Faz algum tempo que não atualizo o blog de maneira sistemática com textos meus, mas notícias recentes tem me motivado a escrever alguns posts, inspirados também em algumas leituras que venho realizando para o mestrado. Semana passada mesmo, reli alguns capítulos do clássico livro "Outsiders - Estudos de sociologia do desvio" (Ed. Zahar, 2008), do grande sociólogo americano Howard Becker, e é com base nele que vou tecer algumas considerações agora. O livro é uma obra-prima, recomendo a todos que se interessam pela problemática do desvio.
Bom, as notícias que me motivaram a escrever este post foram duas, basicamente. A primeira (ver link) é que o Centro Universitário do Distrito Federal (UDF) teria iniciado o processo de criação de um curso de pós-graduação em Psicologia Cristã. O CFP se posicionou contra e prometeu recorrer às instâncias competentes para evitar que tal curso se inicie, mas, o próprio UDF, segundo o blog do Paulo Lopes (link) negou a notícia, afirmando que "nenhuma discussão a respeito do referido curso foi submetida a qualquer instância dentro da instituição" e concluindo que o curso não será oferecido. No site do UDF não encontrei nada a respeito. Talvez seja boato, mas não duvido de propostas como essa, uma hora, virarem realidade. E o mais triste é que possivelmente haveria público para tal curso de pós-graduação. Ou não?
A segunda notícia é relativa à audiência, realizada na última quinta-feira, dia 28 de Junho, na Câmara Federal para debater o Projeto de Decreto Legislativo nº234/11 (que vem sendo chamado de Projeto de Cura Gay) de autoria do deputado evangélico João Campos (PSDB-GO), que visa a revogação de dois dispositivos da Resolução 01/1999 do CFP, que proíbe o envolvimento do psicólogo com qualquer atividade que favoreça a patologização da homossexualidade - o que inclui tanto pronunciamentos públicos quanto propostas de tratamento. O CFP, obviamente, se manifestou contra tal projeto (leia a carta de repúdio aqui) e, alegando desequilíbrio na escolha dos debatedores (quatro favoráveis à proposta e somente um contra), não compareceu à sessão como forma de protesto. A sessão foi tumultuada, com muito bate-boca e ânimos exaltados. Veja o video abaixo com a compilação de alguns momentos. Eu fiquei assustado!
Em outros momentos neste blog, já manifestei minha posição com relação às crenças e atitudes da tal "psicóloga cristã" e, anteriormente, da "psicóloga missionária" (quem se lembra dela?). Que fique claro meu apoio ao CFP nesta questão. Em outras questões - como na luta pelas 30 horas - considero o engajamento do CFP equivocado, mas não neste caso. Esta pretensão de "curar gays" é tão moralista e antiquada que fico consternado como tem pessoas que defendem isso. E não simplesmente defendem, mas defendem entusiasticamente. O que mais me impressiona é como algumas pessoas e grupos se engajam em verdadeiras cruzadas que visam não a criação e consolidação de direitos, mas a retirada ou a não aquisição de direitos por certos grupos minoritários. E é por este caminho que gostaria de analisar as atuações de certas pessoas e grupos conservadores que, na linguagem de Becker, podem ser chamados de reformadores cruzados
Mas vamos antes de explicar o que Becker entende por reformadores cruzados, gostaria de trazer brevemente sua concepção de desvio. Para ele desvio não é algo natural ou inerente à pessoa, mas uma infração à uma regra criada e imposta por determinado grupo - mas não necessariamente por outros grupos. Para ele, nenhum comportamento é desviante em si. Em determinado contexto, determinada atitude pode ser considerada desviante, mas não em outro. Por exemplo, para muitas pessoas e grupos em nossa sociedade, ser gay é considerado algo desviante, mas esta concepção não vale dentro de uma boate gay ou em uma parada gay. Nestes espaço, ser gay é a norma. Para Becker, "desvio não é uma qualidade simples, presente e alguns tipos de comportamento e ausente em outros. É antes o produto de um processo que envolve reações de outras pessoas ao comportamento". Desta forma, a homossexualidade não pode ser considerada algo desviante em si, mas desviante apenas àqueles grupos que a consideram uma doença, um pecado ou uma abominação.
A definição de Becker pode até parecer meio boba, simples demais, mas tem profundas implicações. Concepções tradicionais do desvio, identificam-no, por exemplo, com aquilo que escapa da média estatística ou com aquilo que é patológico. Na primeira concepção, ter o cabelo ruivo ou ser canhoto, condições "anormais" estatísticamente, faria da pessoa um ser desviante (ou "outsider", na linguagem de Becker), o que é criticável, visto que somente em determinados contextos (mas não em todos) tais características são vistas como desviantes. Na segunda perspectiva, haveria uma identificação entre aquilo que é desviante e aquilo que é patológico, o que não é verdadeiro na maioria dos casos. Um assaltante, por exemplo, pode ser considerado um desviante, pois desvia de uma norma aceita em nossa sociedade, mas não é necessariamente portador de uma patologia. Este é um dos equívocos cometidos pela psicóloga cristã e seus coleguinhas evangélicos. Por considerarem a homossexualidade um comportamento que desvia do que consideram "normal" (que seria o relacionamento homem-mulher), podiam simplesmente dizer que a homossexualidade é um pecado. Segundo seu sistema de crenças, seria o mais correto à dizer. Mas não: afirmam que ser gay é uma doença. Ou seja recorrem ao vocabulário médico, sendo que a própria classe médica não defende isso mais - é óbvio que existem médicos que defendem, mas, desde a retirada da homossexualidade do DSM na década de 70 e do CID na década de 90, a homossexualidade não é mais considerada oficialmente doença pela medicina. Mas isto não importa para eles, o que importa é o que está escrito na Bíblia e isto não muda jamais, não é mesmo? (o curioso é como as interpretações da bíblia são variadas e mutantes) E é em função de crenças profundamente arraigadas, que se engajam no que Becker chama de cruzado moral.
Para o autor, o desvio surge após e como consequência de uma regra (que pode tomar o formato de uma lei ou não) ser criada. Com relação aos criadores de regras, Becker afirma que uma de suas variedades mais comuns, é o reformador cruzado. Becker o define da seguinte forma (e percebam a semelhança com as atitudes da tal psicóloga cristã e de seus coleguinhas):
"[O reformador cruzado] está interessado no conteúdo das regras. As existentes não o satisfazem porque há algum mal que o perturba profundamente. Ele julga que nada pode estar certo no mundo até que se façam regras para corrigi-lo. Opera com uma ética absoluta; o que vê é total e verdadeiramente mal sem nenhuma qualificação. Qualquer meio é válido para extirpá-lo. O cruzado é fervoroso e probo, muitas vezes hipócrita. É apropriado pensar em reformadores como cruzados porque eles acreditam tipicamente que sua cruzada é sagrada (...) O cruzado moral é um intrometido, interessado em impôr sua própria moral aos outros".
Com relação ao trecho "opera com ética absoluta", vale ressaltar que tal ética é pessoal e muitas vezes pode colidir com outras éticas, como a ética profissional, por exemplo. É o caso da psicóloga cristã, que está com um processo sendo movido contra ela pelo CRP-08. De uma forma geral, nesta definição Becker aponta que a crença na existência do Mal (leia-se: a homossexualidade, as drogas, o aborto) é tão forte que a luta para que ele deixe de existir se torna apaixonada. Com isso, a emoção parece prevalecer sobre a razão. O Mal precisa ser extirpado de qualquer jeito e urgentemente. Não há outra saída. Os cruzados morais sentem-se conduzidos diretamente por Deus para fazer o que fazem e dizer o que dizem. Por isso não sentem medo. Podem ser criticados por uma considerável parcela da sociedade, mas contam com o apoio de muitos - e o essencial: tem a tutela de Deus, o próprio. Desta forma, se você elogia suas atitudes, eles dizem: "Isto só confirma a validade e importância da minha missão"; se você os critica, eles se dizem perseguidos e concluem: "Isto só confirma a validade e importância da minha missão. Somos perseguidos tal qual Jesus o foi". Ou seja, não há saída, eles estão sempre certos!
Em outro trecho, Becker afirma que os reformadores cruzados, normalmente situados nas camadas superiores da hierarquia social, costumam ter fortes motivações humanitárias, buscando, de modo tipico, "ajudar os que estão abaixo deles a alcançar um melhor status". O problema, aponta ele, "é saber se os que estão abaixo deles gostam sempre dos meios propostos para sua salvação". Esta é uma questão central do polêmico PDL 234. Permitir aos psicólogos tratar a homossexualidade significa considerar comportamentos homossexuais se não patológicos pelo menos problemáticos. Mas os gays querem ser tratados? Acredito que a maioria não, mas alguns sim. Mas por que querem ser tratados? Provavelmente porque tem uma visão negativa da homossexualidade, considerando-se pecadores ou doentes ou, no mínimo, diferentes. Mas por que vêem-se desta forma? Não vejo outra resposta possível: porque grupos sociais majoritários concebem tais comportamentos como pecaminosos ou doentios e disseminam esta visão pela sociedade. Desta forma, na minha visão, ao abrir a possibilidade de tratar a homossexualidade, oficializa-se a visão de que a trata-se de um problema, o que faz com que o homossexual, sentindo-se problemático, resolva procurar ajuda. Em suma, o processo funciona mais ou menos como no cartum abaixo.
Com relaçãoao destino das cruzadas morais, Becker aponta que elas podem tanto obter o sucesso desejado quanto um fracasso retumbante. Uma cruzada bem-sucedida, segundo ele, normalmente implica no estabelecimento de uma regra ou um conjunto de regras, assim como de mecanismos apropriados de imposição. Por exemplo, a cruzada cristã poderá ser considerada bem sucedida se, por exemplo, conseguir aprovar o PDL 234 e evitar a aprovação da PLC 122, que criminaliza a homofobia. No entanto, Becker aponta para um fenômeno curioso: quando um individuo atinge seu objetivo - ou seja, encontra seu Santo Graal - algumas vezes ele perde sua ocupação. "A cruzada que absorveu tanto de seu tempo, energia e paixão está encerrada". Segundo ele, da mesma forma que a ocupação de um homem pode se tornar fonte de sua preocupação, sua preocupação também pode se tornar sua ocupação. Assim, o que fazer depois de finalizada uma missão? Muitas vezes, o sujeito se engaja em outra. Segundo Becker, este homem, "confuso, pode generalizar seu interesse e descobrir algo novo para encarar como alarme, um novo mal acerca do qual algo deve ser feito. Torna-se um descobridor profissional de erros a serem corrigidos, de situações que demandam novas regras". Alguns reformadores cruzados, mais perspicazes, se envolvem logo com várias causas. Se, por acaso, uma for fracassada, ainda restam outras. Além da cruzada anti-gay muitos se envolvem, por exemplo, em movimentos contra a legalização das drogas e do aborto ou a favor das comunidades terapêuticas.
No caso de uma cruzada malsucedida, que não alcançou seus objetivos e/ou não consegue mais adeptos, Becker aponta para dois caminhos possíveis. No primeiro, os reformadores cruzados simplesmente desistem de sua missão original, tentando preservar o que resta da organização construída. No segundo, o movimento malogrado pode aderir a outras missões cada vez menos populares. Segundo o autor, os moralizadores derrotados, tornam-se, eles próprios outsiders, "continuando a esposar e pregar uma doutrina que soa cada vez mais esquisita com o passar do tempo". Fraternalmente, é o que espero que aconteça com todos esses reformadores cruzados conservadores e homofóbicos. Mas, por enquanto, só desejo uma coisa a eles: