Em um post recente, ao comentar criticamente uma entrevista do neurocientista Ivan Izquierdo em que ele dizia que a neurociência havia superado a psicanálise, eu afirmei que Freud, embora tenha iniciado sua carreira e suas pesquisas como neurologista, aos poucos foi se distanciando desta perspectiva em prol de uma visão mais psicológica da mente humana. Em certo momento eu sugeri até mesmo um rompimento, uma ruptura, de Freud com a neurologia e com a biologia em geral. Mas isto de fato aconteceu? Decidi ir mais a fundo nesta questão e busquei livros e pesquisas que analisaram detalhadamente esta pergunta (abaixo indicarei exatamente quais foram as minhas fontes). E as informações que encontrei apontam para duas respostas possíveis: sim e não, com forte tendência para o não. Para alguns autores, a obra neurológica de Freud tem um interesse meramente histórico, não sendo vista como algo relevante para se entender a "metapsicologia" desenvolvida por ele posteriormente - as manifestações organicistas em seus textos tardios são entendidas, deste ponto de vista, apenas como uma excentricidade ou um apego sentimental a certos princípios adquiridos no início de seu processo de formação. Para estes autores seria óbvia a "constatação" de que Freud teria rompido radicalmente com a neurologia. No entanto, análises mais atentas apontam que Freud, por mais que se queira negar, nunca rompeu totalmente com a biologia e com um entendimento neurológico da psiquê. Como afirmam os pesquisadores Richard Simanke e Fátima Caropreso, "a ideia de que o "psicólogo Freud" teria, a partir de certo momento, substituído inteiramente o "neurólogo Freud" não parece poder ser facilmente sustentada". Segundo estes autores é possível observar, de fato, uma "perfeita unidade e continuidade" entre estas duas dimensões do pensamento de Freud. Neste sentido, o que parece um rompimento não passaria de um recuo estratégico levado à cabo em função da percepção de que não haviam condições técnicas e metodológicas adequadas para se estudar fisiologicamente o cérebro e a relação mente-cérebro naquele momento. Ainda assim Freud sempre defendeu de diferentes formas a visão de que a mente e, logicamente, o inconsciente, não poderiam existir "suspensos no ar", estando necessariamente fundados em estruturas orgânicas/neurais. E tudo isto significa que muito provavelmente, se Freud estivesse vivo, ele olharia com bastante interesse para as atuais pesquisas neurocientíficas, ainda que dificilmente "comprasse" o discurso fisicalista/materialista disseminado por muitos neurocientistas contemporâneos - que insistem em nos fazer acreditar que "somos o nosso cérebro". Sua visão possivelmente incorporaria alguns elementos "neuro" em uma teoria mais ampla da mente humana. Ok, de fato nunca saberemos, mas podemos imaginar, não?
Certamente, não há como negar a origem "neurocientífica" da psicanálise. Freud, no inicio de sua carreira, especificamente a partir de 1883, esteve profundamente envolvido em pesquisas neuroanatômicas e neurofisiológicas em laboratórios de Viena e Paris - anteriormente participou de pesquisas em zoologia, tendo estudado, dentre outras coisas, o sistema reprodutivo de enguias em um laboratório em Trieste, onde produziu, em 1877 seu primeiro artigo científico (sobre este acontecimento, o psicanalista Mark Solms comenta: "não é notável o fato de que o futuro descobridor do processo de castração iniciou sua carreira científica procurando, sem sucesso, os testículos perdidos da enguia?"). Alguns anos mais tarde, em 1891, quando já se interessava pelo campo da psicopatologia, publicou seu primeiro livro, Sobre a concepção das afasias, que não faz parte de suas "obras completas" justamente porque foi escrito e publicado em um período pré-psicanalítico, momento em que o "Freud neurologista" ainda tinha primazia sobre o "Freud psicanalista" - no Brasil este livro foi publicado somente em 2013 pela editora Autêntica. Nesta obra, Freud analisa as diversas concepções de afasia reinantes naquele momento e tece importantes, e ainda atuais, críticas à teoria localizacionista, segundo a qual cada função mental teria uma localização precisa no cérebro, que seria afetada no caso de uma lesão. Esta teoria, cabe ressaltar, voltou, ou melhor, se impôs com grande força após o advento das novas tecnologias de neuroimagem (PET, fMRI, etc), que apontam para áreas mais ou menos "ativas" no cérebro e sugerem, assim, que, determinadas áreas são responsáveis por determinadas funções. Esta visão localizacionista, defendida ardorosamente pelos frenologistas no século XIX e criticada por Freud já em 1891, tem sido alvo de importantes críticas empreendidas por diversos neurocientistas, como o brasileiro Miguel Nicolelis, para quem o cérebro funciona com um todo integrado e de maneira distribuída - daí a utilização do termo distribuicionista para designar o adepto desta corrente, oposta à localizacionista. Em seu livro Muito além do nosso eu, Nicolelis defende justamente a visão do cérebro como uma rede na qual células localizadas em diferentes regiões do cérebro contribuiriam, “cada uma de uma maneira diminuta e peculiar, para a geração de um produto cerebral final”. Segundo o pesquisador, assim como para Freud, não faz sentido atribuir a uma área específica a responsabilidade sobre determinada função.
Em 1895, Freud escreveu, mas nunca o publicou em vida, o texto "Psicologia para neurologistas". Tal publicação ocorreu em sua língua materna somente em 1950, onze anos após a sua morte, e teve seu título alterado pelos editores da versão inglesa, em 1954, para "Projeto para uma psicologia científica". Acredita-se que Freud sempre rejeitou tal manuscrito e nunca quis que fosse publicado, talvez por se tratar de um texto que vai na contramão de sua obra posterior (será mesmo?). Neste texto inacabado, caracterizado por Octave Mannoni como um "manual de neurologia fantástica", Freud se propõs, em suas próprias palavras, a "estruturar uma psicologia que fosse uma ciência natural" e para tanto elaborou uma teoria acerca do pensamento e comportamento humanos em termos da estrutura e função do sistema nervoso. Freud pretendeu, em suma, construir uma "fisiologia da mente", segundo expressão de Clark Glymour. Não pretendo aqui entrar nos pormenores deste complexo texto - para tanto indico o livro Projeto para uma Psicologia Científica: Freud e as neurociências, escrito pelo psicanalista Benilton Bezerra Jr. -, gostaria apenas de destacar que se trata de uma obra ímpar, na medida em que Freud propõe uma explicação neurológica para a mente - totalmente especulativa, diga-se de passagem, já que não existiam instrumentos disponíveis naquela época para verificar suas hipóteses. Cabe ressaltar ainda que neste texto Freud reforça sua crítica ao localizacionismo, corrente hegemônica naquele momento. E isto sinaliza para o entendimento que Freud já "nadava contra a corrente" antes mesmo de desenvolver a teoria e o método psicanalíticos.
Em sua vasta obra posterior, escrita até o fim de sua vida, em 1939, Freud se refere inúmeras vezes ao funcionamento cerebral e à relação entre este e a mente. Selecionamos abaixo algumas destas frases - que certamente não devem ser entendidas isoladas do texto maior em que estão inseridas, mas que sinalizam para um certo entendimento. Para quem quiser lê-las no contexto em que foram escritas, recomendo a leitura do texto/livro-base.
- "Mesmo quando a investigação mostra que a causa excitante primária de um fenômeno é psíquica, uma pesquisa mais profunda irá um dia mais adiante nesse caminho e descobrirá a base orgânica do acontecimento mental" (Interpretação dos sonhos, 1900)
- "A mecânica desses processos me é totalmente desconhecida; qualquer um que quisesse levar essas ideias a sério teria que procurar por seus análogos físicos e encontrar um meio de figurar os movimentos que acompanham a excitação dos neurônios" (Interpretação dos sonhos, 1900)
- "É fácil descrever o inconsciente e seguir seus desenvolvimentos, se ele é abordado pelo lado de suas relações com o consciente, com o qual tem tanta coisa em comum. Por outro lado, não parece ainda haver nenhuma possibilidade de abordá-lo pelo lado dos acontecimentos físicos, de modo que ele deve permanecer como um tema de investigação psicológica" (O interesse pela psicanálise, 1913)
- "Devemos lembrar que todas as nossas ideias provisórias em psicologia estarão, presumivelmente, algum dia, baseadas numa subestrutura orgânica" (Sobre o narcisismo, 1914)
- "A estrutura teórica que criamos para a psicanálise é, na verdade, uma superestrutura, que, um dia, terá que ser assentada sobre seus fundamentos orgânicos. Mas nós ainda os ignoramos" (Conferências de introdução à psicanálise, 1916/1917)
- "As deficiências em nossa descrição provavelmente se desvaneceriam, se já estivéssemos em condições de substituir os termos psicológicos pelos termos fisiológicos ou químicos" (Além do princípio do prazer, 1920)
- "A biologia é, verdadeiramente, uma terra de possibilidades ilimitadas. Podemos esperar que ela nos forneça as informações mais surpreendentes, e não podemos imaginar que respostas nos dará, dentro de poucas dezenas de anos, às questões que lhe formulamos. Poderão ser de um tipo que ponha por terra toda a nossa estrutura artificial de hipóteses" (Além do princípio do prazer, 1920)
Em todos os trechos destacados acima é possível observar diferentes variações em cima da ideia de que no presente, ou seja, no momento em que Freud escrevia, não haviam condições técnicas e científicas para se fazer determinados estudos e, consequentemente, para se chegar a certas conclusões sobre o funcionamento cerebral, mas que no futuro tais restrições deixariam de existir. É possível perceber nos textos de Freud uma grande fé no futuro e, especificamente, no futuro da ciência, que, acredita ele, seria um dia capaz de dar algumas respostas sobre o sistema nervoso e o cérebro que naquele momento não eram possíveis e que poderiam complementar o conhecimento psi e até mesmo, quem sabe, substituí-lo. Cabe apontar que esta fé na ciência está presente de uma forma ainda mais evidente em seu livro O futuro de uma ilusão, no qual a fé na ciência, de certa forma, substitui a fé em deus ou em uma religião. Na verdade, a grande crítica de Freud à ciência cerebral de sua época é que ela se restringia à busca pela localização de determinadas funções mentais na estrutura do cérebro e isto, para ele, era insuficiente para seus propósitos e interesses. O que ele almejava era uma análise funcional do cérebro, ou seja, uma análise de sua dinâmica e não somente de sua estrutura. No entanto, naquele momento não existiam instrumentos pra tal investigação. Até a primeira metade do século XX, estudos sobre o cérebro humano eram realizados majoritariamente de forma indireta, através do exame minucioso de indivíduos lesionados – como no famoso caso do operário Phineas Cage – mas também, diretamente, por meio de análises post mortem e de tecnologias de exame mais simples como a eletroencefalografia, disponíveis a partir da década de 1920. Foi somente no final do século XX, com o desenvolvimento e disseminação das novas tecnologias de visualização do cérebro, que tornou-se possível ir além e estudar o cérebro in vivo, ou seja, o cérebro de indivíduos vivos, e ao vivo, isto é, praticamente no momento em que o sujeito realiza determinada ação ou tarefa. Nada disso existia durante o período de vida de Freud o que reforça a hipótese de que, diante da impossibilidade de levar à cabo uma investigação funcional do cérebro, que fosse além da análise de lesões na estrutura (inexistentes no caso de transtornos neuróticos), Freud teve que dar uma guinada em direção a uma investigação psicológica da mental. Isto significa que Freud não propriamente optou por seguir esta trilha, mas foi como que conduzido a ela em função de uma série de limites técnicos e metodológicos. Ainda sim sempre nutriu a expectativa de que tais empecilhos seriam eliminados no futuro - como de fato foram, pelo menos parcialmente. No entanto, Freud jamais poderia imaginar que o localizacionismo ressurgiria com força total no século XXI em função do desenvolvimento e disseminação das novas tecnologias de neuroimagem. Nesta nova onda localizacionista, chamada por alguns de neofrenologia, a busca pela localização de áreas funcionais tem sido majoritariamente preferida à busca por um entendimento dinâmico, funcional e/ou distribuído do cérebro. Freud certamente olharia com bastante criticidade para tudo isto e provavelmente continuaria nadando contra a corrente.
Sugestões de leitura:
Sugestões de leitura:
- (Livro) Lynn Gamwell e Mark Solms. Da neurologia à psicanálise: desenhos neurológicos e diagramas da mente por Sigmund Freud. Editora Iluminuras. 2008.
- (Livro) Benilton Bezerra Jr. Projeto para uma psicologia científica: Freud e as neurociências. Ed. Civilização Brasileira. 2013.
- (Artigo) Richard Simanke e Fátima Caropreso. A metáfora psicológica de Sigmund Freud: neurologia, psicologia e matapsicologia na fundamentação da psicanálise. Revista Scientiae Studia. 2011.
- (Artigo) Sidarta da Silva Rodrigues. A atualidade do projeto freudiano de 1895. Revista Transformações em Psicologia. 2009.