exemplo, de como andar de bicicleta ou cortar lenha. Aliás, a fala de um personagem do filme (que não possui nome, como todos os outros) ilustra bem como funciona a memória implícita ou não-declarativa: "Se você me perguntasse se eu sei cortar lenha, eu não saberia dizer. Mas você põe um machado na minha mão e eu sei cortar lenha", ele diz para um outro personagem. Pois é assim mesmo que funciona a memória implícita: depois que aprendemos alguma habilidade, passamos a executá-la de modo tão automático que comumente nos esquecemos como e em que contexto a aprendemos.
Eu não mencionei acima, mas existem inúmeros filmes que retratam pessoas com a Doença de Alzheimer e outros tipos de demência, cujos primeiros sintomas normalmente incluem falhas na aquisição de novas informações, ou seja, na memória de curto prazo. Veja, por exemplo, os filmes Para sempre Alice (2014), Longe dela (2006), Diário de uma paixão (2004), Família Savage (2007), Iris (2001), O filho da noiva (2001), Poesia (2010) ou Alive Inside (2014). Em todos esses casos é possível observar que os sujeitos afetados por uma demência vão perdendo gradualmente a memória: em um primeiro momento apresentam dificuldades na memória de curto prazo e posteriormente perdem até mesmo as de longo prazo. Em alguns casos, chegam até mesmo a se esquecer quem são - como é o caso dos personagens do filme Apagados.
Existem ainda outros filmes que retratam casos de amnésia retrógrada. Veja por exemplo Identidade Bourne (2002), Cine Majestic (2001), Cidade dos sonhos (2001), Na noite do passado (1942), Busca mortal (1991) ou O homem sem passado (2001). Em todas essas obras os personagens, após sofrerem algum tipo de acidente, perdem as memórias do passado e comumente se esquecem de quem são - mas continuam retendo novas informações. Eu não poderia deixar de citar também os filmes Brilho eterno de uma mente sem lembranças (2004) e O pagamento (2003). No primeiro filme, um clássico contemporâneo, o protagonista procura uma empresa chamada Lacuna para que esta apague de seu cérebro todas as memórias de sua ex-namorada (que já havia passado anteriormente pelo mesmo procedimento) - ou seja, ele espera que a empresa lhe cause uma amnésia retrógrada específica, apagando as memórias associadas a seu antigo amor. Já no filme O pagamento, o protagonista é um engenheiro da computação que é constantemente contratado por grandes empresas para trabalhar em projetos secretos. E sempre que finaliza tais projetos, ele passa por um processo onde parte de sua memória de curto prazo é apagada para evitar que informações sigilosas vazem. Neste caso, da mesma forma que no filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças, o protagonista é submetido a uma amnésia retrógrada específica, referente a certas memórias ou a certo período de tempo.
Cena do episódio 01x03 da série Black Mirror |
Não acredita? Então assista ao episódio The entire history of you (2011) da série Black Mirror. Neste episódio, todos os personagens possuem um implante nos olhos que registra de modo absolutamente fiel, em um grande filme, "toda a sua história". Tudo o que eles vivem - na verdade tudo o que veem e ouvem - fica registrado em um "grão" (um potente HD) inserido atrás de suas orelhas. E tudo isto permite que as memórias de cada um sejam fielmente reproduzidas em telas, inclusive naquelas instaladas em seus olhos - um processo chamado no episódio de "re-fazer" (re-do). Enfim, o que esta distopia nos permite perceber - ou relembrar - é que nossas memórias definitivamente não funcionam desta forma. Nossas lembranças não são filmes que ficam armazenados dentro dos nossos cérebros mas sim reconstruções imperfeitas e criativas de situações que vivemos no passado. Quando recordamos determinado evento não trazemos de volta em nossa mente as cenas originais mas as refazemos a partir do que pensamos e sentimos no presente. Isto aparece também no fantástico desenho animado Divertidamente (2015), que retrata de uma forma bastante fiel, ainda que com significativos erros, o funcionamento de nossa mente. No filme, cada memória criada pela personagem central gera uma bolinha que é conduzida para um enorme arquivo central - ou então descartada para o lixão das memórias (como de fato acontece com a maioria do que vivemos). Mas o que é mais interessante é que cada memória é colorida por uma determinada emoção primária (alegria, tristeza, raiva ou nojo), podendo ser também recolorida posteriormente por outra emoção. E isto sugere - e é assim que de fato acontece - que podemos nos lembrar de maneiras completamente diferentes da mesma situação dependendo de nosso humor no presente. Se você está feliz com seu namorado ou namorada no momento, muito provavelmente você se lembrará de situações positivas com ele ou ela. Mas se vocês brigaram por algum motivo, há uma grande chance desta raiva que você sente agora contaminar lembranças suas com esta pessoa e até mesmo "recolorir negativamente" episódios anteriormente vistos como positivos. Enfim, como bem afirma o protagonista do belíssimo filme Ela (2013), "o passado é apenas uma história que contamos a nós mesmos". Na verdade o mais correto seria dizer que o passado é "apenas" o conjunto de histórias que contamos e recontamos e que construimos e reconstruimos continuamente a nós mesmos ao longo de nossas vidas. Nossas memórias, feliz ou infelizmente, não passam de ficções inspiradas na vida real.
Cena de Apagados: mentes e mundo destroçados |
Update 19/11/16: A importância da memória social (que poderíamos chamar simplesmente de história) para a vida coletiva é tema também de dois outros filmes, ambos distopias, que acabei esquecendo de mencionar: Fahrenheit 451 (1966) e O doador de memórias (2014). O primeiro, um clássico do diretor François Truffaut inspirado na obra de Ray Bradbury, retrata um sociedade do futuro no qual os livros são proibidos e os bombeiros não tem mais a função de controlar incêndios mas, justamente o contrário, de atear fogo nos livros apreendidos - o título do filme se refere, neste sentido, à temperatura de combustão do papel. A ideia por trás da proibição é que os livros trariam infelicidade e gerariam discórdia entre as pessoas e entre estas e o Estado. No entanto, como reação a esta política, surgem diversos grupos rebeldes em que cada um de seus membros possui em sua mente um livro integralmente decorado. São as pessoas-livro, que pretendem manter a memória social viva, a despeito do desejo do Estado de anulá-la. Já o segundo filme retrata uma sociedade onde não há mais doenças, guerras ou sofrimentos. Todos vivem numa completa e artificial felicidade - propiciada por um medicamento muito semelhante ao Soma do livro/filme Admirável Mundo Novo. Nesta sociedade as pessoas também não possuem memórias e nem tem acesso a livros - por motivos muito semelhantes aos de Fahrenheit 451: lembrar-se (e ler) gera reflexão, eventualmente sofrimento e potencialmente rebelião. No entanto, com o objetivo de manter as memórias sociais e, ao mesmo tempo preservar a população dos efeitos deletérios destas memórias, a uma única pessoa é delegado o conhecimento da história e cabe a esta pessoa não só manter viva a memória coletiva mas também guiar os demais com sua sabedoria. E de tempos em tempos esta tarefa muda de mãos, sendo este processo de transferência denominado doação de memórias. Pois bem, o que estes filmes trazem de reflexão é que as memórias sociais são fundamentais para a vida coletiva e não podemos de maneira alguma abrir mão delas entregando-as para o controle de um Estado soberano - afinal, como bem afirma o cartaz do filme O doador de memórias, "Quando não há memórias, a liberdade é apenas uma ilusão".
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