Já no filme Lucy, dirigido, escrito e produzido por Luc Besson, a atriz Scarlett Johansson interpreta a personagem-título, Lucy, uma mulher norte-americana que vive em Taiwan e que é obrigada, por uma série de motivos, a servir de "mula" para um poderoso mafioso local. O problema é que, em determinado momento, as cápsulas cheias de drogas que ela esconde em seu abdomen (na verdade trata-se de uma fictícia droga sintética chamada CPH4) se rompe, mas ela, ao contrário do que normalmente ocorre, não tem uma overdose nem morre. Pelo contrário, como aponta a página do Wikipedia do filme, ela desenvolve a partir de então capacidades físicas e mentais cada vez mais elevadas, como a telepatia, a telecinese, a eletrocinese, a absorção instantânea de conhecimento, a capacidade de viagem no tempo e inclusive a opção de sentir dor ou outros desconfortos físicos ou emocionais, além de outras habilidades. Lucy se torna, assim, supermegahiperpoderosa. Como aponta o cartaz do filme "uma pessoa normal usa 10% de sua capacidade cerebral. Ela vai atingir 100%". Não entrarei nas peculiaridades de cada filme, só gostaria de apontar que ambos disseminam as ideias, consideradas "neuromitos" pelos neurocientistas contemporâneos, 1) de que usamos cotidianamente somente uma pequena parte do nosso cérebro ou de nossas potencialidades cerebrais (em geral fala-se em 10%) e 2) de que através de um correto treinamento ou do uso de determinadas medicações/drogas é possível ampliar e mesmo atingir o máximo das nossas capacidades cerebrais/mentais.
Mas uma medicação tão eficaz como essa certamente traria algum efeito colateral, não é mesmo (como todas as demais medicações existentes no mundo)? Pois a resposta neste caso é não. Segundo o site, o consumo de Neurofos não gera qualquer efeito colateral. Como aponta o site, "pesquisas indicam [mais uma pausa para respiração... que pesquisas, cara pálida? É muito fácil dizer que pesquisas ou estudos apontam qualquer coisa. Difícil é apontar quais pesquisas específicas que embasam sua afirmação] que as pessoas que testaram outros produtos sofreram de angústia, TDAH, problemas bipolares e muitas coisas do tipo. Mas, quando começaram a utilizar o Neurofos, não houve absolutamente nenhum efeito colateral". Curiosamente, em outro site - do mesmo remédio, agora vendido com outro nome - está escrito em letras miúdas e sem qualquer destaque que "assim como qualquer tipo suplemento alimentar, remédios e mesmo outros produtos (mesmo que naturais) podem haver riscos associados à sua utilização". Uai, mas tal produto não era isento de riscos e efeitos colaterais? É claro que não! Mas ignoremos isto por um instante e tentemos entender como um remédio tão fantástico como esse teria sido produzido. Segundo o site, ele foi criado em um "laboratório de ponta" sob a supervisão de uma "equipe de especialistas de vasta experiência e conhecimento". Esta busca por legitimação científica fica clara também em uma imagem utilizada pelos golpis...cientistas em outra peça publicitária na qual duas imagens de ressonância do cérebro são comparadas (veja acima), sendo uma anterior e outra posterior o uso do Neurofos - um detalhe importante é que a fonte da imagem é atribuída à uma certa "Unidade de Neurociências da Universidade Federal do Rio de Janeiro", que efetivamente não existe - além disso, como descobriu o site E-farsas, as imagens se referem a um estudo sobre os efeitos no cérebro do uso de álcool). Por fim, é dito no site que o Neurofos é vendido somente no site oficial e não em farmácias comuns porque "o laboratório tem dificuldades em atender a demanda atual". Ah tá! Não é porque o produto não foi aprovado pela Anvisa, não né? Em outro site, os vendedores deixam claro, nas mesmas letras miúdas apontadas acima, que "as declarações contidas neste documento são livres de avaliação pela Anvisa". Tudo isto está cheirando a golpe para você? E realmente é.
Dizer que algo foi comprovado pela neurociência ou que tal ou qual área do cérebro está envolvida no que quer que seja, torna qualquer notícia ou texto muito mais crível, como demonstrou a pesquisadora Deena Weisberg e sua equipe em um experimento clássico publicado em 2008 - denominado The seductive allure of neuroscience explanations [O fascínio sedutor das explicações neurocientíficas]. Neste experimento, a pesquisadora dividiu um grupo de pessoas em três grupos e deu para cada um deles a tarefa de ler algumas notícias e avaliar a qualidade delas. E o que ela encontrou, em síntese, foi que as notícias nas quais estavam incorporadas explicações neurocientíficas eram sistematicamente mais bem avaliadas, mesmo quando nada traziam de novo ou nada diziam efetivamente (por exemplo, dizer que uma determinada área do cérebro fica "ativa" quando o sujeito sente dor, nada diz sobre as causas ou motivos da dor, apenas aponta para os correlatos neurais, ou seja, para as "assinaturas neurais" da dor). Em outro experimento, o pesquisador David MacCabe e sua equipe demonstram o poder não das explicações, mas das imagens neurocientíficas criadas (sim, criadas, não são fotografias do cérebro) por equipamentos de ressonância magnética ou PET Scan - seu artigo se chama Seeing is believing: the effect of brain images on judgments of scientific reasoning [Ver é crer: o efeito de imagens cerebrais em juízos de raciocínio científico]. De forma semelhante ao experimento de Weisberg, as neuroimagens deram muito mais credibilidade aos textos e artigos científicos apresentados, mesmo quando, de fato, elas nada acrescentavam. Eis o poder sedutor e persuasivo das neuroimagens e do discurso neurocientífico...
Tudo isto aponta para o fato de que devemos ficar atentos e vigilantes com relação às "verdades" com que nos deparamos seja na vida real ou, cada vez mais, na vida virtual. Em algumas situações, o efeito colateral pode ser suave: você apenas acreditará em algo supostamente científico, mas que de cientifico nada tem - e eu nem acho que para ser bom ou útil algo deva ter necessariamente o aval da ciência, só acho que se algo não é baseado em pesquisas e estudos científicos, não devia fingir sê-lo. No entanto, tome especial cuidado quando quiserem lhe vender algo supostamente baseado em pesquisas neurocientíficas. Você pode achar que está adquirindo algo válido e útil quando, na verdade, você está apenas gastando dinheiro à toa. Fique atento, pois as neurobobagens e os neuropicaretas estão por toda parte...