Em primeiro lugar, ao contrário do que alguns textos podem ter dado a entender, eu amo estudar neurociências e leio obssessivamente sobre o tema. Para escrever minha dissertação - transformada posteriormente no livro "O cérebro vai à escola": Aproximações entre Neurociências e Educação no Brasil - eu li uma grande quantidade de artigos e livros escritos por neurocientistas e considero os conhecimentos e perspectivas disseminados por muitos deles extremamente relevantes para se entender o ser humano. Considero incrivelmente enriquecedor, além de absolutamente prazeroso, ler os escritos de neurocientistas geniais como o "prêmio Nobel" Eric Kandel (autor do sensacional ensaio autobiográfico Em busca da memória além do manual Princípios de Neurociências), Vilayanur Subramanian Ramachandran (autor dos maravilhosos Fantasmas no cérebro e O que o cérebro tem para contar), Antonio Damásio (autor do clássico O erro de descartes mas também dos interessantes O mistério da consciência, E o cerebro inventou o homem e Em busca de Espinosa), Jean-Pierre Changeux (autor de O homem neuronal e O verdadeiro, o belo e o bem), Steven Rose (autor do magnífico O cérebro do século XXI), Michael Gazzaniga (autor da excelente autobiografia científica Tales from both sides of brain e de dezenas de outros livros sobre neurociência cognitiva como Human e Who's in charge?, poucos traduzidos para o português, infelizmente), Nancy Andreasen (autora do controverso Admirável cérebro novo), além dos brasileiros Miguel Nicolelis (autor de Muito além do nosso eu), Ivan Izquierdo (autor de Memória e A arte de esquecer), Sidarta Ribeiro (autor de Limiar), Roberto Lent (autor de Cem bilhões de neurônios?, o manual básico de neurociências no Brasil, dentre muitos outros), Suzana Herculano Houzel (que além de sua conhecida e questionável obra de divulgação já possui um um rol considerável de publicações científicas), dentre muitos outros. Certamente todas estas obras são passíveis de críticas, seja ao se levar em conta trechos específicos ou a sua totalidade, mas não há como negar a relevância de seus conteúdos e a seriedade dos autores - e é por isso que preservo-os permanentemente perto de mim em minha biblioteca.
Quer um outro exemplo? No final de setembro ocorrerá em São Paulo o Neurobusiness Experience Forum 2016. Whaaat?, questionaria Bojack Horseman. Pois bem, este "evento de nível mundial", "o mais completo e importante da América Latina", segundo o site oficial, é organizado pela Internacional Neurobusiness Comunity que é uma rede internacional composta por “neurolovers”, ou seja, “profissionais e empresas mantenedoras que são dedicados ao acompanhamento, pesquisa e desenvolvimento em Neurobusiness”. Mas o que seria, afinal, esse tal Neurobusiness? Segundo os organizadores do evento, trata-se da “aplicação do conhecimento sobre o cérebro, a mente e o comportamento humano na estratégia dos negócios, na capacitação em liderança empresarial, na gestão do relacionamento com o cliente, no marketing e gestão comercial”. Deixa eu ver se eu entendi: trata-se da aplicação de conhecimentos sobre o CÉREBRO, a MENTE e o COMPORTAMENTO na área empresarial... mas o campo se chama NEURObusiness? Mas e a mente e o comportamento, onde ficam? Ficam em toda parte, menos no título do evento. Mas por que? Porque "mente" e "comportamento" não tem o mesmo apelo que "cérebro". Pois é exatamente disso que se trata: de uma tentativa de usar a roupagem sedutora das neurociências para disseminar informações que pouco ou nada tem a ver com as pesquisas e descobertas realizadas pelos neurocientistas. Os tais neurolovers parecem saber muito bem que colocar a expressão neuro na frente de qualquer outra expressão dá uma enorme credibilidade e um ar de cientificidade para o que quer que você esteja promovendo - ou vendendo. Como disse certa vez um renomado neurocientista em uma palestra voltada para educadores: "botou neuro na frente, vende! Porque já acha que é algo diferenciado. Botou termo difícil vende mais ainda". Os organizadores do evento de Neurobusiness captaram isso perfeitamente, pois em seu site oficial é possível encontrar encontrar inúmeras expressões “neuro” como neuroinovação, neuroliderança, neuroexperiência, neuromarketing, neuroeducação, neuroempreendedorismo, neurocomunicação, neurovendas, neuroeconomia, neurocoaching... é "neuro" pra dar e vender - especialmente vender.
Uma parte substancial das críticas que fiz e faço neste blog dizem respeito a estes usos e apropriações equivocados e comerciais do discurso neurocientífico e não à pesquisa básica e às teorizações empreendidas pelos neurocientistas. Minha grande preocupação - inclusive acadêmica - é com as ações e publicações voltadas para a popularização das neurociências, que muitas vezes disseminam visões e versões simplificadas e frequentemente equivocadas do conhecimento científico - e comumente vão além do objetivo de explicar "como o cérebro funciona" para pretender também ensinar como "o cérebro pode funcionar melhor". Este salto - da explicação para a prescrição, da divulgação científica para auto-ajuda cerebral - é um importante alvo de minhas críticas. A obra da neurocientista Suzana Herculano-Houzel é bastante representativa neste sentido. Em seus primeiros livros (O cérebro nosso de cada dia, Sexo Drogas, Rock'n Roll e chocolate e Por que o bocejo é contagioso?) a proposta da autora era divulgar os resultados de pesquisas neurocientíficas para o público leigo. Seus textos eram curtos, engraçados e sempre finalizavam com uma indicação bibliográfica - normalmente um artigo científico publicado em alguma prestigiosa revista científica internacional. Mas a medida que a neurocientista começou a ficar famosa, chegando até mesmo a apresentar um quadro no Fantástico, o NeuroLógica, suas publicações começaram a se alterar. Seus livros mais recentes (Fique de bem com seu cérebro e Pílulas de neurociência para uma vida melhor) tem estruturas e objetivos completamente diferentes dos primeiros. Em primeiro lugar, há sempre uma foto da neurocientista na capa dos livros, tal qual nos livros de auto-ajuda. Em segundo lugar, não há mais qualquer indicação bibliográfica, o que faz parecer que tudo o que está escrito foi exclusivamente "descoberto" pela autora. E finalmente, o objetivo já não é mais explicar o funcionamento cerebral, mas sim dar dicas e sugestões, supostamente baseadas em pesquisas neurocientíficas - mas efetivamente banais - para que o leitor possa "viver melhor". Seu discurso já não se difere em nada daquele disseminado pela literatura de auto-ajuda. Na verdade trata-se agora de uma nova modalidade de auto-ajuda, chamada por alguns autores de auto-ajuda cerebral ou auto-ajuda neurocientífica. Assim, muito embora a autora tenha uma respeitada e produtiva carreira científica, tendo produzido importantes pesquisas e artigos, - vários publicados em renomadas revistas internacionais - sua obra de divulgação científica em algum momento se perdeu e acabou cedendo lugar à "neuroredundância", ou seja, ao senso comum travestido de ciência.
E tudo isto significa também que o cérebro é apenas mais um elemento a ser levado em conta neste grande entendimento do que é, afinal, ser humano. Certamente, trata-se de um elemento fundamental, sem o qual não seríamos quem somos e não teríamos a capacidade de agir sobre o mundo como fazemos. Não questiono, como nunca questionei, a importância fundamental do cérebro para a vida humana - e eu seria ingênuo e ignorante se o fizesse. Minha questão é mais profunda e mais filosófica e passa pela resposta à seguinte pergunta: nós somos o nosso cérebro? Muitos neurocientistas contemporâneos responderiam positivamente a esta questão. Possivelmente argumentariam que sem um cérebro nós nada seríamos: não conseguiríamos andar, falar, pensar e sequer respirar - enfim, não haveria vida possível sem um cérebro. Não questiono isso, pois basta observar que crianças com anencefalia não vivem mais do que poucos dias e crianças com microcefalia possuem uma série de limitações cognitivas e físicas. No entanto, dizer que precisamos do nosso cérebro não é o mesmo que dizer que somos o nosso cérebro. Eu também preciso de um coração para viver e nem por isso eu digo que eu sou meu coração. "Ah, mas o cérebro é muito diferente do coração. Se eu fizer um transplante de coração eu continuo sendo eu mesmo, mas se eu fizer um transplante de cérebro eu não serei mais eu", você poderia argumentar e com certa razão. Mas isto também não significa dizer que somos o nosso cérebro. Significa sim que ele é necessário para a vida e para a constituição de nossa personalidade. Mas, e esse é o meu ponto, ser necessário não é o mesmo que ser suficiente. Pois, de fato, o cérebro não é suficiente para sermos o que somos. Antes de tudo precisamos de um corpo - e o cérebro, cabe salientar, é parte constituinte do corpo. E isto significa então que nós somos o nosso corpo? De um ponto de vista estritamente materialista, isto seria mais correto do que dizer que "nós somos o nosso cérebro". Mas ainda assim esta afirmação é incompleta, pois um cadáver também possui um corpo - mas lhe falta algo, lhe falta a vida. Um cadáver não é, por assim dizer, um organismo - entendendo organismo como o conjunto de órgãos que constituem um ser vivo. Então nós somos organismos? Sim, mas não organismos isolados. Com nossos corpos interagimos com o mundo e com outros organismos e seus corpos. Somos, enfim, organismos em constante interação com o mundo físico e social - e não simplesmente cérebros. Nós somos o todo e não as partes.
As neurociências, nesse sentido, estão aptas a contribuir com a investigação de como o sistema nervoso funciona, de como ele interage com o resto do corpo e até mesmo de como mudanças no ambiente e nas relações impactam no sistema nervoso (o conceito de neuroplasticidade aponta justamente nesta direção), mas muitas outras investigações fogem ao arcabouço das neurociências. Entender, por exemplo, como as pessoas interagem umas com as outras é algo que diz respeito aos campos da psicologia social e da microsociologia. As neurociências podem, no máximo, estudar o que acontece no sistema nervoso enquanto uma pessoa interage com outras - mas estudar o cérebro, cabe reforçar, não é o mesmo que estudar a pessoa como um todo. As diferentes áreas do conhecimento estudam diferentes dimensões do ser humano. O foco das neurociências está no nível das células, dos tecidos e dos órgãos, mas não no nível do organismo total, das populações e das comunidades. Pretender se utilizar dos conhecimentos das neurociências para explicar o comportamento global de indivíduos, de populações e comunidades, só poderá resultar - como já resultou no passado - em equívocos e simplificações. Seria como a sociologia pretender explicar o funcionamento dos neurônios. Da mesma forma, as neurociências e os neurocientistas devem aceitar e entender que embora possam estudar com grande profundidade a estrutura e o funcionamento do sistema nervoso, a mente lhes escapa completamente. Isto porque o que eles estudam é o cérebro e não a mente. Mas estudar o cérebro não é o mesmo que estudar a mente? De forma alguma. Embora ambos estejam inevitavelmente ligados, o cérebro diz respeito à matéria enquanto que a mente diz respeito à subjetividade. Isto significa que estudar o cérebro é possível somente através de uma perspectiva de "terceira pessoa", ou seja, de uma análise externa. Podemos, por exemplo, examinar o cérebro de uma pessoa indiretamente através de um equipamento de ressonância magnética ou diretamente abrindo sua cabeça. Mas jamais poderemos ter acesso direto à mente, ou seja, à subjetividade da pessoa. Mesmo que consigamos abrir e examinar o cérebro, nunca veremos lá dentro seus pensamentos e sentimentos, pois estes dizem respeito à perspectiva em "primeira pessoa". Esta diferenciação entre as perspectivas de "primeira" e "terceira" pessoa é fundamental para que possamos entender os limites de cada campo do conhecimento e compreender que as neurociências, por mais que avancem, nunca poderão dar conta do todo - exatamente porque se dedicam às partes.
E é por isso que defendo uma neurociência crítica, uma neurociência que queira avançar mas que entenda que nem tudo lhe cabe; uma neurociência que não idolatre a si mesma e ao cérebro, mas que compreenda que o cérebro faz parte do sistema nervoso da mesma forma que o sistema nervoso faz parte do corpo e que este corpo compõe um organismo que interage com outros organismos e com o mundo e é por este afetado; uma neurociência que pratique o reducionismo no laboratório, onde reduzir o foco de análise é fundamental, mas que fora dele dissemine e contribua para uma visão complexa e multifatorial dos comportamentos e problemas humanos; uma neurociência que não venda soluções mirabolantes e mágicas e que aja com grande cautela na explicação e prescrição de soluções para os problemas humanos; uma neurociência que entenda que a ciência avança através da crítica e da autocrítica e não do dogmatismo e do autoenaltecimento. Enfim, uma neurociência que pense e repense a si mesma continuamente e que dialogue em pé de igualdade com outros campos do saber. Como bem aponta o meu ex-professor e pesquisador Saulo Araújo, neste artigo, "se a ciência tem uma função primordial, ela consiste na promoção do exame crítico da realidade, mas não na criação de histórias fantásticas e mitos alienantes. E se não podemos encontrar respostas definitivas para certas perguntas que temos levantado sistematicamente ao longo dos tempos, isso talvez aponte para certos limites de nosso conhecimento, o que nos obriga a recordar permanentemente os obstáculos que persistem, para não corrermos o risco de cair em novas formas de dogmatismo".