segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Como assim "neuropsicanálise"?

Em um post anterior, discuti criticamente a polêmica frase do neurocientista Ivan Izquierdo de que a neurociência teria superado a psicanálise. Meu argumento, em síntese, foi de que isto nunca poderia acontecer pois se tratam de áreas muito diferentes entre si. Em outro post analisei a relação de Freud com a neurologia, concluindo que Freud de fato nunca abandonou a biologia. O que ele fez, em função de restrições técnicas e metodológicas, foi se afastar de uma perspectiva neurológica em direção a um entendimento puramente (ou majoritariamente) psíquico da mente humana. Gostaria agora de discutir a emergência da neuropsicanálise, novo campo que pretende fazer dialogar - e quem sabe até, fundir - neurociências e psicanálise. Embora não seja fácil apontar uma "data de nascimento" precisa, é possível dizer que a neuropsicanálise emergiu entre o final da década de 1990 e o início dos anos 2000. Um marco, nesse sentido, foi a criação da revista científica Neuropsychoanalysis, cujo primeiro número foi publicado em 1999 - e que possuía em seu conselho editorial neurocientistas célebres como Antônio Damásio, Oliver Sacks e o "prêmio Nobel" Eric Kandel assim como psicanalistas conceituados como André Green, Otto Kernberg e Charles Brenner. Pouco tempo depois, em Julho de 2000, foi realizado em Londres o I Congresso Internacional de Neuropsicanálise, ocasião em que foi fundada a Sociedade Internacional de Neuropsicanálise, definida pelo site oficial como uma "rede internacional de organizações sem fins lucrativos" que visa criar um diálogo entre as neurociências e a psicanálise. Também de acordo com o site, a neuropsicanálise "está interessada nas bases neurobiológicas de como agimos, pensamos e sentimos. Quando começamos a conectar a atividade do cérebro com o modelo psicanalítico da mente, mesmo nos níveis mais profundos, uma compreensão verdadeiramente dinâmica pode emergir". Então esta parece ser a ideia: conectar, unir, aproximar neurociências e psicanálise.

O grande nome da neuropsicanálise, sem dúvida alguma, é o psicanalista e neuropsicólogo sul-africano Mark Solms, primeiro presidente da referida Sociedade e autor de uma considerável obra sobre o assunto - no Brasil, três livros dele já foram traduzidos e publicados: "Da neurologia à psicanálise", "O que é Neuro-psicanálise?",  e "Estudos clínicos em neuro-psicanálise" (estes dois últimos foram escritos em parceria com sua esposa Karen Kaplan-Solms). Segundo esta reportagem da revista The atlantic, Mark  começou a se interessar pela temática cerebral após seu irmão cair do telhado aos 6 anos de idade e sofrer um traumatismo craniano. Esta experiência demonstrou para ele a importância do cérebro na constituição do que somos. Após este acidente seu irmão não foi mais o mesmo, e nem sua família. "Tudo isso porque este órgão [o cérebro] não estava funcionando como antes", afirmou. Alguns anos depois, Mark iniciou e concluiu o curso de Psicologia, fez o mestrado em Psicologia Aplicada e o doutorado em Neuropsicologia. E paralelamente ao doutorado, realizado em Londres, fez a formação em Psicanálise. Seu percurso acadêmico evidencia, assim, um desejo de estudar e entender os dois campos e também de aproximá-los. Afinal, para Solms, psicanálise e neurociência são apenas dois pontos de vista sobre um mesmo objeto: o cérebro. Só que enquanto a psicanálise olha para o cérebro de dentro para fora a neurociência olha para o cérebro de fora para dentro. A ideia de uma neuropsicanálise passaria então justamente por aproximar e integrar estes dois pontos de vista.

À uma primeira vista, esta proposta de aproximar os dois campos parece interessante e mesmo pertinente - afinal, o que haveria de errado em tentar juntar dois pontos de vista antagônicos em prol de uma visão mais ampla do cérebro e da psiquê humana? Pode até ser. No entanto, alguns questionamentos se fazem necessários: será mesmo possível aproximar ou até mesmo fundir as duas visões? Conectar psicanálise e neurociências não será uma tarefa impossível como tentar unir as perspectivas políticas de esquerda e de direita ou teologias distintas como a budista e a católica? Mas para além da questão de se tal aproximação/união é possível, a grande questão na minha opinião é como isto seria possível. Na prática (e mesmo na teoria), como funcionaria a neuropsicanálise? Mark Solms não parece ter uma resposta muito convincente para esta questão. Segundo ele, as neurociências podem contribuir com a psicanálise ao fornecer os métodos científicos de investigação que esta não possui. Com isto algumas das teorias psicanalíticas poderiam ser testadas através de experimentos realizados por neurocientistas. Como afirmou em uma entrevista, "na psicanálise o problema é que ela é subjetiva demais. Não há controle científico. Não há objetividade. Não há teste de hipóteses. Não há forma de falsear hipóteses. Isso também é perigoso. Leva a especulação sem verificação. Trazendo os dois juntos corrige o que há de errado nos dois campos". Cabe apontar, que para Solms não só as neurociências poderiam hipoteticamente confirmar alguns pontos da teoria psicanalítica como já o teriam feito. Segundo ele, a existência de uma "cognição inconsciente", base da teoria psicanalítica, já teria sido comprovada pela neurociência contemporânea. Será mesmo? Não creio. Na minha visão e de outros autores, o inconsciente cerebral disseminado pelas neurociências contemporâneas não é igual ao inconsciente freudiano. Em comum, essas duas noções de inconsciente possuem apenas a ideia de que existem atividades mentais ou cerebrais que funcionam sem que tenhamos consciência. No entanto, o inconsciente disseminado por Freud é, nas palavras da historiadora e psicanalista Elisabeth Roudinesco, "um inconsciente psíquico, dinâmico e afetivo, organizado em diversas instâncias (o eu, o isso e o supereu)", ao passo que o inconsciente cerebral diz respeito, basicamente, aos mecanismos automáticos do funcionamento neural. Enfim, tratam-se de visões muito distintas - o que significa dizer que as neurociências não teriam como comprovar o inconsciente freudiano. Isto pra não falar do restante da teoria psicanalítica. Será mesmo que as neurociências teriam como comprovar ou refutar o Complexo de Édipo, os estágios de desenvolvimento psicossexuais, o funcionamento tripartite da mente ou ainda conceitos como recalque, catexia ou pulsão? Não creio. 

Como já disse em outro post, psicanálise e neurociências são áreas muito diferentes e possuem objetivos e métodos muito distintos. Acreditar que as neurociências teriam a capacidade de confirmar ou refutar a teoria freudiana, além de colocar muita expectativa nesta área do conhecimento, ainda estabelece uma hierarquia entre as duas áreas - a neurociência, no caso, estaria no topo e seria ela a dar a última palavra sobre a psicanálise. E é esta ideia que leva o psicanalista Jorge Forbes a dizer que "a neuropsicanálise é um cavalo de Tróia que porta um projeto reducionista no ventre". Segundo ele, ao sugerir uma hierarquia entre os dois campos, Solms estaria supervalorizando uma visão biológica e, portanto, reducionista da mente. Outro problema desta "junção ecumênica", nas palavras de Forbes, é que ela tenta unir "paradigmas incompatíveis". Dizer nesse sentido que a psicanálise tem o mesmo objeto de estudos que as neurociências - o cérebro - não é correto. Embora a mente certamente esteja ligada ao cérebro - nem mesmo Freud negava isso - o ponto de vista da psicanálise é puramente mental ou psíquico. Mesmo que o conhecimento neurológico tenha sido importante em um período inicial da carreira de Freud, a psicanálise acabou por trilhar um caminho distinto e distante das ciências do cérebro - segundo Forbes, este "corte epistemológico" foi concretizado com a publicação do livro Interpretação dos sonhos, em 1900. E tudo isto significa que tentar juntar as duas áreas seria um desafio fadado ao fracasso - seguindo a ideia de "junção ecumênica", seria como tentar fundir ou integrar duas religiões muito diferentes entre si. Um meio termo, diferente da pretensão de juntar os dois conhecimentos, seria "simplesmente" colocar neurociências e psicanálise para dialogar. As pesquisadoras Monah Winograd e Nathalia Sisson defendem, nesse sentido, que "para garantir a possibilidade e a integridade de uma cooperação entre as duas áreas, deve-se, antes de qualquer outro passo, definir uma relação de respeito mútuo entre a psicanálise e as neurociências". A grande questão é que para concretizar este objetivo de cooperação não seria necessário criar uma nova área de conhecimento. Se a proposta é o diálogo e não a fusão porque propor, então, algo como uma neuropsicanálise? Acho que isso nem Freud explica.

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4 comentários:

  1. Olá, Felipe.
    Ótimo artigo!
    Parabéns pelo excelente trabalho que aposta na transposição de "preconceitos" e "seitas psicológicas".
    Tenho que passar mais por aqui.
    Abraço

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  2. Belíssimo post! Muito bem articulado.
    Esse é um dilema que vem vai durar décadas sem conclusão.

    www.sramaia.blogspot.com

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  3. Até onde for ciencia ou tecnica para alivio das afliçoes da Alma Humana. Tudo bem é tudo bem vindo. Agora se for para "reserva de mercado" ou exposiçao da vaidade do sujeito do suposto saber...vai ficar para nossos bisnetos um conclusão inconclusiva....

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